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A Senhora Viscondessa

por S. de Magalhaes Lima

Capítulo 14

XIII

Continuação

Seriam 2 horas da madrugada. A lua brilhava em pleno espaço. O Tejo era

Sereno. Apenas de longe em longe um rumor surdo, vago, incomprehensivel, acordava a naturesa do seu pacifico somno nocturno.

Por sobre as mansas aguas deslisava um bote suavemente. As estrellas, reflectindo-se na bahia, similhavam, pela vivacidade irrequieta do brilho, um cardume de peixes em debandada. A viração era fresca, e deliciosamente salutar.

Cantavam os remeiros, umas tristes canções, repassadas de melancholia e de patriotismo. Os remos, batendo na agua, produziam o effeito de um chrystal facetado, em desordem, mas atrahente.

Nem uma dissonancia sequer apparecia n'este immenso panorama, a um tempo eloquente e respeitavel.

É que a alma da naturesa, symbolo do infinito sobre a terra, é incomparavelmente superior á alma do homem, expressão do contingente e do relativo.

As montanhas, elevavam-se a distancia, na firme immobilidade de phantasmas. Dormia a cidade socegadamente. No convez de um navio mercante ladrava um cão da Terra-Nova. Nas embarcações de guerra ouvia-se distinctamente e com rarissimos intervallos o passo moroso das sentinellas.

Os catraeiros cantavam sempre: «Vai alta a lua! na mansão da morte

Já meia noite com vagar soou;

Que paz tranquilla! dos vaivens da sorte

Só tem descanço quem ali baixou.»

E ao longe os echos repetiam a ballada do poeta.

O escaler abicou, emfim, á praia. A aurora começava a roxear o horisonte. Uma luz delicada, fina, como a porcellana, transparecia por entre nuvens.

Um vulto de homem, embuçado n'um largo capote, saltou á praia.

Julio, fugitivo, tomára a prompta resolução de por algum tempo se occultar no bairro de Alcantara.

Duas palavras ainda sobre elle:

Julio era um rapaz ambicioso. Amava egualmente a liberdade e o trabalho.

De têmpera rija, era o seu caracter. Odiando o jesuitismo, por instincto, não poucas vezes chegára a commetter excessos e desvarios.

Frequentava a taberna, do mesmo modo que nós frequentamos o café; ali discursava com os companheiros, concluindo sempre em favor da liberdade e contra a reacção.

Na noite em que o prenderam exclamára elle para os camaradas de trabalho: «Nem sempre a escravidão ha de pesar sobre nós. Quem tiver coragem, acompanhe-me. Uma vez que não querem a paz, acceitaremos a guerra, mas uma guerra sem tréguas, uma guerra eterna e violenta.»

D'este modo Julio era a perfeita personificação do escravo, que, sentindo a grilheta ao pé, deseja emancipar-se e tornar-se homem, como os seus similhantes.

Alfredo, não tendo coragem para realisar os seus planos, embora bom e generoso no fundo, tornara-se devasso, e adormecera inconscientemente nos braços da sensualidade estupida. Julio, não! Julio estava puro; reagia ainda com heroicidade contra a geral corrupção da sociedade.

Entre estes dois homens, ambos moços e sympathicos, existia uma differença apenas: Alfredo pertencia á mocidade dos cafés, incomparavelmente mais inutil que a mocidade da taberna, composta, na generalidade, por operarios honestos, como Julio.

Mais tarde, porém, nos encontraremos novamente com Alfredo.

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