Primeira Parte
A obra-prima da filosofia seria desenvolver os meios de que a Providência se serve para alcançar os fins que propõe ao homem, e traçar, a partir disso, alguns planos de conduta que pudessem mostrar a este infeliz indivÃduo bÃpede a maneira como deve trilhar a espinhosa senda da vida, a fim de prevenir os caprichos bizarros dessa fatalidade a que se dão vinte nomes diferentes, sem que se tenha conseguido ainda conhecê-la ou defini-la. Se, cheio de respeito pelas nossas convenções sociais, e nunca se afastando das balizas que elas nos impõem, acontece, apesar disso, que só encontramos espinhos, enquanto os malvados colhem apenas rosas, pessoas privadas de uma base de virtudes suficientemente comprovada para se colocarem acima dessas observações, não calcularão então que é melhor abandonar-se à torrente do que resistir-lhe? Não dirão que a Virtude, por mais bela que seja, se torna o pior partido que se pode tomar, quando se encontra fraca demais para lutar contra o vÃcio, e que, num século inteiramente corrompido, o mais seguro é fazer como os outros? Um pouco mais instruÃdos, se quisermos, e abusando das luzes que adquiriram, não dirão com o anjo Jesrad de Zadig, que não há mal do qual não nasça um bem, e que podem, portanto, entregar-se ao mal, já que este é apenas uma das formas de produzir o bem? Não acrescentarão que é indiferente ao plano geral que este ou aquele seja bom ou mau de preferência, que se a desgraça persegue a virtude e a prosperidade acompanha o crime, as coisas sendo iguais aos olhos da Natureza, é infinitamente melhor tomar partido entre os malvados que prosperam, do que entre os virtuosos que fracassam? É, portanto, importante prevenir esses sofismas perigosos de uma falsa filosofia; essencial mostrar que os exemplos de virtude infeliz, apresentados a uma alma corrompida, na qual ainda restam alguns bons princÃpios, podem reconduzir essa alma ao bem tão seguramente como se lhe tivessem mostrado, nessa estrada da virtude, as palmas mais brilhantes e as recompensas mais lisonjeiras. É cruel, sem dúvida, ter que pintar uma multidão de desgraças a oprimir a mulher doce e sensÃvel, que respeita melhor a virtude, e, por outro lado, a abundância de prosperidades sobre aqueles que esmagam ou mortificam essa mesma mulher. Mas, se, no entanto, nascer um bem do quadro dessas fatalidades, haverá remorsos por tê-las oferecido? Poder-se-á ficar zangado por ter estabelecido um facto, do qual resultará para o sábio que lê com proveito, a lição tão útil da submissão à s ordens da Providência, e o aviso fatal de que é frequentemente para nos reconduzir aos nossos deveres, que o Céu atinge, ao nosso lado, o ser que nos parece ter cumprido melhor os seus. Tais são os sentimentos que vão dirigir os nossos trabalhos, e é em consideração a esses motivos que pedimos ao leitor indulgência pelos sistemas erróneos que são colocados na boca de várias das nossas personagens, e pelas situações, por vezes um pouco fortes, que, por amor à verdade, tivemos que colocar diante dos seus olhos.
Madame a Condessa de Lorsange era uma dessas Sacerdotisas de Vénus, cuja fortuna é obra de uma figura bonita e de muita má conduta, e cujos tÃtulos, por mais pomposos que sejam, só se encontram nos arquivos de CÃtera, forjados pela impertinência que os toma, e sustentados pela tola credulidade que os concede; morena, de bela estatura, olhos de uma expressão singular; essa incredulidade da moda, que, emprestando um sal a mais à s paixões, faz com que se procure com mais cuidado as mulheres em quem se suspeita dela; um pouco maldosa, sem princÃpios, não acreditando em nada de mal, e, no entanto, não havendo depravação suficiente no coração para ter extinguido a sensibilidade; orgulhosa, libertina; tal era Madame de Lorsange. Esta mulher tinha recebido, no entanto, a melhor educação; filha de um banqueiro muito rico de Paris, tinha sido educada com uma irmã chamada Justine, mais nova do que ela três anos, numa das mais célebres Abadias desta capital, onde, até à idade de doze e de quinze anos, nenhum conselho, nenhum mestre, nenhum livro, nenhum talento tinha sido recusado a nenhuma das duas irmãs.
