Capítulo 33
XXXII
Vestigios e ruinas
Similhante a um velho castello roqueiro, coberto de hera e parietarias, assim Alfredo vivia, doente, sem dinheiro, arruinado, mas generoso no fundo.
O seu fato preto, invariavel em todas as estações do anno, principiara de tornar-se velho e esverdeado pela acção corrosiva das chuvas doentias e dos sóes abrasadores. A camelia desapparecera-lhe para sempre do seu logar habitual. Emfim Alfredo, esgotados os derradeiros recursos patrimoniaes, era mais um authomato da indigencia, do que verdadeiramente um homem de espirito, critico e mordaz, qual n'outros tempos o havia sido.
A sua extrema liberalidade, com os donos dos restaurantes e cafés, fez com que, ainda durante algum tempo, elle podesse frequentar gratuitamente estas casas. Passados mezes, porém, os donos dos botequins, attentando-lhe nas botas rotas e nas calças fragmentadas, quasi o despediram de vez, mostrando-lhe uma má e feia catadura.
Em tão afflictivo lance recorreu aos camaradas d'outr'ora. Nenhum delles apparecia já. Todos--e cada um por sua vez,--o tentavam afastar.
Finalmente Alfredo, envergonhado de si e enfastiado do mundo, só de noite apparecia. Evitando os credores, e cosendo-se com a sombra das paredes, elle, o filho da luz e do magnetismo da vida, sollictou dos amigos o pão ázimo da desventura. Á sahida dos theatros--pois que em casa difficilmente os encontrava--esperava resignadamente a turba jubilosa dos espectadores conhecidos; por vezes conseguira d'ella uns magros vintens; por vezes tambem lhe sahira mallograda a tentativa.
Lembrou-se da Viscondessa, a quem, por um louco capricho, mentindo, affirmára que partiria para o Brazil. Tudo em vão. O orgulho--desgraçado orgulho!--abafára-lhe no peito esse passo miseravel.
Começou, então, o desalento, como um vidro moido, de consumir-lhe a, já de si, inutil existencia.
N'um momento lucido em que o espectro da fome, esqualido e magro como
Satan, se lhe desenhava deante dos olhos com as cem boccas hediondas,
Alfredo, a par de um suor glacialmente cortante, experimentou o que jámais e em sua vida experimentára--uma ancia de trabalho, para o qual, em verdade, nunca se sentira predisposto.
Embalde, porém, lhe foram essas visões. Passageiro e ephemero se lhe antolhou o iris da redempção sobre a terra.
Sonharia acaso? Trabalhar... e em que? A intelligencia havia-se-lhe apagado, ao contacto de uma embriaguez quasi habitual. Sentir, era-lhe impossivel, uma vez que do coração nada mais restava, além de uma sensação perfeitamente estupida e material: e vontade, se a tinha, quasi nem já se revelava.
Do rapaz d'outros tempos, galanteador e elegante, apenas restava uma sombra. A barba medrára a esmo. O cabello, cobrindo-lhe a góla do casaco, imprimia-lhe um aspecto singularmente triste e repugnante.
Encaral-o de frente o mesmo era que tomal-o por um salteador disfarçado.
Um dia, foi Julio casualmente surprehendido, no seu escriptorio, por esta desgraçada victima de uma exaggerada e dolorosa ociosidade.
--Que me quer? interrogou o negociante.
--Eu, senhor, fui rico, e sou hoje pobre, Em nome da mulher, que ambos amámos, venho pedir-lhe um emprestimo de duzentos mil réis...
--Em nome da mulher que só eu amei e que o senhor perdeu--convido-o a retirar-se d'esta casa.
--Muito bem! uma vez que assim o querem, far-me-hei ladrão--exclamou
Alfredo.
E fez-se fabricante de notas falsas.