Capítulo 9 - Parte 2
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Muito desagradavelmente me recordo do dia dos seus annos, a 10 de
Janeiro. Cêdo, de manhã, recebèra, com uma carta de Madame de Trèves, um açafate de camelias, azaleas, orchideas e lyrios do valle. E foi este mimo que lhe recordou a data consideravel. Soprou sobre as petalas o fumo do cigarro e murmurou com um riso de lento escarneo: --Então, ha trinta e quatro annos que eu ando n'esta massada?
E como eu propunha que telephonassemos aos amigos para beberem no 202 o
Champagne do «Natalicio»--elle recusou, com o nariz enojado. Oh! Não!
Que horrivel sécca!... E bradou mesmo para o Grillo: --Eu hoje não estou em Paris para ninguem. Abalei para o campo, abalei para Marselha... Morri!
E a sua ironia não cessou até ao almoço perante os bilhetes, os telegrammas, as cartas, que subiam, se arredondavam em collina sobre a meza d'ebano, como um preito da Cidade. Outras flôres que vieram, em vistosos cestos, com vistosos laços, foram por elle comparadas ás que se depõe sobre uma tumba. E apenas se interessou um momento pelo presente de Ephraim, uma engenhosa meza, que se abaixava até ao tapete ou se alteava até ao tecto--para que, senhor Deus meu?
Depois do almoço, como chovia sombriamente, não arredamos do 202, com os pés estendidos ao lume, em preguiçoso silencio. Eu terminára por adormecer beatificamente. Acordei aos passos açodados do Grillo...
Jacintho, enterrado na poltrona, com umas tesouras, recortava um papel!
E nunca eu me compadeci d'aquelle amigo, que cançára a mocidade a accumular todas as noções formuladas desde Aristoteles e a juntar todos os inventos realisados desde Tharamenes, como n'essa tarde de festa, em que elle, cercado de Civilisação nas maximas proporções para gozar nas maximas proporções a delicia de viver, se encontrava reduzido, junto ao seu lar, a recortar papeis com uma tesoura!
O Grillo trazia um presente do Gran-Duque--uma caixa de prata, forrada de cedro, e cheia d'um chá precioso, colhido, flôr a flôr, nas veigas de
Kiang-Sou por mãos puras de virgens, e conduzido através da Asia, em caravanas, com a veneração d'uma reliquia. Então, para despertar o nosso torpôr, lembrei que tomassemos o divino chá--occupação bem harmonica com a tarde triste, a chuva grossa alagando os vidros, e a clara chamma bailando no fogão. Jacintho accedeu--e um escudeiro acercou logo a meza de Ephraim para que nós lhe estreassemos os serviços destros. Mas o meu
Principe, depois de a altear, para meu espanto, até aos crystaes do lustre, não conseguiu, apezar de uma suada e desesperada batalha com as molas, que a meza regressasse a uma altura humana e cazeira. E o escudeiro de novo a levou, levantada como um andaime, chimerica, unicamente aproveitavel para o gigante Adamastor. Depois veio a caixa do chá entre chaleiras, lampadas, coadores, filtros, todo um fausto de alfaias de prata, que communicavam a essa occupação, tão simples e dôce em caza de minha tia, fazer chá, a magestade d'um rito. Prevenido pelo meu camarada da sublimidade d'aquelle chá de Kiang-Sou, ergui a chavena aos labios com reverencia. Era uma infusão descorada que sabia a malva e a formiga. Jacintho provou, cuspiu, blasphemou... Não tomamos chá.
Ao cabo d'outro pensativo silencio, murmurei, com os olhos perdidos no lume: --E as obras de Tormes? A egreja... Já haverá egreja nova?
Jacintho retomára o papel e a thesoura: --Não sei... Não tornei a receber carta do Silverio... Nem imagino onde param os ossos... Que lugubre historia!
Depois chegou a hora das luzes e do jantar. Eu encommendára pelo Grillo ao nosso magistral cozinheiro uma larga travessa d'arroz dôce, com as iniciaes de Jacintho e a data ditosa em canella, á moda amavel da nossa meiga terra. E o meu Principe á meza, percorrendo a lamina de marfim onde no 202 se inscreviam os pratos a lapis vermelho, louvou com fervôr a ideia patriarchal: --Arrôz dôce! Está escripto com dois ss, mas não tem dúvida...
Excellente lembrança! Ha que tempos não cômo arrôz dôce!... Desde a morte da avó.
Mas quando o arrôz dôce appareceu triumphalmente, que vexâme! Era um prato monumental, de grande arte! O arrôz, massiço, moldado em fórma de pyramide do Egypto, emergia d'uma calda de cereja, e desapparecia sob os fructos seccos que o revestiam até ao cimo, onde se equilibrava uma corôa de Conde feita de chocolate e gomos de tangerina gelada! E as iniciaes, a data, tão lindas e graves na canella ingenua, vinham traçadas nas bordas da travessa com violetas pralinadas! Repellimos, n'um mudo horror, o prato acanalhado. E Jacintho, erguendo o copo de
Champagne, murmurou como n'um funeral pagão: --Ad Manes, aos nossos mortos!
Recolhemos á Bibliotheca, a tomar o café no conchego e alegria do lume.