Nessa época fatal para a virtude de duas jovens, tudo lhes faltou num só dia: uma bancarrota terrÃvel precipitou o pai delas numa situação tão cruel, que ele morreu de desgosto. Sua mulher seguiu-o um mês depois para o túmulo. Dois parentes frios e distantes deliberaram sobre o que fariam com as jovens órfãs; a parte delas numa sucessão absorvida pelas dÃvidas, montava a cem escudos para cada uma. Ninguém se preocupando em encarregar-se delas, abriram-lhes a porta do Convento, entregaram-lhes o dote, deixando-as livres para se tornarem o que quisessem. Madame de Lorsange que se chamava então Juliette, e cujo carácter e espÃrito estavam, quase na totalidade, tão formados como aos trinta anos, idade que atingia na época da história que vamos contar, só pareceu sensÃvel ao prazer de ser livre, sem refletir um instante sobre os cruéis reveses que quebravam as suas correntes. Quanto a Justine, com a idade, como dissemos, de doze anos, era de um carácter sombrio e melancólico, que lhe fez sentir muito melhor todo o horror da sua situação. Dotada de uma ternura, de uma sensibilidade surpreendente, em vez da arte e da fineza da sua irmã, só tinha uma ingenuidade, uma candura que a fariam cair em muitas armadilhas. Esta jovem, com tantas qualidades, juntava uma fisionomia doce, absolutamente diferente daquela com que a natureza tinha embelezado Juliette; tanto se via de artifÃcio, de manipulação, de coquetismo nos traços de uma, tanto se admirava de pudor, de decência e de timidez na outra; um ar de Virgem, grandes olhos azuis, cheios de alma e de interesse, uma pele deslumbrante, uma estatura flexÃvel e esguia, um timbre comovente, dentes de marfim e os mais belos cabelos loiros, eis o esboço desta irmã mais nova encantadora, cujas graças ingénuas e traços delicados estão acima dos nossos pincéis. Deram-lhes vinte e quatro horas a uma e à outra para deixarem o Convento, deixando-lhes o cuidado de se providenciarem, com os seus cem escudos, onde bem lhes parecesse. Juliette, encantada por ser dona de si, quis por um momento enxugar as lágrimas de Justine, mas, vendo que não conseguiria, começou a ralhar com ela em vez de a consolar: repreendeu-lhe a sensibilidade; disse-lhe, com uma filosofia muito acima da sua idade, que só era preciso afligir-se neste mundo com o que nos afetava pessoalmente; que era possÃvel encontrar em si mesmo sensações fÃsicas de uma voluptuosidade suficientemente picante para extinguir todas as afeições morais cujo choque pudesse ser doloroso; que este procedimento tornava-se tanto mais essencial de ser posto em prática, quanto a verdadeira sabedoria consistia infinitamente mais em dobrar a soma dos seus prazeres, do que em multiplicar a das suas dores; que não havia nada, numa palavra, que não se devesse fazer para embotar em si essa pérfida sensibilidade, da qual só os outros é que aproveitavam, enquanto ela só nos trazia desgostos. Mas um bom coração dificilmente se endurece, resiste aos raciocÃnios de uma má cabeça, e as suas alegrias consolam-no dos falsos brilhos do espÃrito vivo. Juliette, utilizando outros recursos, disse então à sua irmã, que, com a idade e a figura que tinham uma e outra, era impossÃvel que morressem de fome. Citou-lhe a filha de uma das suas vizinhas, que, tendo fugido da casa paterna, era hoje ricamente sustentada e muito mais feliz, sem dúvida, do que se tivesse permanecido no seio da sua famÃlia; que era preciso ter muito cuidado para não acreditar que era o casamento que tornava uma jovem feliz; que, cativa