Capítulo 22
XXI
Considerações
A nossa sociedade é essencialmente burguesa. Actualmente todos gritam contra o burguezismo, e entretanto ninguem está isento d'esse peccado, se peccado se lhe póde chamar. E cousa singular! ao passo que a aristocracia vai descendo até ás regiões do plebeismo, a burguezia, por seu turno, eleva-se, e tenta em breve ser a Excellencia do paiz.
O moderno fidalgo portuguez não existe já. Antigamente um aristocrata, pur sang, tornava-se respeitavel por uma educação sisuda e por uma illustração opulenta. Hoje dá-se perfeitamente o contrario. O bom fidalgo, faia de recente data, abandalha-se na convivencia dos cocheiros, tocando o fado pelas ruas, durante a noite, picando touros, usando jaqueta e facha de seda e vivendo entregue á ociosidade, que é o vicio, e á embriaguez, que é a doença e muitas vezes a morte.
Outr'ora havia um certo pundonor em conservar intactas as tradições de familia, demonstrando-se assim que a honradez do nome é um dever sacrosanto para verdadeiros fidalgos.
Agora não! Uma pateada, dada num theatro a uma actriz, um conflicto levantado em qualquer praça publica, uma desobediencia á authoridade, um adulterio commettido com a mulher do seu amigo intimo: tudo isto são peripecias galantes para a nossa mocidade, que, á falta d'outro, tem o estimulo do egoismo e da arruaça.
Ora eu peço licença a s. ex.^as, os srs. viscondes, para lhes notar que não é esse o caminho da nobresa. Deus me defenda de offender melindres, que muito longe estão d'esta regra. Excepções existem, e aliás excepções respeitaveis.
Afigura-se-nos, porém, que a instrucção é presentemente mais peculiar á burguesia do que á aristocracia. D'entre os burgueses raro é aquelle que não tem a sua livraria sufficientemente enriquecida de bons auctores, e rarissimo ainda mais aquelle que não lê tres ou quatro jornaes todos os dias.
Os filhos da burguesia seguem as escolas publicas, occupam os primeiros logares do estado, e possuem actividade e intelligencia em larga escala.
Onde existe maior gráu de moralidade: na aristocracia ou na burguesia? E o trabalho, d'onde sahe elle? E as revoluções, a quem as devemos nós, senão á burguesia?
Não ha classe alguma da sociedade que, passado um certo numero de annos, se não corrompa.
As classes são na sociedade como as instituições: gastam-se e aniquilam-se, decorrida uma certa phase historica.
A burguesia vai cahindo nos mesmos defeitos da antiga nobresa--sabemol-o; sem embargo a burguesia tem ainda vantagens sobre a aristocracia.
Entre a burguesia e a plebe existe, porém, uma outra classe, que ao mesmo tempo participa da segunda pelo seu nascimento e da primeira pela sua actividade: esta classe não tem nome; vive do producto das suas lojas, das suas propriedades e da sua economia. A ella pertencia o sr.
Francisco Alves, expressão de bondade christã e de virtude evangelica.
Aos domingos encontram-se estes pequenos negociantes--que outro nome não sei eu que elles tenham--em longo e aturado passeio pelos campos e pelas estradas. Ahi, reunidos em familia, comem o seu pedaço de queijo com pão, e bebem o seu meio quartilho de vinho. E isto apenas aos domingos, que, aos dias de semana, a alvorada vem quasi sempre encontral-os no trabalho.
O sr. Alves enfileirara-se n'este grupo ignorado, e delle herdára os habitos e as tradicções.
E o certo é que se não foi um anjo, na verdadeira acepção da palavra, foi pelo menos um bom homem, honrado e caritativo.