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A Cidade e as Serras

por Eça de Queiroz

Capítulo 10 - Parte 1

VIII

Ao fim d'esse inverno escuro e pessimista, uma manhã que eu preguiçava na cama, sentindo através da vidraça cheia de sol ainda pallido um bafo de Primavera ainda timido--Jacintho assomou á porta do meu quarto, revestido de flanellas leves, d'uma alvura de açucena. Parou lentamente á beira dos colxões, e, com gravidade, como se annunciasse o seu casamento ou a sua morte, deixou desabar sobre mim esta declaração formidavel: --Zé Fernandes, vou partir para Tormes.

O pulo com que me sentei abalou o rijo leito de pau preto do velho D.

Galião: --Para Tormes? Oh Jacintho, quem assassinaste?...

Deleitado com a minha emoção, o Principe da Gran Ventura tirou da algibeira uma carta, e encetou estas linhas, já decerto relidas, fundamente estudadas: --«Ill.^{mo} e exc.^{mo} snr.--Tenho grande satisfação em communicar a v. exc.^a que por toda esta semana devem ficar promptas as obras da capella...» --É do Silverio? exclamei.

--É do Silverio. «...as obras da capella nova. Os venerandos restos dos excelsos avós de v. exc.^a, senhores de todo o meu respeito, podem pois ser em breve trasladados da egreja de S. José, onde têm estado depositados por bondade do nosso Abbade, que muito se recommenda a v.

exc.^a... Submisso, aguardo as prestantes ordens de v. exc.^a a respeito d'esta magestosa e afflictiva ceremonia...»

Atirei os braços, comprehendendo: --Ah! bem! Queres ir assistir á trasladação...

Jacintho sumiu a carta no bolso.

--Pois não te parece, Zé Fernandes? Não é por causa dos outros avós, que são ossos vagos, e que eu não conheci. É por causa do avô Galião...

Tambem não o conheci. Mas este 202 está cheio d'elle; tu estás deitado na cama d'elle; eu ainda uso o relogio d'elle. Não posso abandonar ao

Silverio e aos caseiros o cuidado de o installarem no seu jazigo novo.

Ha aqui um escrupulo de decencia, de elegancia moral... Emfim, decidi.

Apertei os punhos na cabeça, e gritei--vou a Tormes! E vou!... E tu vens!

Eu enfiara as chinellas, apertava os cordões do roupão: --Mas tu sabes, meu bom Jacintho, que a casa de Tormes está inhabitavel...

Elle cravou em mim os olhos aterrados.

--Medonha, hein?

--Medonha, medonha, não... É uma bella casa, de bella pedra. Mas os caseiros, que lá vivem ha trinta annos, dormem em catres, comem o caldo á lareira, e usam as salas para seccar o milho. Creio que os unicos moveis de Tormes, se bem recordo, são um armario, e uma espinetta de charão, côxa, já sem teclas.

O meu pobre Principe suspirou, com um gesto rendido em que se abandonava ao Destino: --Acabou!... Alea jact est! E como só partimos para abril, ha tempo de pintar, d'assoalhar, d'envidraçar... Mando d'aqui de Paris tapetes e camas... Um estofador de Lisboa vae depois forrar e disfarçar algum buraco... Levamos livros, uma machina para fabricar gelo... E é mesmo uma occasião de pôr emfim n'uma das minhas casas de Portugal alguma decencia e ordem. Pois não achas? E então essa! Uma casa que data de 1410... Ainda existia o Imperio Byzantino!

Eu espalhava, com o pincel, sobre a face, flocos lentos de sabão. O meu

Principe accendeu muito pensativamente um cigarro; e não se arredou do toucador, considerando o meu preparo com uma attenção triste que me incommodava. Por fim, como se remoesse uma sentença minha, para lhe reter bem a moral e o succo: --Então, definitivamente, Zé Fernandes, entendes que é um dever, um absoluto dever, ir eu a Tormes?

Afastei do espelho a cara ensaboada para encarar com divertido espanto o meu Principe: --Oh Jacintho! foi em ti, só em ti que nasceu a ideia d'esse dever! E honra te seja, menino... Não cedas a ninguem essa honra!

Elle atirou o cigarro--e, com as mãos enterradas nas algibeiras das pantalonas, vagou pelo quarto, topando nas cadeiras, embicando contra os postes torneados do velho leito de D. Galião, n'um balanço vago, como barco já desamarrado do seu seguro ancoradouro, e sem rumo no mar incerto. Depois encalhou sobre a mesa onde eu conservava enfileirada, por gradações de sentimentos, desde o dagarreotypo do papá até á photographia do Carocho perdigueiro, a galeria da minha Familia.

