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Memorias Posthumas de Braz Cubas

por Machado de Assis

O autor hesita

Súbito ouço uma voz:--Olá, meu rapaz, isto não é vida! Era meu pae, que chegava com duas propostas na algibeira. Sentei-me no bahú e recebi-o sem alvoroço. Elle esteve alguns instantes de pé, a olhar para mim; depois estendeu-me a mão com um gesto commovido:

--Meu filho, conforma-te com a vontade de Deus.

--Já me conformei, foi a minha resposta, e beijei-lhe a mão.

Não tinha almoçado; almoçámos juntos. Nenhum de nós alludiu ao triste motivo da minha reclusão. Uma só vez fallámos nisso, de passagem, quando meu pae fez recahir a conversa na Regencia; foi então que alludiu á carta de pezames que um dos Regentes lhe mandara. Trazia a carta comsigo, já bastante amarrotada, talvez por havel-a lido a muitas outras pessoas. Creio haver dito que era de um dos Regentes. Leu-m'a duas vezes.

--Já lhe fui agradecer este signal de consideração, concluiu meu pae, e acho que deves ir tambem...

--Eu?

--Tu; é um homem notavel, faz hoje as vezes de Imperador. Demais trago commigo uma idéa, um projecto, ou... sim, digo-te tudo; trago dous projectos, um logar de deputado e um casamento.

Meu pae disse isto com pausa, e não no mesmo tom, mas dando ás palavras um geito e disposição, cujo fim era caval-as mais profundamente no meu espirito. A proposta, porém, desdizia tanto das minhas sensações ultimas, que eu cheguei a não entendel-a bem. Meu pae não fraqueou e repetiu-a; encareceu o logar e a noiva.

--Aceitas?

--Não entendo de politica, disse eu depois de um instante; quanto á noiva... deixe-me viver como um urso, que sou.

--Mas os ursos casam-se, replicou elle.

--Pois traga-me uma ursa. Olhe, a Ursa-Maior.

Riu-se meu pae, e depois de rir, tornou a fallar serio. Era-me necessaria a carreira politica, dizia elle, por vinte e tantas razões, que deduziu com singular volubilidade, illustrando-as com exemplos de pessoas do nosso conhecimento. Quanto á noiva, bastava que eu a visse; se a visse, iria logo pedil-a ao pae, logo, sem demora de um dia. Experimentou assim a fascinação, depois a persuasão, depois a intimação; eu não dava resposta, afiava a ponta de um palito ou fazia bolas de miolo de pão, a sorrir ou a reflectir; e, para tudo dizer, nem docil nem rebelde á proposta. Sentia-me aturdido. Uma parte de mim mesmo dizia que sim, que uma esposa formosa e uma posição politica eram bens dignos de apreço; outra dizia que não; e a morte de minha mãe me apparecia como um exemplo da fragilidade das cousas, das affeições, da familia...

--Não vou daqui sem uma resposta definitiva, disse meu pae. De-fi-ni-ti-va! repetiu, batendo as syllabas com o dedo.

Bebeu o ultimo gole de café; repotreou-se, e entrou a fallar de tudo, do senado, da camara, da Regencia, da restauração, do Evaristo, de um coche que pretendia comprar, da nossa casa de Matta-cavallos... Eu deixava-me estar ao canto da mesa, a escrever desvairadamente n'um pedaço de papel, com uma ponta de lapis; traçava uma palavra, uma phrase, um verso, um nariz, um triangulo, e repetia-os muitas vezes, sem ordem, ao acaso, assim:

arma virumque cano

A

Arma virumque cano

arma virumque cano

arma virumque

arma virumque cano

virumque

Machinalmente tudo isto; e, não obstante, havia certa lógica, certa deducção; por exemplo, foi o _virumque_ que me fez chegar ao nome do proprio poeta, por causa da primeira syllaba; ia a escrever _virumque_--e sae-me _Virgilio_, então continuei:

Vir Virgilio

Virgilio Virgilio

Virgilio

Virgilio

Meu pae, um pouco despeitado com aquella indifferença, ergueu-se, veiu a mim, lançou os olhos ao papel...

--Virgilio! exclamou. És tu, meu rapaz; a tua noiva chama-se justamente Virgilia.

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