sob as leis do matrimónio, tinha, com muito mau humor para suportar, uma dose muito pequena de prazeres para esperar; em vez disso, entregues ao libertinismo, poderiam sempre garantir-se do mau humor dos amantes, ou consolar-se com o seu número. Justine ficou horrorizada com estes discursos; disse que preferia a morte à ignomÃnia, e, apesar de algumas novas instâncias da sua irmã, recusou constantemente alojar-se com ela, assim que a viu determinada a uma conduta que a fazia tremer. As duas jovens separaram-se, portanto, sem nenhuma promessa de se reverem, assim que as suas intenções se revelaram tão diferentes. Juliette, que ia, segundo ela, tornar-se uma grande senhora, consentiria em receber uma menina cujas inclinações virtuosas mas baixas, seriam capazes de a desonrar? E, por seu lado, Justine quereria arriscar os seus costumes na sociedade de uma criatura perversa que ia tornar-se vÃtima da libertinagem e da devassidão pública? Ambas disseram, portanto, um eterno adeus, e ambas deixaram o Convento logo no dia seguinte. Justine, acarinhada durante a sua infância pela Costureira da sua mãe, acredita que esta mulher será sensÃvel à sua desgraça; vai encontrá-la, conta-lhe as suas desgraças, pede-lhe trabalho… mal a reconhecem; é dispensada duramente.
— Oh Céus! diz esta pobre pequena criatura; será que os primeiros passos que dou no mundo já estão marcados por desgostos! Esta mulher gostava de mim antigamente, por que me rejeita hoje? Ai! é que sou órfã e pobre; é que já não tenho recursos no mundo, e só se estima as pessoas em razão dos socorros e dos encantos que se imagina receber delas.
Justine, em lágrimas, vai encontrar o seu Pároco; descreve-lhe o seu estado com a candura enérgica da sua idade… Estava com um pequeno vestido branco; os seus belos cabelos negligentemente presos sob um grande gorro; o seu decote mal indicado, escondido sob dois ou três côvados de gaze; o seu rosto bonito um pouco pálido por causa dos desgostos que a devoravam, algumas lágrimas rolavam nos seus olhos e emprestavam-lhes ainda mais expressão.
— Vê-me, Senhor, disse ela ao santo Eclesiástico… Sim, vê-me numa posição muito aflitiva para uma jovem; perdi o meu pai e a minha mãe… O Céu tirou-mos na idade em que eu mais precisava do seu auxÃlio… Morreram arruinados, Senhor; já não temos nada. Eis tudo o que me deixaram, continuou ela, mostrando os seus doze luÃses… e nenhum lugar para repousar a minha pobre cabeça… Terá pena de mim, não é verdade, Senhor? É o Ministro da Religião, e a Religião sempre foi a virtude do meu coração; em nome deste Deus que eu adoro e de quem é o órgão, diga-me, como um segundo pai, o que é preciso que eu faça… o que é preciso que eu me torne?
O caridoso Padre respondeu, espreitando Justine, que a Paróquia estava muito sobrecarregada; que era difÃcil que pudesse abraçar novas esmolas, mas que se Justine quisesse servi-lo, que se quisesse fazer o trabalho pesado, haveria sempre na sua cozinha um pedaço de pão para ela. E, como ao dizer isso, o intérprete dos Deuses lhe tinha passado a mão por baixo do queixo, dando-lhe um beijo muito mundano para um homem da Igreja, Justine, que só tinha compreendido demais, repeliu-o dizendo-lhe:
— Senhor, não lhe peço nem esmola nem um lugar de serva; há pouco tempo que deixei um estado acima daquele que pode fazer desejar estas duas graças, para ser reduzida a implorá-las; solicito os conselhos de que a minha juventude e as minhas desgraças precisam, e quer que eu os compre um pouco caro demais.