E nunca o meu Principe (que eu contemplava esticando os suspensorios) me pareceu tão corcovado, tão minguado, como gasto por uma lima que desde muito o andasse fundamente limando. Assim viera findar, desfeita em

Civilisação, n'aquelle super-requintado magricellas sem musculo e sem energia, a raça fortissima dos Jacinthos! Esses guedelhudos Jacinthões, que nas suas altas terras de Tormes, de volta de bater o moiro no Salado ou o castelhano em Valverde, nem mesmo despiam as fuscas armaduras para lavrar as suas chans e amarrar a vide ao olmo, edificando o Reino com a lança e com a enxada, ambas tão rudes e rijas! E agora, alli estava aquelle ultimo Jacintho, um Jacinthiculo, com a macia pelle embebida em aromas, a curta alma enrodilhada em Philosophias, travado e suspirando baixinho na miuda indecisão de viver.

--Oh Zé Fernandes, quem é esta lavradeirona tão rechonchuda?

Estendi o pescoço para a Photographia que elle erguera d'entre a minha galeria, no seu honroso caixilho de pellucia escarlate: --Mais respeito, Snr. D. Jacintho... Um pouco mais de respeito, cavalheiro!... É minha prima Joanninha, de Sandofim, da Casa da Flôr da

Malva.

--Flôr da Malva, murmurou o meu Principe. É a casa do Condestavel, de

Nun'alvares.

--Flôr da Rosa, homem! A casa do Condestavel era na Flôr da Rosa, no

Alemtejo... Essa tua ignorancia trapalhona das coisas de Portugal!

O meu Principe deixou escorregar mollemente a photographia da minha prima d'entre os dedos molles--que levou á face, no seu gesto horrendo de palpar atravez da face a caveira. Depois, de repente, com um soberbo esforço, em que se endireitou e cresceu: --Bem! Alea jacta est! Partamos pois para as serras!... E agora nem reflexão, nem descanço!... Á obra! E a caminho!

Atirou a mão ao fecho dourado da porta como se fosse o negro loquete que abre os Destinos--e no corredor gritou pelo Grillo, com uma larga e açodada voz que eu nunca lhe conhecera, e me lembrou a d'um Chefe ordenando, n'alvorada, que se levante o Acampamento, e que a Hoste marche, com pendões e bagagens...

Logo n'essa manhã (com uma actividade em que eu reconheci a pressa enjoada de quem bebe oleo-de-ricino), escreveu ao Silverio mandando caiar, assoalhar, envidraçar o casarão. E depois do almoço appareceu na

Bibliotheca, chamado violentamente pelo telephone, para combinar a remessa de mobilias e confortos, o director da Companhia Universal de

Transportes.

Era um homem que parecia o cartaz da sua Companhia, apertado n'um jaquetão de xadrezinho escuro, com polainas de jornada sobre botas brancas, uma sacola de marroquim a tiracolo, e na botoeira uma roseta multicor resumindo as suas condecorações exoticas de Madagascar, de

Nicaragua, da Persia, outras ainda, que provavam a universalidade dos seus serviços. Apenas Jacintho mencionou «Tormes, no Douro...»--elle logo, atravez d'um sorriso superior, estendeu o braço, detendo outros esclarecimentos, na sua intimidade minuciosa com essas regiões.

--Tormes... Perfeitamente! Perfeitamente!

Sobre o joelho, na carteira, escrevinhou uma fugidia nota--emquanto eu considerava, assombrado, a vastidão do seu saber Chorographico, assim familiar com os recantos d'uma serra de Portugal e com todos os seus velhos solares. Já elle atirára a carteira para o bolso... E «nós, seus caros senhores, não tinhamos senão a encaixotar as roupas, as mobilias, as preciosidades! Elle mandaria as suas carroças buscar os caixotes, a que poria, em grossa letra, com grossa tinta, o endereço...» --Tormes, perfeitamente! Linha Norte-Hespanha-Medina-Salamanca...

Perfeitamente! Tormes... Muito pittoresco! E antigo, historico!

Perfeitamente, perfeitamente!

Desengonçou a cabeça n'uma venia profundissima--e sahiu da Bibliotheca, com passos que devoravam leguas, annunciavam a presteza dos seus

Transportes.

