Capítulo 10
--Oh Jacintho, que estrella é esta, aqui, tão viva, sobre o beiral do telhado?
--Não sei... E aquella, Zé Fernandes, além, por cima do pinheiral?
--Não sei.
Não sabiamos. Eu, por causa da espessa crosta de ignorancia com que sahi do ventre de Coimbra, minha Mãe espiritual. Elle, porque na sua
Bibliotheca possuia trezentos e oito tratados sobre Astronomia, e o
Saber, assim accumulado, fórma um monte que nunca se transpõe nem se desbasta. Mas que nos importava que aquelle astro além se chamasse
Syrius e aquelle outro Aldebaran? Que lhes importava a elles que um de nós fosse Jacintho, outro Zé? Elles tão immensos, nós tão pequeninos, somos a obra da mesma Vontade. E todos, Uranos ou Lorenas de Noronha e
Sande, constituimos modos diversos d'um Sêr unico, e as nossas diversidades esparsas sommam na mesma compacta Unidade. Molleculas do mesmo Todo, governadas pela mesma Lei, rolando para o mesmo Fim... Do astro ao homem, do homem á flôr do trevo, da flôr do trevo ao mar sonoro--tudo é o mesmo Corpo, onde circula, como um sangue, o mesmo
Deus. E nenhum fremito de vida, por menor, passa n'uma fibra d'esse sublime Corpo, que se não repercuta em todas, até ás mais humildes, até ás que parecem inertes e invitaes. Quando um Sol que não avisto, nunca avistarei, morre de inanição nas profundidades, esse esguio galho de limoeiro, em baixo na horta, sente um secreto arrepio de morte:--e, quando eu bato uma patada no soalho de Tormes, além o monstruoso Saturno estremece, e esse estremecimento percorre o inteiro Universo! Jacintho abateu rijamente a mão no rebordo da janella. Eu gritei: --Acredita!... O sol tremeu.
E depois (como eu notei) deviamos considerar que, sobre cada um d'esses grãos de pó luminoso, existia uma creação, que incessantemente nasce, perece, renasce. N'este instante, outros Jacinthos, outros Zés
Fernandes, sentados ás janellas d'outras Tormes, contemplam o céo nocturno, e n'elle um pequenininho ponto de luz, que é a nossa possante
Terra por nós tanto sublimada. Não terão todos esta nossa fórma, bem fragil, bem desconfortavel, e (a não ser no Apollo do Vaticano, na Venus de Milo e talvez na Princeza, de Carman) singularmente feia e burlesca.
Mas, horrendos ou de ineffavel belleza; collossaes e d'uma carne mais dura que o granito, ou leves como gazes e ondulando na luz, todos elles são sêres pensantes e teem consciencia da Vida--porque decerto cada
Mundo possue o seu Descartes, ou já o nosso Descartes os percorreu a todos com o seu Methodo, a sua escura capa, a sua agudeza elegante, formulando a unica certeza talvez certa, o grande Penso logo existo.
Portanto todos nós, Habitantes dos Mundos, ás janellas dos nossos casarões, além nos Saturnos, ou aqui na nossa Terricula, constantemente perfazemos um acto sacrosanto que nos penetra e nos funde--que é sentirmos no Pensamento o nucleo commum das nossas modalidades, e portanto realisarmos um momento, dentro da Consciencia, a Unidade do
Universo!--Hein, Jacintho?...
O meu amigo rosnou: --Talvez... Estou a cahir com somno.
--Tambem eu. «Remontamos muito, Ex.^{mo} Snr.!» como dizia o Pestaninha em Coimbra. Mas nada mais bello, e mais vão, que uma cavaqueira, no alto das serras, a olhar para as estrellas!... Tu sempre vaes amanhã?
--Com certeza, Zé Fernandes! Com a certeza de Descartes. «Penso logo fujo!» Como queres tu, n'este pardieiro, sem uma cama, sem uma poltrona, sem um livro?... Nem só de arroz com fava vive o Homem! Mas demoro em Lisboa, para conversar com o Cesimbra, o meu Administrador. E tambem á espera que estas obras acabem, os caixotes surjam, e eu possa voltar decentemente, com roupa lavada, para a trasladação...
--É verdade, os ossos...
--Mas resta ainda o Grillo... Que animal! Por onde andará esse perdido?
Então, passeando lentamente na sala enorme, onde a vela de sêbo já derretida no castiçal de lata era como um lume de cigarro n'um descampado, meditámos na sorte do Grillo. O estimado negro ou fôra despejado nas lamas de Medina, com as vinte e sete malas, aos gritos--ou, regaladamente adormecido, rolára com o Anatole no comboio para Madrid. Mas ambos os casos appareciam ao meu Principe como irremediavelmente destruidores do seu conforto...
--Não, escuta, Jacintho... Se o Grillo encalhou em Medina, dormiu na
Fonda, catou os percevejos, e esta madrugada correu para Tormes. Quando ámanhã desceres á Estação, ás quatro horas, encontras o teu precioso homem, com as tuas preciosas malas, mettido n'esse comboio que te leva ao Porto e á Capital...
Jacintho saccudiu os braços como quem se debate nas malhas d'uma rede: --E se seguiu para Madrid?
