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A Cidade e as Serras

por Eça de Queiroz

Capítulo 10 - Parte 1

Sacudi violentamente Jacintho: --Acorda, homem, que estás na tua terra!

Elle desembrulhou os pés do meu paletot, cofiou o bigode, e veio sem pressa, á vidraça que eu abrira, conhecer a sua terra.

--Então é Portugal, hein?... Cheira bem.

--Está claro que cheira bem, animal!

A sineta tilintou languidamente. E o comboio deslisou, com descanço, como se passeasse para seu regalo sobre as duas fitas d'aço, assobiando e gozando a belleza da terra e do ceu.

O meu Principe alargava os braços, desolado: --E nem uma camisa, nem uma escova, nem uma gotta d'agoa de Colonia!...

Entro em Portugal, immundo!

--Na Regoa ha uma demora, temos tempo de chamar o Grillo, rehaver os nossos confortos... Olha para o rio!

Rolavamos na vertente d'uma serra, sobre penhascos que desabavam até largos socalcos cultivados de vinhedo. Em baixo, n'uma esplanada, branquejava uma casa nobre, de opulento repouso, com a capellinha muito caiada entre um laranjal maduro. Pelo rio, onde a agoa turva e tarda nem se quebrava contra as rochas, descia, com a vela cheia, um barco lento carregado de pipas. Para além, outros socalcos, d'um verde pallido de rezeda, com oliveiras apoucadas pela amplidão dos montes, subiam até outras penedias que se embebiam, todas brancas e assoalhadas, na fina abundancia do azul. Jacintho acariciava os pellos corredios do bigode: --O Douro, hein?... É interessante, tem grandeza. Mas agora é que eu estou com uma fome, Zé Fernandes!

Tambem eu! Destapamos o cesto de D. Esteban d'onde surdiu um bodo grandioso, de presunto, anho, perdizes, outras viandas frias que o ouro de duas nobres garrafas d'Amontillado, além de duas garrafas de Rioja, aqueciam com um calor de sol Andaluz. Durante o presunto, Jacintho lamentou contrictamente o seu erro. Ter deixado Tormes, um solar historico, assim abandonado e vasio! Que delicia, por aquella manhã tão lustrosa e tepida, subir á serra, encontrar a sua casa bem apetrechada, bem civilisada... Para o animar, lembrei que com as obras do Silverio, tantos caixotes de Civilisação remettidos de Paris, Tormes estaria confortavel mesmo para Epicuro. Oh! mas Jacintho entendia um palacio perfeito, um 202 no deserto!... E, assim discorrendo, atacamos as perdizes. Eu desarrolhava uma garrafa de Amontillado--quando o comboio, muito sorrateiramente, penetrou n'uma Estação. Era a Regoa. E o meu

Principe pousou logo a faca para chamar o Grillo, reclamar as malas que traziam o aceio dos nossos corpos.

--Espera, Jacintho! Temos muito tempo, O comboio pára aqui uma hora...

Come com tranquillidade. Não escangalhemos este almocinho com arrumações de maletas... O Grillo não tarda a apparecer.

E corri mesmo a cortina, porque de fóra um padre muito alto, com uma ponta de cigarro collada ao beiço, parára a espreitar indiscretamente o nosso festim. Mas quando acabamos as perdizes, e Jacintho confiadamente desembrulhava um queijo manchego, sem que Grillo ou Anatole comparecessem, eu, inquieto, corri á portinhola para apressar esses servos tardios... E n'esse instante o comboio, largando, deslisou com o mesmo silencio sorrateiro. Para o meu Principe foi um desgosto: --Ahi ficamos outra vez sem um pente, sem uma escova... E eu que queria mudar de camisa! Por culpa tua, Zé-Fernandes!

--É espantoso!... Demora sempre uma eternidade. Hoje chega e abala!

Paciencia, Jacintho. Em duas horas estamos na Estação de Tormes...

Tambem não valia a pena mudar de camisa para subir á serra! Em casa tomamos um banho, antes de jantar... Já deve estar installada a banheira.

Ambos nos consolamos com copinhos d'uma divina aguardente Chinchon.

Depois, estendidos nos sophás, saboreando os dois charutos que nos restavam, com as vidraças abertas ao ar adoravel, conversamos de Tormes.

Na estação certamente estaria o Silverio, com os cavallos...

--Que tempo leva a subir?