O Pastor, envergonhado por ter sido desmascarado, expulsou prontamente esta pequena criatura, e a infeliz Justine, duas vezes repelida logo no primeiro dia em que é condenada ao isolamento, entra numa casa onde vê uma placa, aluga um pequeno quarto mobilado no quinto andar, paga-o adiantado, e entrega-se a lágrimas tanto mais amargas quanto é sensÃvel e quanto a sua pequena altivez acaba de ser cruelmente comprometida. Permitir-nos-ão abandoná-la aqui por algum tempo, para voltarmos a Juliette, e para dizer como, do simples estado de onde a vemos sair, e sem ter mais recursos do que a sua irmã, se tornou, no entanto, em quinze anos, mulher titulada, possuindo trinta mil libras de renda, joias muito bonitas, duas ou três casas tanto na cidade como no campo, e, para o momento, o coração, a fortuna e a confiança do Sr. de Corville, Conselheiro de Estado, homem com o maior crédito, e prestes a entrar no ministério. A carreira foi espinhosa, não se duvida certamente: é pela aprendizagem mais vergonhosa e mais dura que estas damas abrem o seu caminho; e tal é hoje na cama de um PrÃncipe, que talvez ainda carregue sobre si as marcas humilhantes da brutalidade dos libertinos, nas mãos dos quais a sua juventude e a sua inexperiência a atiraram. Ao sair do Convento, Juliette foi encontrar uma mulher que tinha ouvido nomear a essa jovem amiga da sua vizinhança; pervertida como tinha vontade de o ser e pervertida por esta mulher, aborda-a com o seu pequeno embrulho debaixo do braço, uma levita azul bem desarrumada, cabelos soltos, a figura mais bonita do mundo, se é verdade que, para certos olhos, a indecência pode ter encantos; conta a sua história a esta mulher, e suplica-lhe que a proteja como fez com a sua antiga amiga.
— Que idade tem?, pergunta-lhe a Duvergier.
— Quinze anos daqui a alguns dias, Madame, respondeu Juliette…
— E nunca nenhum mortal, continuou a matrona…
— Oh! não, Madame, juro-lhe, replicou Juliette.
— Mas é que às vezes nestes conventos, disse a velha… um Confessor, uma Religiosa, uma Camarada… preciso de provas seguras.
— Só depende de si obtê-las, Madame, respondeu Juliette corando…
E a Aia, tendo-se enfeitado com um par de óculos, e tendo escrupulosamente visitado as coisas de todos os lados.
— Vamos lá, disse ela à jovem, só tem que ficar aqui, muito respeito pelos meus conselhos, uma grande base de complacência e de submissão para as minhas práticas, limpeza, economia, candura em relação a mim, polÃtica em relação à s suas companheiras e velhacaria com os homens, antes de dez anos, porei-a em condições de se retirar para um terceiro andar, com uma cómoda; um espelho, uma serva; e a arte que tiver adquirido em minha casa, dar-lhe-á o que for preciso para lhe arranjar o resto.
Estas recomendações feitas, a Duvergier apodera-se do pequeno embrulho de Juliette, pergunta-lhe se não tem dinheiro, e esta, tendo-lhe confessado francamente demais que tinha cem escudos, a querida mamã confisca-os, assegurando à sua nova pensionista que colocará este pequeno fundo na lotaria para ela, mas que não é preciso que uma jovem tenha dinheiro.
— É, diz-lhe ela, um meio de fazer o mal, e, num século tão corrompido, uma rapariga sensata e bem-nascida deve evitar com cuidado tudo o que a possa arrastar para algumas armadilhas. É para o seu bem que lhe falo, minha pequena, acrescentou a Aia, e deve agradecer-me o que faço.