--Então, por esta semana, cá apparece em Tormes, onde encontra ordem para regressar a Lisboa e reentrar no teu sequito... Resta o interessante caso das minhas bagagens. Se ámanhã encontrares na Estação o Grillo, separa a minha mala negra, e o sacco de lona, e a chapelleira.
O Grillo conhece. E pede ao Pimenta, ao gordalhufo, que me avise para
Guiães. Se o Grillo aportar Tormes, esfogueteado de Madrid, com toda essa malaria, deixa as minhas cousas aqui, ao Melchior... Eu ámanhã fallo ao Melchior.
Jacintho sacudiu furiosamente o collarinho: --Mas como posso eu partir para Lisboa, ámanhã, com esta camisa de dous dias, que já me faz uma comichão horrenda? E sem um lenço... Nem ao menos uma escova de dentes!
Fertil em idéas, estendi as mãos, n'um bello gesto tutelar: --Tudo se arranja, meu Jacintho, tudo se arranja! Eu, largando d'aqui cedo, pelas seis horas, chego a Guiães ás dez, ainda sem calor. E, mesmo antes do almoço e da cavaqueira com a tia Vicencia, immediatamente te mando por um moço um sacco de roupa branca. As minhas camisas e as minhas ceroulas talvez te estejam largas. Mas um mendigo como tu não tem direito a elegancias e a roupas bem cortadas. O moço, n'um bom trote, entra aqui ás duas horas; tens tempo de mudar antes de desceres para a
Estação... Posso metter na mala uma escova de dentes.
--Oh Zé Fernandes! Então mette tambem uma esponja... E um frasco d'agoa de colonia!
--Agoa d'alfazema, excellente, feita pela tia Vicencia...
O meu Principe suspirou, impressionado com a sua miseria esqualida, e esta dadiva de roupas: --Bem, então vamos dormir, que estou esfalfado de emoções e d'astros...
Justamente Melchior entreabria a pesada porta, com timidez, a avisar que «estavam preparadinhas as camas de suas Incellencias.» E seguindo o bom caseiro, que erguia uma candeia, que avistamos nós, o meu Principe e eu, ainda ha pouco irmanados com os astros? Em duas saletas, que uma abertura em arco, lobrego arco de pedra, separava--duas enxergas sobre o soalho. Junto á cabeceira da mais larga, que pertencia ao senhor de
Tormes, um castiçal de latão sobre um alqueire; aos pés, como lavatorio, um alguidar vidrado em cima duma tripeça. Para mim, serrano d'aquellas serras, nem alguidar nem alqueire.
Lentamente, com o pé, o meu super-civilisado amigo palpou a enxerga. E decerto lhe sentiu uma dureza intransigente, porque ficou pendido sobre ella, a correr desoladamente os dedos pela face desmaiada.
--E o peior não é ainda a enxerga, murmurou emfim com um suspiro. É que não tenho camisa de dormir, nem chinelas!... E não me posso deitar de camisa engommada.
Por inspiração minha reccorremos ao Melchior. De novo, esse benemerito providenciou, trazendo a Jacintho, para elle desafogar os pés, uns tamancos--e para embrulhar o corpo uma camisa da comadre, enorme, de estopa, áspera como uma estamenha de penitente, com folhos mais crespos e duros do que lavores de madeira. Para consolar o meu Principe lembrei que Platão quando compunha o Banquete, Vasco da Gama quando dobrava o
Cabo, não dormiam em melhores catres! As enxergas rijas fazem as almas fortes, oh Jacintho!... E é só vestido de estamenha que se penetra no
Paraiso.
--Tens tu, volveu o meu amigo seccamente, alguma coisa que eu leia? Não posso adormecer sem um livro.
Eu? Um livro? Possuia apenas o velho numero do Jornal do Commercio, que escapára á dispersão dos nossos bens. Rasguei a copiosa folha pelo meio, partilhei com Jacintho fraternalmente. Elle tomou a sua metade, que era a dos annuncios... E quem não viu então Jacintho, senhor de
Tormes, acaçapado á borda da enxerga, rente da vela de sêbo que se derretia no alqueire, com os pés encafuados nos sócos, perdido dentro das ásperas pregas e dos rijos folhos da camisa serrana, percorrendo n'um pedaço velho de Gazeta, pensativamente, as partidas dos
Paquetes--não póde saber o que é uma intensa e veridica imagem do
Desalento.
Recolhido á minha alcova espartana, desabotoava o collete, n'um delicioso cansaço, quando o meu Principe ainda me reclamou: --Zé Fernandes...
--Dize.
--Manda tambem no sacco um abotoador de botas.
Estirado commodamente na rija enxerga murmurei, como sempre murmuro ao penetrar no Somno, que é um primo da Morte, «Deus seja louvado!» Depois tomei a metade do Jornal do Commercio que me pertencia.
--Zé Fernandes...
--Que é?
--Tambem podias metter no sacco pós dos dentes... E uma lima das unhas... E um romance!
Já a meia Gazeta me escapava das mãos dormentes. Mas da sua alcova, depois de soprar a vela, Jacintho murmurou entre um bocejo: --Zé Fernandes...
--Hein?
--Escreve para Lisboa, para o Hotel Bragança... Os lençoes ao menos são frescos, cheiram bem, a sadio!