Uma hora. Depois de lavados sobrava tempo para um demorado passeio pelas terras com o caseiro, o excellente Melchior, para que o Senhor de

Tormes, solemnemente, tomasse posse do seu Senhorio. E á noite o primeiro brodio da serra, com os piteus vernaculos do velho Portugal!

Jacintho sorria, seduzido: --Vamos a ver que cozinheiro me arranjou esse Silverio. Eu recommendei que fosse um soberbo cozinheiro portuguez, classico. Mas que soubesse trufar um perú, afogar um bife em molho de moella, estas cousas simples da cozinha de França!... O peor é não te demorares, seguires logo para

Guiães...

--Ah, menino, annos da tia Vicencia no sabbado... Dia sagrado! Mas volto. Em duas semanas estou em Tormes, para fazermos uma larga

Bucolica. E, está claro, para assistir á trasladação.

Jacintho estendera o braço: --Que casarão é aquelle, além no outeiro, com a torre?

Eu não sabia. Algum solar de fidalgote do Douro... Tormes era n'esse feitio atarracado e massiço. Casa de seculos e para seculos--mas sem torre.

--E logo se vê, da estação, Tormes?...

--Não! Muito no alto, n'uma prega da serra, entre arvoredo.

No meu Principe já evidentemente nascèra uma curiosidade pela sua rude casa ancestral. Mirava o relogio, impaciente. Ainda trinta minutos!

Depois, sorvendo o ar e a luz, murmurava, no primeiro encanto de iniciado: --Que doçura, que paz...

--Trez horas e meia, estamos a chegar, Jacintho!

Guardei o meu velho Jornal do Commercio dentro do bolso do paletot, que deitei sobre o braço;--e ambos em pé, ás janellas, esperamos com alvoroço a pequenina Estação de Tormes, termo ditoso das nossas provações. Ella appareceu emfim, clara e simples, á beira do rio, entre rochas, com os seus vistosos girasoes enchendo um jardimsinho breve, as duas altas figueiras assombreando o pateo, e por traz a serra coberta de velho e denso arvoredo... Logo na plataforma avistei com gosto a immensa barriga, as bochechas menineiras do chefe da Estação, o louro Pimenta, meu condiscipulo em Rhetorica, no Lyceu de Braga. Os cavallos decerto esperavam, á sombra, sob as figueiras.

Mal o trem parou ambos saltamos alegremente. A bojuda massa do Pimenta rebolou para mim com amizade: --Viva o amigo Zé Fernandes!

--Oh bello Pimentão!...

Apresentei o senhor de Tormes. E immediatamente: --Ouve lá, Pimentinha... Não está ahi o Silverio?

--Não... O Silverio ha quasi dois mezes que partiu para Castello de

Vide, vêr a mãe que apanhou uma cornada d'um boi!

Atirei a Jacintho um olhar inquieto: --Ora essa! E o Melchior, o caseiro?... Pois não estão ahi os cavallos para subirmos á quinta?

O digno chefe ergueu com surpreza as sobrancelhas côr de milho: --Não!... Nem Melchior, nem cavallos... O Melchior... Ha que tempos eu não vejo o Melchior!

O carregador badalou lentamente a sineta para o comboio rolar. Então, não avistando em torno, na lisa e despovoada Estação, nem creados nem malas, o meu Principe e eu lançamos o mesmo grito de angustia: --E o Grillo? as bagagens?...

Corremos pela beira do comboio, berrando com desespero: --Grillo!... Oh Grillo!... Anatole!... Oh Grillo!

Na esperança que elle e o Anatole viessem mortalmente adormecidos, trepavamos aos estribos, atirando a cabeça para dentro dos compartimentos, espavorindo a gente quieta com o mesmo berro que retumbava:--«Grillo, estás ahi, Grillo?»--Já d'uma terceira-classe, onde uma viola repenicava, um jocoso gania, troçando:--«Não ha por ahi um grillo? Andam por ahi uns senhores a pedir um grillo!»--E nem Anatole, nem Grillo!

A sineta tilintou.

--Oh Pimentinha, espera, homem, não deixes largar o comboio!... As nossas bagagens, homem!

E, afflicto, empurrei o enorme chefe para o forgão de carga, a pesquizar, descortinar as nossas vinte e trez malas! Apenas encontramos barris, cestos de vime, latas de azeite, um bahú amarrado com cordas...

Jacintho mordia os beiços, livido. E o Pimentinha, esgazeado: --Oh filhos, eu não posso atrazar o comboio!...