--Vê tu, murmurou Jacintho muito serio. Que promptidão, que facilidade!... Em Portugal era uma tragedia. Não ha senão Paris!

Começou então no 202 o collossal encaixotamento de todos os confortos necessarios ao meu Principe para um mez de serra aspera--camas de penna, banheiras de nickel, lampadas Carcel, divans profundos, cortinas para vedar as gretas rudes, tapetes para amaciar os soalhos broncos. Os sotãos, onde se arrecadavam os pesados trastes do avô Galião, foram esvasiados--porque o casarão medieval de 1410 comportava os tremós romanticos de 1830. De todos os armazens de Paris chegavam cada manhã fardos, caixas, temerosos embrulhos que os emmaladores desfaziam, atulhando os corredores de montes de palha e de papel pardo, onde os nossos passos açodados se enrodilhavam. O cozinheiro, esbaforido, organisava a remessa de fornalhas, geleiras, bocaes de trufas, latas de conservas, bojudas garrafas de aguas mineraes. Jacintho, lembrando as trovoadas da serra, comprou um immenso pára-raios. Desde o amanhecer, nos pateos, no jardim, se martellava, se pregava, com vasto fragor, como na construcção d'uma cidade. E o desfilar das bagagens, através do portão, lembrava uma pagina de Herodoto contando a marcha dos Persas.

Das janellas, Jacintho com o braço estendido, saboreava aquella actividade e aquella disciplina: --Vê tu, Zé Fernandes, que facilidade!... Sahimos do 202, chegamos á serra, encontramos o 202. Não ha senão Paris!

Recomeçára a amar a Cidade, o meu Principe, emquanto preparava o seu

Exodo. Depois de ter, toda a manhã, apressado os encaixotadores, descortinado confortos novos para o abandonado solar, telephonado gordas listas de encommendas a cada loja de Paris--era com delicia que se vestia, se perfumava, se floria, se enterrava na vittoria ou saltava para a almofada do phaeton, e corria ao Bosque, e saudava a barba talmudica do Ephraim, e os bandós furiosamente negros da Verghane, e o

Psychologo de fiacre, e a condessa de Trèves na sua nova caleche de oito-molas fornecida pelas operações conjunctas da Bolsa e da alcôva.

Depois arrebanhava amigos para jantares de surpreza no Voisin ou no

Bignon, onde desdobrava o guardanapo com a impaciencia d'uma fome alegre, vigiando fervorosamente que os Bordeus estivessem bem aquecidos e os Champagnes bem granitados. E no theatro das Nouveautés, no

Palais Royal, nos Buffos, ria, batendo na côxa, com encanecidas facecias d'encanecidas farças, antiquissimos tregeitos d'antiquissimos actores, com que já rira na sua infancia, antes da guerra, sob o segundo

Napoleão!

De novo, em duas semanas, se abarrotaram as paginas da sua Agenda. A magnificencia do seu trage, como imperador Frederico II de Suabia, deslumbrou, no baile mascarado da Princesa de Cravon-Rogan (onde tambem fui, de «moço de forcado».) E na Associação para o Desenvolvimento das

Religiões Esotericas discursou e batalhou bravamente pela construcção d'um Templo Budhista em Montmartre!

Com espanto meu recomeçou tambem a conversar, como nos tempos de Escóla, da «famosa Civilisação nas suas maximas proporções.» Mandou encaixotar o seu velho telescopio para o usar em Tormes. Receei mesmo que no seu espirito germinasse a idéa de crear, no cimo da serra, uma Cidade com todos os seus orgãos. Pelo menos não consentia o meu Jacintho que essas semanas da silvestre Tormes interrompessem a illimitada accumulação das noções--porque uma manhã rompeu pelo meu quarto, desolado, gritando que entre tantos confortos e fórmas de Civilisação esqueceramos os livros!

Assim era--e que vexame para a nossa Intellectualidade! Mas que livros escolher entre os facundos milhares sob que vergava o 202? O meu

Principe decidiu logo dedicar os seus dias serranos ao estudo da

Historia Natural--e nós mesmos, immediatamente, deitamos para o fundo d'um vasto caixote novo, como lastro, os vinte e cinco tomos de Plinio.

Despejamos depois para dentro, ás braçadas, Geologia, Mineralogia,

Botanica... Espalhamos por cima uma camada aeria de Astronomia. E, para fixar bem no caixote estas Sciencias oscillantes, entalamos em redor cunhas de Metaphysica.

