Capítulo 4
III
Alfredo
Alfredo da Silveira nascêra embalado pelos sorrisos da fortuna.
Teve uma casa que vendeu. E que bonita casa! Situada na orla da praia extendia-se deante d'ella o oceano como um vasto lençol, cujas dobras phantasticas se encolhiam e desencolhiam, consoante as horas e as marés.
N'essa casa viu a luz Alfredo. Ahi, envolto com o maternal carinho, aprendera elle a entoar as primeiras trovas da infancia; ahi tambem suspiroso, como um lago, e candido, como o céu, aprendêra a ser um filho honrado e um cidadão benemerito.
Mas a infancia, esvaecida n'uma manhã de rosas, deixára após de si o lucto de um coração e a orphandade de uma familia.
A solitaria vivenda, circundada de festões e madre-silvas, sentira-se isolada e triste. Na viração da tarde já as flores silvestres não derramavam, como outr'ora, uns aromas tão vivos e tão profundamente salutares e amenos.
Ausentara-se dali a mulher angelica, boa, virtuosa, cujo espirito, evolado nas azas da saudade, fôra perante Deus rogar pela felicidade de seu unico filho.
E Alfredo chorou e chorou deveras...
Estava, porêm, na primavera da vida. Auspiciado pelas brisas da mocidade demandou a capital, cujo ruido o captava em extremo.
Dirigiu-se para Lisbôa e ahi fixou residencia.
Para qualquer que o visse seria o seu rosto gentil e levemente effeminado o mais seguro passa-porte de uma fina e aprimorada educação.
Usava de ordinario fato preto a que dava realçe uma esplendida camelia, artisticamente collocada na boutonniére.
Elegiaco por condição nada havia que o satisfizesse. Um vacúo immenso lhe torturava a existencia. Filho do tédio e vivendo para o tédio o seu espirito, agrilhoado por uma nostalgia sem limites, experimentava de continúo um mal-estar insupportavel, atroz, corrosivo, e porventura uma doença impossivel de definir-se.
A sua compleição delicada, e consumida pelos vinhos, agitava-se alternadamente entre dois mundos infinitos e contradictorios. Amava e não amava, queria e não queria, pensava e não pensava.
Alto, magro, nervoso tudo o impressionava com uma fatalidade irresistivel. O mundo era-lhe um phantasma sombrio, chimerico, cuja sombra elle amaldiaçoava, a todas as horas, no café, na rua, no bordel, na sociedade emfim.
Mulheres havia que sonhavam com o seu bigode louro, a sua cabelleira phantastica, e os seus sorrisos provocadores, ingenuos e ligeiramente ironicos.
Elle, porêm, detestava as mulheres em espirito, aproveitando-lhes o corpo e a carne, como um mero passa-tempo social.
Só uma vez amou, e, como Christo, doidamente, loucamente, profundamente.
Então foi ditoso muito ditoso.
A felicidade mirara-se n'elle, como uma donzella no seu espelho. Não lhe faltaram nem as crenças do berço nem as extravagancias da juventude.
Tudo lhe sorrira, desde o leito que primeiro o amamentou até ao vinho, ao terrivel vinho que ultimamente o prostituiu.
Fôra ditoso...
Viajando viu muita coisa!
Viu mulheres novas que se abandonavam aos velhos; creanças loucas que se entregavam ás orgias, cuspindo na face das mães; politicos mercenarios, que, á maneira das mulheres de Babylonia, alugavam ao primeiro, que na estrada passava, a honra e a consciencia; exploradores sem conta, eternas Shylocks da publica miseria; paes que despresavam os filhos, irmãos que matavam os irmãos, mães que vendiam as filhas.
Viu muita coisa...
Passeando, admirou muito!
No Oriente encontrou mulheres formosas, pallidas, sansuaes. Depois passou á Grecia, a sábia, a divina mãe, onde Corina mais tarde teve o seu berço de flores. E ainda percorreu Roma, aquella Roma dos Cesares e da rocha tarpeia e Verona a patria de Julietta, e a Escocia o theatro de Macbeth.
Admirou muito...
Bebeu sempre!
Provou o incomparavel tokai, esplendido falerno dos tempos modernos, encheu-se de absyntho e saboreou o alcool com delicia.
Bebeu sempre...
Fumou com ardôr!
O chibuca, o opio, o havano tudo lhe embriagou os sentidos, fazendo d'elle uma alma pagã e um corpo lascivo, môrno, cheio de tédio e de languidez.
Fumou com ardor...