Fóra, o vento bramava como n'um êrmo serrano: e as vidraças tremiam, alagadas, sob as bategas da chuva irada. Que dolorosa noite para os dez mil pobres que em Paris erram sem pão e sem lar! Na minha aldeia, entre cêrro e valle, talvez assim rugisse a tormenta. Mas ahi cada pobre, sob o abrigo da sua telha vã, com a sua panella atestada de couves, se agacha no seu mantéo ao calor da lareira. E para os que não tenham lenha ou couve, lá está o João das Quintas, ou a tia Vicencia, ou o abbade, que conhecem todos os pobres pelos seus nomes, e com elles contam, como sendo dos seus, quando o carro vae ao matto e a fornada entra no fôrno.
Ah Portugal pequenino, que ainda és dôce aos pequeninos!
Suspirei, Jacintho preguiçava. E terminamos por remexer languidamente os jornaes que o mordomo trouxera, n'um monte facundo, sobre uma salva de prata--jornaes de Paris, jornaes de Londres, Semanarios, Magazines,
Revistas, Illustrações... Jacintho desdobrava, arremessava: das Revistas espreitava o summario, logo farto; ás Illustrações rasgava as folhas com o dedo indifferente, bocejando por cima das gravuras. Depois, mais estirado para o lume: --É uma sécca... Não ha que lêr.
E de repente, revoltado contra este fastio oppressor que o escravisava, saltou da poltrona com um arranque de quem despedaça algemas, e ficou erecto, dardejando em torno um olhar imperativo e duro, como se intimasse aquelle seu 202, tão abarrotado de Civilisação, a que por um momento sequer fornecesse á sua alma um interesse vivo, á sua vida um fugitivo gôsto! Mas o 202 permaneceu insensivel: nem uma luz, para o animar, avivou o seu brilho mudo: só as vidraças tremeram sob o embate mais rude de agua e vento.
Então o meu Principe, succumbido, arrastou os passos até ao seu gabinete, começou a percorrer todos os apparelhos completadores e facilitadores da Vida--o seu Telegrapho, o seu Telephone, o seu
Phonographo, o seu Radiometro, o seu Graphophono, o seu Microphono, a sua Machina d'Escrever, a sua Machina de Contar, a sua Imprensa
Electrica, a outra Magnetica, todos os seus utensilios, todos os seus tubos, todos os seus fios... Assim um Supplicante percorre altares d'onde espera soccorro. E toda a sua sumptuosa Mechanica se conservou rigida, reluzindo frigidamente, sem que uma roda girasse, nem uma lamina vibrasse, para entreter o seu Senhor.
Só o relogio monumental, que marcava a hora de todas as capitaes e o curso de todos os planetas, se compadeceu, batendo a meia-noite, annunciando ao meu amigo que mais um Dia partira levando o seu pêzo--diminuindo esse sombrio pêzo da Vida, sob que elle gemia, vergado.
O Principe da Gran-Ventura, então, decidiu recolher para a cama--com um livro... E durante um momento, estacou no meio da Bibliotheca, considerando os seus setenta mil volumes estabelecidos com pompa e magestade como Doutores n'um Concilio--depois as pilhas tumultuarias dos livros novos que esperavam pelos cantos, sobre o tapete, o repouso e a consagração das estantes d'ebano. Torcendo mollemente o bigode caminhou por fim para a região dos Historiadores: espreitou seculos, farejou raças: pareceu attrahido pelo explendor do Imperio Byzantino: penetrou na Revolução Franceza d'onde se arredou desencantado: e palpou com mão indeliberada toda a vasta Grecia desde a creação de Athenas até a aniquilação de Corintho. Mas bruscamente virou para a fila dos Poetas, que reluziam em marroquins claros, mostrando, sobre a lombada, em ouro, nos titulos fortes ou languidos, o interior das suas almas. Não appeteceu nenhuma d'essas seis mil almas--e recuou, desconsolado, até aos Biologos... Tão massiça e cerrada era a estante de Biologia que o meu pobre Jacintho estarreceu, como ante uma cidadella inaccessivel!
Rolou a escada--e, fugindo, trepou, até ás alturas da Astronomia: destacou astros, recollocou mundos: todo um Systema Solar desabou com fragor. Aturdido, desceu, começou a procurar por sobre as rimas das obras novas, ainda brochadas, nas suas roupas leves de combate.
Apanhava, folheava, arremessava: para desentulhar um volume, demolia uma torre de doutrinas: saltava por cima dos Problemas, pisava as Religiões: e relanceando uma linha, esgravatando além n'um indice, todos interrogava, de todos se desinteressava, rolando quasi de rastos, nas grossas vagas de tomos que rolavam, sem se poder deter, na ancia de encontrar um Livro! Parou então no meio da immensa nave, de cocoras, sem coragem, contemplando aquelles muros todos forrados, aquelle chão todo alastrado, os seus setenta mil volumes--e, sem lhes provar a substancia, já absolutamente saciado, abarrotado, nauseado pela opressão da sua abundancia. Findou por voltar ao montão de jornaes amarrotados, ergueu melancholicamente um velho Diario de Noticias, e com elle debaixo do braço subiu ao seu quarto, para dormir, para esquecer.