Mas quando a derradeira caixa, pregada e cintada de ferro, sahiu do portão do 202 na derradeira carroça da Companhia dos Transportes, toda esta animação de Jacintho se abateu como a efervescencia n'um copo de

Champagne. Era em meados já tepidos de Março. E de novo os seus desagradaveis bocejos atroaram o 202, e todos os sophás rangeram sob o peso do corpo que elle lhe atirava para cima, mortalmente vencido pela fartura e pelo tedio, n'um desejo de repouso eterno, bem envolto de solidão e silencio. Desesperei. O que! Aturaria eu ainda aquelle

Principe palpando amargamente a caveira, e, quando o crepusculo entristecia a Bibliotheca, alludindo, n'um tom rouco, á doçura das mortes rapidas pela violencia misericordiosa do acido cyanhidrico? Ah não, caramba! E uma tarde em que o encontrei estirado sobre um divan, de braços em cruz, como se fosse a sua estatua de marmore sobre o seu jazigo de granito, positivamente o abanei com furor, berrando: --Accorda, homem! Vamos para Tormes! O casarão deve estar prompto, a reluzir, a abarrotar de cousas! Os ossos de teus avós pedem repouso, em cova sua!... A caminho, a enterrar esses mortos, e a vivermos nós, os vivos!... Irra! São cinco de Abril!... É o bom tempo da serra!

O meu Principe resurgiu lentamente da inercia de pedra: --O Silverio não me escreveu, nunca me escreveu... Mas, com effeito, deve estar tudo preparado... Já lá temos certamente creados, o cosinheiro de Lisboa... Eu só levo o Grillo, e o Anatole que envernisa bem o calçado, e tem geito como pedicuro... Hoje é Domingo.

Atirou os pés para o tapete, com heroismo: --Bem, partimos no Sabbado!... Avisa tu o Silverio!

Começou então o laborioso e pensativo estudo dos Horarios--e o dedo magro de Jacintho, por sobre o mappa, avançando e recuando entre Paris e

Tormes. Para escolher o «salão» que deviamos habitar durante a temida jornada, duas vezes percorremos o deposito da Estação d'Orleans, atolados em lama, atraz do Chefe do Trafico que entontecia. O meu

Principe recusava este salão por causa da côr tristonha dos estofos; depois recusava aquelle por causa da mesquinhez afflictiva do

Water-Closet! Uma das suas inquietações era o banho, nas manhãs que passariamos rolando. Suggeri uma banheira de borracha. Jacintho, indeciso, suspirava... Mas nada o aterrou como o trasbordo em Medina del

Campo, de noite, nas trevas da Velha Castella. Debalde a Companhia do

Norte de Hespanha e a de Salamanca, por cartas, por telegrammas, socegaram o meu camarada, affirmando que, quando elle chegasse no comboio de Irun dentro do seu salão, já outro salão ligado ao comboio de

Portugal esperaria, bem aquecido, bem allumiado, com uma ceia que lhe offertava um dos Directores, D. Esteban Castillo, ruidoso e rubicundo conviva do 202! Jacintho corría os dedos anciosos pela face:--«E os saccos, as pelles, os livros, quem os transportaria do salão de Irun para o salão de Salamanca?» Eu berrava, desesperado, que os carregadores de Medina eram os mais rapidos, os mais destros de toda a Europa! Elle murmurava:--«Pois sim, mas em Hespanha, de noite!...» A noite, longe da

Cidade, sem telephone, sem luz electrica, sem postos de policia, parecia ao meu Principe povoada de surprezas e assaltos. Só acalmou depois de verificar no Observatorio Astronomico, sob a garantia do sabio professor

Bertrand, que a noite da nossa jornada era de lua cheia!

Emfim, na sexta-feira, findou a tremenda organisação d'aquella viagem historica! O sabbado predestinado amanheceu com generoso sol, de affagadora doçura. E eu acabava de guardar na mala, embrulhadas em papel pardo, as photographias das creaturinhas suaves que, n'esses vinte e sete mezes de Paris, me tinham chamado «mon petit chou! mon rat cheri!»--quando Jacintho rompeu pelo quarto, com um soberbo ramo de orchideas na sobrecasaca, pallido e todo nervoso.

--Vamos ao Bosque, por despedida?

