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A Senhora Viscondessa

por S. de Magalhaes Lima

Capítulo 24

XXIII

Transição

Na escolha do espectaculo manifesta-se, em geral, o bom gosto do espectador. Não quero eu com isto dizer que, muitas vezes, não seja a curiosidade o motor das nossas acções; mas, emfim, o que cumpre saber-se é que n'um theatro, n'um circo, n'uma exposição está, por via de regra, representada a civilisação de um povo.

O theatro é hoje o rendez vous da moda. Nos espectaculos, e á vista de dramas perfeitamente phantasticos e inuteis, aprendem as nossas elegantes a soletrar os primeiros rudimentos do amor, do coquettismo e as supremas illusões.

Durante a representação, que devia ser eschola e estudo, occupam-se os rapases em averiguar procedencias amorosas, em discutir escandalos, em calumniar mulheres, em fomentar pequenas intrigas de bastidor, emfim, em passar a vida, rindo á custa dos similhantes.

Ora a missão do theatro não póde, por fórma alguma, estar reduzida a um mero passa-tempo, sem realidade e sem vantagem, que se possa dizer immediata. O theatro não é simplesmente um divertimento para os olhos, mas ainda mais uma lição para o espirito. Não se tracta apenas de seguir a moda, o figurino, com receio de que os outros nos taxem de retrogados, de inconvenientes, de provincianos. Por modo algum. Aqui o caso muda um tanto de figura. É preciso que da nossa parte, haja o bom gosto na escolha e o bom-senso da critica. Aliás não passaremos nunca de uns miseraveis authomatos, sem consciencia, sem dignidade e sem brio.

Um dos primeiros empenhos do nosso seculo é agradar. E se é certo que o habito não faz o monge, tambem não é menos certo que o monge se conhece pelo habito.

É á França, aquella França egualmente grande pelo pensamento e pela frivolidade, que nós devemos a introducção dos figurinos na sociedade europêa. E note-se que o figurino em tudo preside actualmente, por infelicidade nossa--na mesa, na litteratura, na industria, no commercio, nas artes, na sciencia, absolutamente em tudo. Nas altas classes sociaes pelo trajo de um homem avalia-se o trajo de todos os outros homens. No campo da poesia pelo realismo de um poeta avalia-se o realismo de todos os outros poetas. E assim seguidamente; porque a uniformidade, embora o não queiram, é uma lei dos nossos costumes e das nossas cousas.

A elegancia é uma prova de bom gosto, indubitavelmente. Mas a elegancia, como tudo o que nos pertence, deve ser individual, variada, como o sentimento humano, e distincta, como o gosto de cada um, isto é deve ser original.

Durante o inverno, por exemplo, vai-se ao theatro lyrico, não tanto porque a musica nos delicie o ouvido e nos eleve o espirito, obrigando-nos á concentração e á melancholia, mas, sim, e principalmente, porque é do bom-tom, é chic ter assignatura em S.

Carlos.

E apregoam-se já os beneficios da musica classica, como se a nossa educação e o nosso temperamento nos permittissem ser uns perfeitos entendedores das harmonias eminentemente profundas de Mozart, de

Beethowen, de Sthephenheller, de Schubert e d'outros mais.

D'aqui infere-se naturalmente que nós, um povo peninsular em quem deviam brotar as magneticas expansões e os ardentes enthusiasmos, apenas somos uns meros escravos da moda, indolentes por habito, sem o ideal que seduz, e privados do raciocinio que illustra.

Os risos, francamente abertos e sinceramente verdadeiros, sóem ainda encontrar-se nas classes medias, semi-burguesas, para assim o dizer. Só o trabalho póde dar alegria. E porisso os que não trabalham conservam o sorriso quasi permanentemente ao canto da bocca, um sorriso amarello, felino, sorriso desgostoso e desconfiado.

O sr. Francisco Alves sabia rir, porque tambem sabia trabalhar. Não frequentava os theatros, porque, á similhança dos da sua egualha, desconhecia a moda totalmente. Vivia para a familia e com ella se divertia. Tambem tinha amigos. Aos domingos chamava-os, reunia-os a si, e ia para o campo, ficando-se por lá até á noite.

Comendo, bebendo e rindo á vontade, o sr. Alves estava no seu paraiso, longe da serpente que tentou Eva a comer do fructo prohibido, perfeitamente a bem com Deus e comsigo mesmo.

Bem hajam os que, como elle, comprehendem por este modo a felicidade sobre a terra!

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