Terminado este sermão, a recém-chegada é apresentada à s suas companheiras, indicam-lhe o seu quarto na casa, e logo no dia seguinte as suas primÃcias são postas à venda. Em quatro meses a mercadoria é sucessivamente; vendida a cerca de cem pessoas; uns contentam-se com a rosa, outros mais delicados ou mais depravados (pois a questão não está resolvida) querem abrir o botão que floresce ao lado. Todas as noites a Duvergier estreita, reajusta, e durante quatro meses são sempre primÃcias que a velhaca oferece ao público. No final deste noviciado espinhoso, Juliette obtém finalmente as patentes de irmã conversa; a partir deste momento é realmente reconhecida como filha da casa; a partir de então partilha as penas e os lucros. Outra aprendizagem; se na primeira escola, com alguns desvios, Juliette serviu a Natureza, esquece as leis na segunda; corrompe aà totalmente os seus costumes; o triunfo que vê obter ao vÃcio degrada totalmente a sua alma; sente que, nascida para o crime, pelo menos deve ir ao grande e renunciar a languidecer num estado subalterno, que, fazendo-a cometer as mesmas faltas, aviltando-a igualmente, não lhe rende, nem de perto nem de longe, o mesmo proveito. Agradada a um velho Senhor muito devasso, que só a faz vir primeiro para o assunto do momento; tem a arte de se fazer manter magnificamente; aparece finalmente nos espetáculos, nos passeios, ao lado dos cordões azuis da ordem de CÃtera; olham-na, citam-na, invejam-na, e a criatura esperta sabe tão bem como fazer, que em menos de quatro anos arruÃna seis homens, dos quais o mais pobre tinha cem mil escudos de renda. Não era preciso mais para fazer a sua reputação; o cegamento das pessoas do mundo é tal, que quanto mais uma destas criaturas provou a sua desonestidade mais se inveja estar na sua lista; parece que o grau do seu aviltamento e da sua corrupção se torna a medida dos sentimentos que se ousa exibir por ela. Juliette tinha acabado de atingir o seu vigésimo ano, quando um certo conde de Lorsange, Cavalheiro Angevino, com cerca de quarenta anos, se apaixonou tanto por ela, que resolveu dar-lhe o seu nome; reconheceu-lhe doze mil libras de renda, garantiu-lhe o resto da sua fortuna se viesse a morrer antes dela; deu-lhe uma casa, pessoas, uma farda e uma espécie de consideração no mundo, que conseguiu em dois ou três anos fazer esquecer os seus começos. Foi aqui que a infeliz Juliette, esquecendo todos os sentimentos do seu nascimento e da sua boa educação; pervertida por maus conselhos e livros perigosos; pressionada a gozar sozinha, a ter um nome e nenhumas correntes, ousou entregar-se à ideia culpável de abreviar os dias do seu marido. Este projeto odioso concebido, acarinhou-o; consolidou-o infelizmente nesses momentos perigosos, em que o fÃsico se inflama com os erros do moral, instantes em que se recusa tanto menos, quanto então nada se impõe à irregularidade dos desejos, ou à impetuosidade dos desejos, e que a volúpia recebida só é viva em razão da multiplicidade dos travões que se quebram, ou da sua santidade. Desvanecido o sonho, se se voltasse a ser sensato, o inconveniente seria medÃocre, é a história dos erros do espÃrito; sabe-se bem que não ofendem ninguém, mas infelizmente vai-se mais longe. O que será, ousa-se dizer, a realização desta ideia, já que o seu mero aspeto acaba de exaltar, acaba de comover tão vivamente. Vivifica-se a maldita quimera, e a sua existência é um crime. Madame de Lorsange executou, felizmente para ela, com tanto segredo, que se colocou ao abrigo de qualquer perseguição, e que enterrou com o seu esposo os vestÃgios do delito espantoso que o precipitava para o túmulo. Voltada a ser livre e condessa, Madame de Lorsange, retomou os seus antigos hábitos; mas, acreditando ser alguma coisa no mundo, colocou na sua conduta um pouco menos de indecência. Já não era uma rapariga mantida, era uma rica viúva que dava jantares bonitos, em casa da qual a Corte e a cidade estavam demasiado felizes por serem admitidas; mulher decente, numa palavra, e que, no entanto, se deitava por duzentos luÃses, e se dava por quinhentos por mês. Até aos vinte e seis anos, Madame de Lorsange ainda fez conquistas brilhantes; arruinou três Embaixadores estrangeiros, quatro Arrendatários-gerais, dois Bispos, um Cardeal e três