A sineta repicou... E com um bello fumo claro o comboio desappareceu por detraz das fragas altas. Tudo em torno pareceu mais calado e deserto.

Alli ficavamos pois baldeados, perdidos na serra, sem Grillo, sem procurador, sem caseiro, sem cavallos, sem malas! Eu conservava o paletot alvadio, d'onde surdia o Jornal do Commercio. Jacintho, uma bengala. Eram todos os nossos bens!

O Pimentão arregalava para nós os olhinhos papudos e compadecidos.

Contei então áquelle amigo o atarantado trasfêgo em Medina sob a borrasca, o Grillo desgarrado, encalhado com as vinte e trez malas, ou rolando talvez para Madrid sem nos deixar um lenço...

--Eu não tenho um lenço!... Tenho este Jornal do Commercio. É toda a minha roupa branca.

--Grande arrelia, caramba! murmurava o Pimenta, impressionado. E agora?

--Agora, exclamei, é trepar, para a quinta, á pata... A não ser que se arranjassem ahi uns burros.

Então o carregador lembrou que perto, no casal da Giesta, ainda pertencente a Tormes, o caseiro, seu compadre, tinha uma boa egua e um jumento... E o prestante homem enfiou n'uma carreira para a

Giesta--emquanto o meu Principe e eu cahiamos para cima d'um banco, arquejantes e succumbidos, como naufragos. O vasto Pimentinha, com as mãos nas algibeiras, não cessava de nos contemplar, de murmurar:--«É de arrelia».--O rio defronte descia, preguiçoso e como adormentado sob a calma já pesada de maio, abraçando, sem um sussurro, uma larga ilhota de pedra que rebrilhava. Para além a serra crescia em corcovas doces, com uma funda prega onde se aninhava, bem junta e esquecida do mundo, uma villasinha clara. O espaço immenso repousava n'um immenso silencio.

N'aquellas solidões de monte e penedia os pardaes, revoando no telhado, pareciam aves consideraveis. E a massa rotunda e rubicunda do Pimentinha dominava, atulhava a região.

--Está tudo arranjado, meu senhor! Vêm ahi os bichos!... Só o que não calhou foi um selimsinho para a jumenta!

Era o carregador, digno homem, que voltava da Giesta, sacudindo na mão duas esporas desirmanadas e ferrugentas. E não tardaram a apparecer no corrego, para nos levarem a Tormes, uma egua ruça, um jumento com albarda, um rapaz e um podengo. Apertamos a mão suada e amiga do

Pimentinha. Eu cedi a egua ao senhor de Tormes. E começamos a trepar o caminho, que não se alisára nem se desbravára desde os tempos em que o trilhavam, com rudes sapatões ferrados, cortando de rio a monte, os

Jacinthos do seculo XIV! Logo depois de atravessarmos uma tremula ponte de pau, sobre um riacho quebrado por pedregulhos, o meu Principe, com o olho de dono subitamente aguçado, notou a robustez e a fartura das oliveiras...--E em breve os nossos males esqueceram ante a incomparavel belleza d'aquella serra bemdita!

Com que brilho e inspiração copiosa a compozera o divino Artista que faz as serras, e que tanto as cuidou, e tão ricamente as dotou, n'este seu

Portugal bem-amado! A grandeza egualava a graça. Para os valles, poderosamente cavados, desciam bandos de arvoredos, tão copados e redondos, d'um verde tão môço que eram como um musgo macio onde appetecia cahir e rolar. Dos pendores, sobranceiros ao carreiro fragoso, largas ramadas estendiam o seu toldo amavel, a que o esvoaçar leve dos passaros sacudia a fragrancia. Atravez dos muros seculares, que sustem as terras liados pelas heras, rompiam grossas raizes colleantes a que mais hera se enroscava. Em todo o torrão, de cada fenda, brotavam flôres silvestres. Brancas rochas, pelas encostas, alastravam a solida nudez do seu ventre polido pelo vento e pelo sol; outras, vestidas de lichen e de silvados floridos, avançavam como prôas de galeras enfeitadas: e, d'entre as que se apinhavam nos cimos, algum casebre que para lá galgára, todo amachucado e torto, espreitava pelos postigos negros, sob as desgrenhadas farripas de verdura, que o vento lhe semeára nas telhas.

