Capítulo 16
XV
Primeiros amores
Um sol ardente batia de chapa sobre um eirado de pedra, em cujo espaço se abrigava cuidadosamente o fructo de uma boa colheita de milho.
Ao lado, e fóra do alpendre, elevavam-se tres medas de palha, unico alimento annual, aos pacientes trabalhadores d'aquelle campo.
Por entre as louras e amontoadas espigas brincavam em candida innocencia duas formosas e galantes creanças.
A tarde declinava docemente. No pinheiral longinquo gemia a rôla uns tristes e magoados queixumes. Os cantos jubilosos dos lavradores iam perder-se nas solidões distantes. O céu era sem nuvens; e as aguas de chrystal, mansas e innocentes, como as lagrimas de uma creança, deslisavam com ligeiros attritos, atravez dos terrenos pedregosos.
Um cão preto, guardador de gados, saltando alegremente, annunciára em repetidas curvas, a proxima chegada de seu dono.
A pouca distancia d'ali assomou logo um velhote de rosto prasenteiro e agradavel. As duas creanças, erguendo-se de um pulo, desappareceram por entre a sombra do arvoredo.
Apenas um moço, altivo, de tez morena e bronseada, permanecêra na mesma posição sem dar por cousa alguma do que em de redor d'elle se havia passado.
O velho chegou, trazendo os dois pequenos pela mão. Olhou com piedade para a estatua da tristesa, que tão profundamente o impressionava, abeirou-se d'ella, e prorompeu nos seguintes e magoados termos: --Então que é isso, meu Julio? tão triste e pesaroso? já lhe não valem de nada as palavras d'este velhote, que tanto do coração lhe quer? e esta familia que é a sua? Ora vamos, mostre-se alegre para comnosco.
Aperte-me esta mão que é rude, mas honrada. Seja-me franco, se alguma cousa o afflige. Nada receie. Olhe que todos nós o estimamos devéras.
--Meu Pae...--exclamava Julio, debulhado em lagrimas,--meu bom Pae...
O lavrador, puxando por um lenço encarnado, que habitualmente trazia no bolso direito da jaqueta, muito de soslaio limpou os olhos humedecidos.
As duas creanças, acompanhando-o, como que por instincto lhe beijavam as mãos bemfazejas.
O sol, atufando-se nas aguas do oceano, reverberava por sobre a terra silenciosa os seus derradeiros raios. A brisa era tépida, como a noite.
Algumas folhas sêccas, prenuncio do outomno, alastravam o sólo.
Julio entrara-se em doloroso scismar. A sós comsigo mesmo, pensou muitas vezes no suicidio, companheiro e amparo dos que soffrem. Mas não. Uma esperança o alimentava. Um vago ideal o seduzia.
Após profundo meditar alçou a cabeça para o céu. A imaginação cedera o seu logar á intelligencia. Julio estava salvo. A seu lado respirava um archanjo celeste.
Olhou. Cecilia, a pomba immaculada, depositara aos pés do seu amante uma bolsa, cheia de libras, thesouro de trabalho e de economia.
Que esplendida creança! e que nobilissima abnegação!
--Tu aqui, Cecilia?...
--Sim, aqui, ao pé de ti, meu Julio. Tudo adivinhei. Se é preciso que partas, parte: vae procurar a fortuna, por que tanto anceias. No entanto lembra-te sempre de que deixas n'esta casa não só um pae que te estima mas tambem uma mulher que te ama.
--Cecilia, meu doce amor, como eu quizera ser feliz comtigo. Mas tu bem vês, minha filha: sou pobre, nada tenho. Repudiado pela sociedade, que me julga um criminoso, apenas a tua e a minha desgraça poderia fazer n'este momento. Parto ámanhã. Com o nome mudado, entrarei n'uma fabrica.
Trabalharei, trabalharei muito. E tu, Cecilia, que és boa e meiga, como as estrellas do céu, não me esqueças nunca nas tuas piedosas orações.
Deus ha de ouvir-te, porque Deus tambem é bom. Um dia, quem sabe?
voltarei rico a esta casa. Tenho fé em Deus que hei de voltar. E tu tambem tens fé, não é assim, Cecilia?
--Fé, meu amigo, só eu tenho na morte. Alguma cousa me diz que a felicidade não foi feita para nós. Paciencia. Que, ao menos, o céu nos receba!--é este o meu maior desejo.
Um curto, mas doloroso intervallo se seguiu a estas palavras. Cecilia, sufocada pelos soluços rasgava com os proprios dentes as pontas do avental, chorando amargamente.
Julio envidava todos os seus esforços afim de a consolar. Nem um nem outro, porém, sabiam o que faziam.
--Vamos, meu Julio, assim é preciso. Animo, animo e adeus...
Um abraço os reuniu; e um beijo--um prolongado e triste beijo os separou.
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Oito dias depois, Cecilia mostrava a seu pae uma carta de Julio, cuja leitura elle terminou chorando.
--Pobre rapaz!--exclamava o bom do velho, limpando os olhos com as costas da mão.
E voltando-se para sua filha, começou de beijal-a ardentemente.
Doce esperança do céu lhe illuminára a fronte, encanecida na virtude e no trabalho!