Cavaleiros, das Ordens do Rei; mas, como é raro parar depois de um primeiro delito, sobretudo quando correu felizmente, a infeliz Juliette tornou-se negra de dois novos crimes semelhantes ao primeiro; um para roubar um dos seus amantes que lhe tinha confiado uma soma considerável, ignorada pela famÃlia deste homem, e que Madame de Lorsange pôde colocar ao abrigo por esta ação horrÃvel; o outro para ter mais depressa um legado de cem mil francos que um dos seus adoradores lhe fazia em nome de um terceiro, encarregado de devolver a soma após o falecimento. A estes horrores Madame de Lorsange juntava três ou quatro infanticÃdios. O medo de estragar a sua figura bonita, o desejo de esconder uma dupla intriga, tudo a fez tomar a resolução de sufocar no seu seio a prova das suas devassidões; e estes delitos ignorados como os outros não impediram esta mulher esperta e ambiciosa de encontrar diariamente novas vÃtimas. É, portanto, verdade que a prosperidade pode acompanhar a pior conduta, e que, mesmo no meio da desordem e da corrupção, tudo o que os homens chamam felicidade, pode espalhar-se sobre a vida; mas que esta verdade cruel e fatal não alarme; que o exemplo da desgraça perseguindo por toda a parte a virtude, e que vamos em breve oferecer, não atormente mais os homens honestos; esta felicidade do crime é enganosa, é apenas aparente; independentemente da punição certamente reservada pela Providência à queles que os seus sucessos seduziram, não alimentam no fundo da sua alma, uma verme que os rói sem cessar, os impede de se alegrarem com estes falsos brilhos, e não deixam na sua alma, em vez de delÃcias, senão a lembrança dilacerante dos crimes que os conduziram onde estão. Quanto ao infeliz que o destino persegue, tem o seu coração para consolação, e as alegrias interiores que as suas virtudes lhe proporcionam, logo o desobrigam da injustiça dos homens. Tal era, portanto, o estado dos negócios de Madame de Lorsange, quando o Sr. de Corville, com cinquenta anos, gozando do crédito e da consideração, que descrevemos acima, resolveu sacrificar-se inteiramente por esta mulher, e fixá-la para sempre a ele. Seja atenção, sejam procedimentos, seja polÃtica por parte de Madame de Lorsange, tinha-o conseguido, e já vivia com ela há quatro anos, absolutamente como com uma esposa legÃtima, quando a aquisição de uma terra muito bonita perto de Montargis, os obrigou a ambos a passar algum tempo nesta ProvÃncia. Numa noite, em que a beleza do tempo os tinha feito prolongar o seu passeio, da terra que habitavam até Montargis, demasiado cansados ambos para empreenderem o regresso como tinham vindo, pararam na estalagem onde desce a carroça de Lyon, com o objetivo de enviar de lá um homem a cavalo para lhes procurar uma carruagem. Repousavam numa sala baixa e fresca desta casa, dando para o pátio, quando a carruagem de que acabamos de falar, entrou nesta hospedaria. É um divertimento bastante natural observar a descida da carruagem: pode-se apostar no género das personagens que lá se encontram, e se se tiver nomeado uma Catin, um Oficial, alguns Abades e um Monge, está-se quase sempre certo de ganhar. Madame de Lorsange, levanta-se, o Sr. de Corville segue-a, e ambos divertem-se a ver entrar na hospedaria a sociedade trôpega. Parecia que já não havia ninguém na carruagem quando um Cavaleiro de polÃcia, descendo da cesta, recebeu nos seus braços de um dos seus camaradas igualmente colocado no mesmo lugar, uma rapariga de vinte e seis a vinte e sete anos, vestida com um pequeno casaco indiano mau, e envolvida até à s sobrancelhas, com um grande manto de tafetá preto. Estava amarrada como uma criminosa e com uma tal fraqueza, que teria certamente caÃdo se os seus guardas não a tivessem sustentado. A um grito de surpresa e de horror que escapa a Madame de Lorsange, a jovem vira-se, e deixa ver com a estatura mais bonita do mundo, a figura mais nobre, a mais agradável, a mais interessante, todos os encantos enfim os mais no direito de agradar, tornados mil vezes mais picantes ainda por esta terna e comovente aflição que a inocência acrescenta aos traços da beleza. O Sr. de Corville e a sua amante não podem deixar de se interessarem por esta miserável rapariga. Aproximam-se, perguntam a um dos guardas o que fez esta infeliz.