Amou delirantemente!
Lembro-me tão bem...
A onda brincava travêssa sobre a praia longinqua. Uma brisa tépida, apenas, semelhando um leque de plumas, agitava docemente as vagas do
Oceano. Como o arfar de uma mulher aos vinte annos, assim a natureza suspirava languida, nervosa, etherea.
E ao longe, atravez das brumas phantasticas, scintillaram seus vestidos brancos, suas faces pallidas e seu olhar azul.
Sorrira-lhe pela primeira vez o ideal no horisonte da vida.
Aproveitou a serenidade do crepusculo para lhe fallar. Disse-lhe o que sentia. A creança encarou-o duas, tres, quatro, cinco vezes, sorrindo-se amavelmente.
Volvidos dias tornou-se a encontrar com ella n'um immenso, escuro pinhal. Ali confidenciaram largamente. Juraram amar-se.
E elle na sua louca estulta ingenuidade ousou acredital-a.
Desgraçado do moço, que tinha um coração, impossivel de esmagar.
Quando, passados annos, lhe disseram que ella se havia tornado uma grande mulher do mundo, a eterna bas-bleu dos salões, sentiu-se inanimado quasi, imbelle, exangue.
Tentou afastar de si o gélido phantasma que o perseguia sem cessar, e que mesmo em vida lhe seria triste mortalha. Em cata d'ella correu, voou. Precipitou-se, finalmente n'um theatro, onde, pela quarta vez, a contemplou mais scintillante que uma esmeralda e mais loura ainda que um archanjo.
Á sahida do espectaculo experimentou um estranho choque no seu hombro direito. Olhou e viu-a a ella que lhe acenava com uma das mãos.
Aproximou-se então. No lagedo da sala existia um pequeno bilhete que elle apanhou cuidadosamente.
«Espero-o amanhã, á uma hora da tarde»--escrevêra ella a lapis.
E, cheio de anciedade, tambem elle esperou pela aprazada hora.
Ao penetrar no seu quarto, d'ella, tremeu involuntariamente. Um singular ruido lhe captou os sentidos. Emilia jogava, e, na febre do jogo, ria descompostamente.
Sentou-se ao lado de um desconhecido.
Terminado o jogo seguira-se o Cognac.
Beberam todos.
Emilia levantou-se depois, e cerrou hermeticamente todas as janellas do quarto. Derramaram-se perfumes em larga escala. No centro foi collocado um braseiro.
D'entro em duas horas estavam todos adormecidos. Só Alfredo, sentindo-se abafado, morto, enraivecido e não podendo conter mais a asphyxia que lentamente o devorava, começou de gritar terrivelmente, terminando por desfechar dois tiros de revolver na direcção da porta de entrada.
Acorreu muita gente. A porta foi arrombada.
Entraram todos.
O feio silencio do tumulo envolvia a casa d'aquella mulher. Para um lado seis cadaveres de homens com os olhos arregalados, a bocca semi-aberta e o corpo ensanguentado; para outro lado uma mulher com os vestidos rotos, o cabello arrancado e as faces horrivelmente maceradas.
«Emilia, Emilia...--exclamava elle repetidas vezes.
E só os echos repeliam: «Emilia, Emilia...[1]
Desde então para cá Alfredo, endurecido no cynismo e na indifferença, tem arrastado uma vida monotona, semsabor, aborrecida.
Levanta-se ordinariamente á uma hora da tarde doente, triste, sonhando uns males terriveis, imaginarios.
Não almoça nunca. O appetite fugiu-lhe com as extravagancias do estomago. Nem mesmo tem já paladar.
Percorre as ruas authomaticamente olhando as vitrines das lojas, a cujas esquinas estaciona.
Frequenta os bailes, mais por uma necessidade de espirito do que por um enthusiasmo juvenil.
Como Falstaff ceia muito: espantosamente, loucamente. Pela madrugada recolhe-se a um quarto solitario, que alugou e onde vive só, sem creado nem creada.
Lê e escreve no restaurante, sua habitual residencia.
Na noite em que o encontrámos no salão da viscondessa, recolhia-se elle a casa mais melancholico do que o costume.
--Mas quem será o maldito rival?--monologava elle de si para comsigo.
Acham pouco ainda? pois bem. Tambem tu cahirás, minha querida viscondessa. Tentou-te o demonio estupido: serás uma das suas victimas.
E entrou no café.
[1] Este facto que para muitos passará por inverosimil, deu-se, todavia, proximo de Lisbôa, em 1854.