Fomos--á grande despedida! E que encanto! Até nas almofadas e molas da vittoria senti logo uma elasticidade mais emballadora. Depois, pela

Avenida do Bosque, quasi me pezava não ficar sempiternamente rolando, ao trote rimado das eguas perfeitas, no rebrilho rico de metaes e vernizes, sobre aquelle macadam mais alisado que marmore, entre tão bem regadas flôres e relvas de tão tentadora frescura, cruzando uma Humanidade fina, de elegancia bem acabada, que almoçára o seu chocolate em porcellanas de

Sevres ou de Minton, sahira d'entre sèdas e tapetes de tres mil francos, e respirava a belleza de Abril com vagar, requinte e pensamentos ligeiros! O Bosque resplandecia n'uma harmonia de verde, azul e ouro.

Nenhuma cova ou terra solta desalisava as polidas alleas que a Arte traçou e enroscou na espessura--nenhum esgalho desgrenhado desmanchava as ondulações macias da folhagem que o Estado escóva e lava. O piar das aves apenas se elevava para espalhar uma graça leve de vida alada;--e mais natural parecia, entre o arvoredo sociavel, o ranger das sellas novas, onde pousavam, com balanço esbelto, as amazonas espartilhadas pelo grande Redfern. Em frente ao Pavilhão de Armenonville cruzamos

Madame de Trèves, que nos envolveu ambos na caricia do seu sorriso, mais avivado áquella hora pelo vermelhão ainda humido. Logo atraz a barba talmudica de Ephraim negrejou, fresca tambem da brilhantine da manhã, no alto d'um phaeton tilintante. Outros amigos de Jacintho circulavam nas

Acacias--e as mãos que lhe acenavam, lentas e affaveis, calçavam luvas frescas côr de palha, côr de perola, côr de lilaz. Todelle relampejou rente de nós sobre uma grande bycicleta. Dornan, alastrado n'uma cadeira de ferro, sob um espinheiro em flôr, mamava o seu immenso charuto, como perdido na busca de rimas sensuaes e nedias. Adeante foi o Psychologo, que nos não avistou, conversando com um requebro melancolico para dentro d'um coupé que rescendia a alcova, e a que um cocheiro obeso imprimia dignidade e decencia. E rolavamos ainda, quando o Duque de Marizac, a cavallo, ergueu a bengala, estacou a nossa vittoria para perguntar a

Jacintho se apparecia á noite nos «quadros vivos» dos Verghanes. O meu

Principe rosnou um--«não, parto para o sul...»--que mal lhe passou d'entre os bigodes murchos... E Marizac lamentou--porque era uma festa estupenda. Quadros vivos da Historia Sagrada e da Historia Romana!...

Madame Verghane, de Magdalena, de braços nús, peitos nús, pernas núas, limpando com os cabellos os pés do Christo!--O Christo, um latagão soberbo, parente dos Trèves, empregado no Ministerio da Guerra, gemendo, derreado, sob uma cruz de papelão! Havia tambem Lucrecia na cama, e

Tarquinio ao lado, de punhal, a puxar os lençoes! E depois ceia, em mezas soltas, todos nos seus trajes historicos. Elle já estava aparceirado com Madame de Malbe, que era Agrippina! Quadro portentoso esse--Agrippina morta, quando Nero a vem contemplar e lhe estuda as fórmas, admirando umas, desdenhando outras como imperfeitas. Mas, por polidez, ficára combinado que Nero admiraria sem reserva todas as fórmas de Madame de Malbe... Emfim collossal, e estupendamente instructivo!

Acenamos um longo adeus áquelle alegre Marizac. E recolhemos sem que

Jacintho emergisse do silencio enrugado em que se abysmára, com os braços rigidamente cruzados, como remoendo pensamentos decisivos e fortes. Depois, em frente ao Arco de Triumpho, moveu a cabeça, murmurou: --É muito grave, deixar a Europa!

* * * * *

Emfim, partimos! Sob a doçura do crepusculo que se enublára deixamos o 202. O Grillo e o Anatole seguiam n'um fiacre atulhado de livros, de estojos, de paletots, de impermeaveis, de travesseiras, de agoas mineraes, de saccos de couro, de rolos de mantas: e mais atraz um omnibus rangia sob a carga de vinte e tres malas. Na Estação, Jacintho ainda comprou todos os Jornaes, todas as Illustrações, Horarios, mais livros, e um saca-rolhas de fórma complicada e hostil. Guiados pelo

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