Capítulo 27
XXVI
A Viscondessa
São decorridos quatro annos.
A Viscondessa, docemente reclinada numa chaise longue, lê os annuncios do Diario de Noticias, sorvendo, de quando em quando, uns gólos de café, com a evangelica paciencia de uma mulher aborrecida.
Ao longo da parede do quarto destacam alguns quadros, representando, entre outras, as magestosas imagens de Ninon de Lenclos, de Marion
Delorme, de Madame Pompadour, da Dama das Camelias, etc.
São nove horas da noite. Alfredo chega; põe o chapéu em cima d'uma ètagere, onde, por acaso, se encontram algumas musicas em desalinho, e, accendendo resignadamente um charuto havano, vem sentar-se n'uma cadeira, defronte da Viscondessa.
Virginia, entrando pouco depois, trouxe uma bandeja de prata, coberta de pequenas garrafas de licôr.
Alfredo sorri-se, o, com os dedos da mão esquerda, dá um geito gracioso ás guias do bigode.
A Viscondessa, erguendo-se, dirige-se, a passo lento e medido, na direção da porta de entrada.
--Então já Mabilia? (Era este o nome da Viscondessa.) Porque eu entrei, assim te retiras immediatamente. Comprehendo tudo. Declaraste-me um amor profundo, ethéreo, como só o sabe ter uma virgem, e hoje nem sequer alimentas por mim uma indifferença vulgar, uma d'estas indifferenças que um estranho facilmente dispensaria a outro estranho. Pobre de ti, desgraçada, que jámais serás feliz n'esta vida... Quizeste ser rainha, não é verdade? ao meu amor unico preferiste uma coterie numerosa, aduladora, que te lisongiasse o paladar já extincto? Pois bem: tu te arrependerás um dia. Até lá, porém, lembra-te que será eterna e implacavel a minha vingança, eterna como a Providencia e implacavel como a tyrannia.
--E és tu quem me falla em vingança; tu, Alfredo, a quem eu, ainda pura, loucamente entreguei o meu coração e o que é mais ainda a minha honra...
tu! o miseravel, que jurando amar-me te rias de mim nos botequins e nos restaurantes; tu, emfim, o cynico seductor da minha ingenuidade e da minha singelesa... oh! não... por Deus, não...
Alfredo, levantando-se, aproximou-se da Viscondessa, e, tomando-lhe a mão direita, que elle apaixonadamente comprimiu contra o peito, prorompeu nos seguintes termos: --Mas ouve, Mabilia--tu bem vês que eu te amo; pois não reparas como enlouqueço, se me negas a tua affeição? oh! não! tu não has de ser tão cruel, que me despreses assim de um momento para o outro, não é verdade!
Ora escuta: não vês como bate este nobre coração? e tu has de deixal-o assim... não... tu és boa, eu bem sei, e serias incapaz de commetter um crime...
--Alfredo!... Alfredo!...
--Falla, Mabilia... dize, dize que ainda me amas só uma vez... e eu serei teu, teu para sempre...
--Que te amo!... oh! se te amo!...
E a Viscondessa, pallida, cahiu desmaiada nos braços do seu amante.
No horisonte uma nuvem, passando, toldara momentaneamente o reflexo do luar. Um doce silencio envolvia o aposento da Viscondessa, cuja face livida se reflectira de um modo estranho á superficie de um longo espelho de Venesa. Junto d'ella, ajoelhado quasi, estava Alfredo, singularmente excitado e nervoso.
Um ignorado personagem, de longa barba até ao peito, baixo e gordo, assomou ao limiar da porta.
--É a segunda vez, senhor Alfredo, que tenho a honra de o convidar a sahir d'esta casa, disse o intruso.
--Com que direito?--retorquiu Alfredo, virando-se.
--Com o direito que me dá a minha honradez sobre a sua miseravel corrupção.
--Senhor!..
--Duas palavras ainda; por Deus! não vale zangar: esta senhora que ahi está prostrada e quasi morta, foi uma victima do seu cynismo, entende? É mister que tudo isso seja pago e quanto antes. Aqui tem.
E passando-lhe uma pistola para a mão, o desconhecido, medindo dez passos na sala, tomou a defensiva.
--Espero que a sua covardia se não estenderá ao ponto--continuou elle--de fazer com que, em vez de um duello, se dê um assassinato n'esta casa.
A Viscondessa, languida e sensual, descerrou as palpebras com infinda morbidez.
No relogio da sala soavam onze horas da noite.
No céu a lua era sem mancha.
Um leve ruido apenas se deixava ouvir, produzido pelos passos na calçada.
Subito uma detonação feriu os ares.
Alfredo, allucinado, desfechára a pistola sobre o desconhecido.
Uma nuvem de fumo envolveu, conjunctamente, a Viscondessa, a este tempo já restabelecida, e o seu mysterioso protector, inanimado, ferido e quasi cadaver.
Virginia correu veloz.
A Viscondessa, soluçando tristemente, chamava ainda Alfredo, sem de modo algum haver notado a sua rapida fuga.
--Como eu sou infeliz, meu Deus!--exclamou ella.
E ao longe só os echos lhe repetiram os queixumes magoados.