— Acusam-na de três crimes, responde o Cavaleiro, trata-se de assassinato, de roubo e de incêndio; mas confesso-lhe que o meu camarada e eu nunca conduzimos criminoso com tanta repugnância; é a criatura mais doce, e que parece a mais honesta.
— Ah, ah, diz o Sr. de Corville, não poderá haver ali algumas destas asneiras comuns nos Tribunais subalternos… e onde se cometeu o delito?
— Numa estalagem a algumas léguas de Lyon, foi Lyon que a julgou; vai segundo o costume, a Paris para a confirmação da sua Sentença, e voltará para ser executada em Lyon.
Madame de Lorsange que se tinha aproximado, que ouvia este relato, testemunhou baixo ao Sr. de Corville a vontade que teria de aprender da boca desta própria rapariga, a história das suas desgraças, e o Sr. de Corville que formava também o mesmo desejo, comunicou-o aos dois guardas identificando-se perante eles. Estes não julgaram dever opor-se, decidiu-se que era preciso passar a noite em Montargis; pediu-se um apartamento cómodo; o Sr. de Corville respondeu pela prisioneira, desamarraram-na; e quando lhe fizeram tomar um pouco de alimento, Madame de Lorsange, que não podia deixar de tomar para si o interesse mais vivo, e que sem dúvida dizia para si mesma, «esta criatura, talvez inocente, é, no entanto, tratada como uma criminosa, enquanto tudo prospera à minha volta de mim… de mim que me sujei de crimes e de horrores;» Madame de Lorsange, digo eu, assim que viu esta pobre rapariga um pouco refeita, um pouco consolada pelas carÃcias que se apressavam a fazer-lhe, encorajou-a a dizer por que evento, com uma fisionomia tão doce, se encontrava numa circunstância tão funesta.
— Contar-lhe a história da minha vida, Madame, disse esta bela infeliz, dirigindo-se à Condessa, é oferecer-lhe o exemplo mais flagrante das desgraças da inocência, é acusar a mão do Céu, é queixar-se das vontades do Ser supremo, é uma espécie de revolta contra as suas intenções sagradas… não o ouso…
Lágrimas correram então com abundância dos olhos desta interessante rapariga, e depois de lhes ter dado curso um instante, começou o seu relato nestes termos:
— Permitir-me-á esconder o meu nome e o meu nascimento, Madame; sem ser ilustre, é honesto, e eu não estava destinada à humilhação em que me vê reduzida. Perdi muito jovem os meus pais; acreditei com o pouco auxÃlio que me tinham deixado, poder esperar um lugar conveniente, e, recusando todos os que não o eram, comi, sem me aperceber, em Paris onde nasci, o pouco que possuÃa; quanto mais me tornava pobre, mais era desprezada; quanto mais precisava de apoio, menos esperava obtê-lo; mas de todas as durezas que experimentei nos começos da minha infeliz situação, de todos os propósitos horrÃveis que me foram ditos, só lhe citarei o que me aconteceu em casa do Sr. Dubourg, um dos mais ricos tratantes da Capital. A mulher em casa de quem eu morava tinha-me encaminhado para ele, como para alguém cujo crédito e riqueza podiam mais seguramente atenuar o rigor do meu destino, depois de ter esperado muito tempo na antecâmara deste homem, fui introduzida; o Sr. Dubourg, com quarenta e oito anos, tinha acabado de sair da sua cama, enrolado com um roupão flutuante que mal escondia a sua desordem; preparavam-se para o pentear; ele mandou retirar-me perguntou-me.