Por toda a parte a agua sussurrante, a agua fecundante... Espertos regatinhos fugiam, rindo com os seixos, d'entre as patas da egua e do burro; grossos ribeiros açodados saltavam com fragor de pedra em pedra; fios direitos e luzidios como cordas de prata vibravam e faiscavam das alturas aos barrancos; e muita fonte, posta á beira de veredas, jorrava por uma bica, beneficamente, á espera dos homens e dos gados... Todo um cabeço por vezes era uma ceára, onde um vasto carvalho ancestral, solitario, dominava como seu senhor e seu guarda. Em socalcos verdejavam laranjaes rescendentes. Caminhos de lages soltas circumdavam fartos prados com carneiros e vaccas retouçando:--ou mais estreitos, entalados em muros, penetravam sob ramadas de parra espessa, n'uma penumbra de repouso e frescura. Trepavamos então alguma ruasinha de aldeia, dez ou doze casebres, sumidos entre figueiras, onde se esgaçava, fugindo do lar pela telha vã, o fumo branco e cheiroso das pinhas. Nos cerros remotos, por cima da negrura pensativa dos pinheiraes, branquejavam ermidas. O ar fino e puro entrava na alma, e n'alma espalhava alegria e força. Um esparso tilintar de chocalhos de guizos morria pelas quebradas...

Jacintho adiante, na sua egua ruça, murmurava: --Que belleza!

E eu atraz, no burro de Sancho, murmurava: --Que belleza!

Frescos ramos roçavam os nossos hombros com familiaridade e carinho. Por traz das sebes, carregadas d'amoras, as macieiras estendidas offereciam as suas maçãs verdes, porque as não tinham maduras. Todos os vidros d'uma casa velha, com a sua cruz no topo, refulgiram hospitaleiramente quando nós passamos. Muito tempo um melro nos seguia, de azinheiro a olmo, assobiando os nossos louvores. Obrigado, irmão melro! Ramos de macieira, obrigado! Aqui vimos, aqui vimos! E sempre comtigo fiquemos, serra tão acolhedora, serra de fartura e de paz, serra bemdita entre as serras!

Assim, vagarosamente e maravilhados, chegamos áquella avenida de faias, que sempre me encantára pela sua fidalga gravidade. Atirando uma vergastada ao burro e á egua, o nosso rapaz, com o seu podengo sobre os calcanhares, gritou:--«Aqui é que estêmos, meus amos!» E ao fundo das faias, com effeito, apparecia o portão da quinta de Tormes, com o seu brazão de armas, de secular granito, que o musgo retocava e mais envelhecia. Dentro já os cães ladravam com furor. E quando Jacintho, na sua suada egua, e eu atraz, no burro de Sancho, transpozemos o limiar solarengo, desceu para nós, do alto do alpendre, pela escadaria de pedra gasta, um homem nedio, rapado como um padre, sem collete, sem jaleca, acalmando os cães que se encarniçavam contra o meu Principe. Era o

Melchior, o caseiro... Apenas me reconheceu, toda a bocca se lhe escancarou n'um riso hospitaleiro, a que faltavam dentes. Mas apenas eu lhe revelei, d'aquelle cavalheiro de bigodes louros que descia da egua esfregando os quadris, o senhor de Tormes--o bom Melchior recuou, colhido de espanto e terror como diante d'uma avantesma.

--Ora essa!... Santissimo nome de Deus! Pois então...

E, entre o rosnar dos cães, n'um bracejar desolado, balbuciou uma historia que por seu turno apavorava Jacintho, como se o negro muro do casarão pendesse para desabar. O Melchior não esperava s. ex.^a! Ninguem esperava s. ex.^a!... (Elle dizia sua incellencia)... O snr. Silverio estava para Castello de Vide desde março, com a mãe, que apanhára uma cornada na virilha. E de certo houvera engano, cartas perdidas... Porque o snr. Silverio só contava com s. exc.^a em setembro, para a vindima! Na casa as obras seguiam devagarinho, devagarinho... O telhado, no sul, ainda continuava sem telhas; muitas vidraças esperavam, ainda sem vidros; e, para ficar, Virgem Santa, nem uma cama arranjada!...

Jacintho cruzou os braços n'uma colera tumultuosa que o suffocava. Por fim, com um berro: --Mas os caixotes? Os caixotes, mandados de Paris, em fevereiro, ha quatro mezes?...

O desgraçado Melchior arregalava os olhos miudos, que se embaciavam de lagrimas. Os caixotes?! Nada chegára, nada apparecera!... E na sua perturbação mirava pelas arcadas do pateo, palpava na algibeira das pantalonas. Os caixotes?... Não, não tinha os caixotes!

--E agora, Zé Fernandes?

