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A Senhora Viscondessa

por S. de Magalhaes Lima

Capítulo 10

IX

Pobresa e miseria

É singelo o quadro; tocante até.

Uma pobre velha, habitando uma alcova humida e sombria, treme de frio, gemendo por vezes. Serve-lhe de leito uma pouca de palha enxarcada e nauseabunda. Ao lado uma panella velha, tosca e ligeira, cuja grande utilidade é aparar a agua, que a miudo se despenha do telhado.

Por uma fresta, lavrada no alto da parede, côam-se tristemente uns tenues raios de luz. Dir-se-hia que á desgraça até o sol é vedado.

Pelo soalho esburacado e carcomido occultam-se uns bichos infernaes, molles, gellalinosos. O tecto, artisticamente cinzelado pelo longo e imperioso trabalho da aranha, quasi se não distingue d'entre a escuridão que cerca o aposento.

E Maria, a desventurada creatura, jaz immersa em intima dôr, abandonada aos vermes que lhe róem as carnes syphiliticas, negras, cobertas de pustullas e de putrefacção. Querem conhecel-a?

Rica e formosa, fôra esta mulher. Cheia de venturas e mimos deslisára a sua vida, sem mais attritos do que aquelles que ordinariamente nos dá o tempo e a natureza.

Acariciada pelo anjo do amor e embalada nos sonhos gentis da opulencia,

Maria sentiu-se a um tempo admirada e requestada pela mais guapa fidalguia do seu paiz.

Seus paes, habituados áquelle unico thesouro, eram inexoraveis no cumprimento das suas profundas e intimas affeições. Nada exigia, que para logo não fosse satisfeito. O mais leve capricho tentavam-no elles realisar com a satisfação de um escravo, que por sua senhora arriscára a vida.

Assim cresceu aquelle arbusto. Descuidado e candido, não houve vento que lhe açoutasse as tenras vergontesa. O sol, saúdava-o todas as manhãs, e a primavera encontrou-o viçoso, coberto de flôr e de esperanças.

Veiu, porém, a tempestade. O sul rugiu temeroso. No espaço precipitaram-se as nuvens, prenhes de electricidade. A arvore, mal segara, tremeu na sua raiz, e desappareceu da terra.

Onde estava Maria? Porventura iria ella em busca de algum anjo bom, seu irmão?

Fragil, como qualquer mulher, Maria não ousára resistir á fatalidade que a dominava. Fugiu. Fugiu romanticamente, por um lençol, atado á janella de sacada, e á meia-noite.

Como quer que fosse o facto, em si escandaloso, excitou naturalmente a indignação publica. A burguesia commentou-o á noite nos clubs e cafés, concluindo por ver n'elle uns laivos de obscenidade, impossivel de admittir-se no seio de uma familia honesta e séria.

Em que pese, porém, aos nossos indigenas sociaes, o caso era mundano, e frequentissimo até em mulheres demasiadamente imaginosas.

Ao cabo de dois annos, Maria resuscitou; não para a vida, mas para a morte.

O rosado do rosto transformára-se-lhe subitamente numa pallidez transparente, sepulchral, doentia. Os olhos, encovados, haviam perdido o seu primitivo brilho. Nada existia já que não fosse triste e profundamente doloroso.

A mulher virtuosa cahira victima indefesa, ás mãos de um maltrapilho infame. O miseravel seductor, retirára comsigo o seu dinheiro e o seu carinho.

Abandonada a si, Maria, refractaria ao trabalho, sem pae, sem mãe, sem irmãos, sem amigos, olhou em redor de si, e viu a sociedade que de longe lhe acenava.

Correu a ella com um filho nos braços. Engolphou-se nos seus prazeres, trocou a honra pelo pão quotidiano, pôz em almoeda a consciencia pelo futuro do innocente, que ao lado d'ella soffria e chorava tambem.

Era nobre, e pagava pela corrupção commum...

A mocidade ganhou-a, como poude. Viveu-a, e tanto bastava.

Depois chegou a velhice e a tristesa; depois a pobresa e a miseria.

Julio, a este tempo já era crescido, e velava pela mãe sollicitamente.

De que poderiam comtudo valer os minguados ceitis com que lhe era remunerado o seu trabalho de todos os dias?

Se elle e ella adoecessem, quem mais os trataria? quem, porventura, se amerciaria d'aquella terrivel indigencia?

--Ninguem!...--respondia-lhe logo a consciencia.

E a consciencia não costuma mentir.

* * * * *

Julio viera, pois, da fabrica e encontrára sua pobre mãe moribunda, sem remedio, sem medico e sem dinheiro.

Parou no limiar da porta. Encarou a velha de frente e viu-lhe os braços estendidos em signal de compaixão. Extactico, cego, allucinado, entrou-se o desventurado moço em profundo scismar.

Ao descerrar as palpebras amortecidas por um somnambulismo infernal--Julio, emxugando os olhos, com uma ponta da blusa, sorriu-se, como se do céu houvera baixado uma inspiração sagrada.

--Desgraçado de mim!--exclamava elle doridamente.--Trabalhar um dia inteiro e não ter á noite que comer... É triste... muito triste...

Esgotar o sangue das minhas veias, em alheio proveito, e receber, no fim da semana, um vil salario, que mal me chega ás primeiras necessidades da vida... É infame... muito infame... Alugar as minhas faculdades e o meu pensamento, sem outro fim que não seja o proprio aviltamento e a propria degradação... É vil... muito vil.. Oh! meu Deus!... antes a morte! mil vezes a morte...

E assim cahiu inanimado o honrado moço sobre o desventurado cadaver de sua santa mãe.

A scena era realmente tão obscura, que mal poderia provocar as vistas d'esse mundo, que é louco e grande.--Passou, como tudo o que é modesto, desapercebida e ignorada.

* * * * *

No dia immediato um raio de sol, espreitando muito de soslaio pela fresta do telhado, apenas encontrára a solidão e a ruina, na mesma alcova, onde Julio e sua mãe, por tanto tempo agonisaram.

No cemiterio mexia-se uma porção de terra, afim de occultar aos olhos do mundo o desditoso cadaver d'aquella santa e virtuosa velha.

Julio nem sequer achára uma mortalha, para envolver o corpo de sua mãe.

Rasgou a blusa n'umas poucas de tiras, e, assim auxiliado, por mais alguns farrapos, que ainda lhe restavam d'outr'ora, arranjou a cobrir o corpo infectado e pestilente de sua mãe. Porque o principal effectivamente era occultar o crime d'esta grande peccadora...

Entretanto a sociedade ria-se nos botequins, e as tabernas continuavam sempre atulhadas de povo.

O mesmo Julio teve a coragem de transportar o cadaver para o cemiterio e de ahi lhe prestar as derradeiras homenagens.

Como não havia carniça, não appareceu o abutre!

Consciencia de Cain é jóia que só se mercadeja no alto mercado.

Foi mais uma lei do mundo.

Convêm, comtudo, registral-a para desafogo de todos nós.

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