Encolhi os hombros: --Agora, meu filho, só vires commigo para Guiães... Mas são duas horas fartas a cavallo. E não temos cavallos! O melhor é vêr o casarão, comer a boa gallinha que o nosso amigo Melchior nos assa no espeto, dormir n'uma enxerga, e ámanha cedo, antes do calor, trotar para cima, para a tia Vicencia.

Jacintho replicou, com uma decisão furiosa: --Ámanhã troto, mas para baixo, para a estação!... E depois, para

Lisboa!

E subiu a gasta escadaria do seu solar com amargura e rancor. Em cima uma larga varanda acompanhava a fachada do casarão, sob um alpendre de negras vigas, toda ornada, por entre os pilares de granito, com caixas de pau onde floriam cravos. Colhi um cravo amarello---e penetrei atraz de Jacintho nas salas nobres, que elle contemplava com um murmurio de horror. Eram enormes, d'uma sonoridade de casa capitular, com os grossos muros ennegrecidos pelo tempo e o abandono, e regeladas, desoladamente núas, conservando apenas aos cantos algum monte de canastras ou alguma enxada entre paus. Nos tectos remotos, de carvalho apainelado, luziam através dos rasgões manchas de céo. As janellas, sem vidraças, conservavam essas macissas portadas, com fechos para as trancas, que, quando se cerram, espalham a treva. Sob os nossos passos, aqui e além, uma taboa pôdre rangia e cedia.

--Inhabitavel! rugia Jacintho surdamente. Um horror! Uma infamia!...

Mas depois, n'outras salas, o soalho alternava com remendos de taboas novas. Os mesmos remendos claros mosqueavam os velhissimos tectos de rico carvalho sombrio. As paredes repelliam pela alvura crúa da cal fresca. E o sol mal atravessava as vidraças--embaciadas e gordurentas da massa e das mãos dos vidraceiros.

Penetramos emfim na ultima, a mais vasta, rasgada por seis janellas, mobilada com um armario e com uma enxerga parda e curta estirada a um canto: e junto d'ella paramos, e sobre ella depuzemos tristemente o que nos restava de vinte e trez malas--o meu paletot alvadio, a bengala de

Jacintho, e o Jornal do Commercio que nos era commum. Através das janellas escancaradas, sem vidraças, o grande ar da serra entrava e circulava como n'um eirado, com um cheiro fresco d'horta regada. Mas o que avistavamos, da beira da enxerga, era um pinheiral cobrindo um cabeço e descendo pelo pendor suave, á maneira d'uma hoste em marcha, com pinheiros na frente, destacados, direitos, emplumados de negro; mais longe as serras d'além rio, d'uma fina e macia côr de violeta; depois a brancura do céo, todo liso, sem uma nuvem, d'uma magestade divina. E lá debaixo, dos valles, subia, desgarrada e melancolica, uma voz de pegureiro cantando.

Jacintho caminhou lentamente para o poial d'uma janella, onde cahiu esbarrondado pelo desastre, sem resistencia ante aquelle brusco desapparecimento de toda a Civilisação! Eu palpava a enxerga, dura e regelada como um granito de inverno. E pensando nos luxuosos colchões de pennas e molas, tão prodigamente encaixotados no 202, desafoguei tambem a minha indignação: --Mas os caixotes, caramba?... Como se perdem assim trinta e tantos caixotes enormes?...

Jacintho saccudiu amargamente os hombros: --Encalhados, por ahi, algures, n'um barracão!... Em Medina, talvez, n'essa horrenda Medina. Indifferença das Companhias, inercia do

Silverio... Emfim a Peninsula, a barbarie!

Vim ajoelhar sobre o outro poial, alongando os olhos consolados por céo e monte: --É uma belleza!

O meu principe, depois de um silencio grave, murmurou, com a face encostada á mão: --É uma lindeza... E que paz!

Sob a janella vicejava fartamente uma horta, com repolho, feijoal, talhões de alface, gordas folhas de abobora rastejando. Uma eira, velha e mal alisada, dominava o valle, d'onde já subia tenuemente a nevoa d'algum fundo ribeiro. Toda a esquina do casarão d'esse lado se encravava em laranjal. E d'uma fontinha rustica, meio afogada em rosas tremedeiras, corria um longo e rutilante fio d'agua.

--Estou com appetite desesperado d'aquella agoa! declarou Jacintho, muito sério.

--Tambem eu... Desçamos ao quintal, hein? E passamos pela cosinha, a saber do frango.

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