Capítulo 10 - Parte 2
Voltamos á varanda. O meu Principe, mais conciliado com o destino inclemente, colheu um cravo amarello. E por outra porta baixa, de rigissimas hombreiras, mergulhamos n'uma sala, alastrada de caliça, sem tecto, coberta apenas de grossas vigas, d'onde s'ergueu uma revoada de pardaes.
--Olha para este horror! murmurava Jacintho arripiado.
E descemos por uma lobrega escada de castello, tenteando depois um corredor tenebroso de lages asperas, atravancado por profundas arcas, capazes de guardar todo o grão d'uma provincia. Ao fundo a cozinha, immensa, era uma massa de fórmas negras, madeira negra, pedra negra, densas negruras de felugem secular. E n'este negrume refulgia a um canto, sobre o chão de terra negra, a fogueira vermelha, lambendo tachos e panellas de ferro, despedindo uma fumarada que fugia pela grade aberta no muro, depois por entre a folhagem dos limoeiros. Na enorme lareira, onde se aqueciam e assavam as suas grossas peças de porco e boi os
Jacinthos medievaes, agora desaproveitada pela frugalidade dos caseiros, negrejava um poeirento montão de cestas e ferramentas; e a claridade toda entrava por uma porta de castanho, escancarada sobre um quintalejo rustico em que se misturavam couves lombardas e junquilhos formosos. Em roda do lume um bando alvoroçado de mulheres depennava frangos, remexia as caçarolas, picava a cebola, com um fervor afogueado e palreiro. Todas emmudeceram quando apparecemos--e d'entre ellas o pobre Melchior, estonteado, com o sangue a espirrar na nedia face d'abbade, correu para nós, jurando «que o jantarinho de suas Incellencias não demorava um credo»...
--E a respeito de camas, oh amigo Melchior?
O digno homem ciciou uma desculpa encolhida «sobre enxergasinhas no chão...» --É o que basta! acudi eu, para o consolar. Por uma noite, com lençoes frescos...
--Ah, lá pelos lençoesinhos respondo eu!... Mas um desgosto assim, meu senhor! A gente apanhada sem um colxãosinho de lã, sem um lombosinho de vacca... Que eu já pensei, até lembrei á minha comadre, V. Inc.^{as} podiam ir dormir aos Ninhos, a casa do Silverio. Tinham lá camas de ferro, lavatorios... Elle sempre é uma legoasita e mau caminho...
Jacintho, bondoso, accudiu: --Não, tudo se arranja, Melchior. Por uma noite!... Até gósto mais de dormir em Tormes, na minha casa da serra!
Sahimos ao terreiro, retalho de horta fechado por grossas rochas encabelladas de verdura, entestando com os socalcos da serra onde lourejava o centeio. O meu principe bebeu da agua nevada e lusidia da fonte, regaladamente, com os beiços na bica; appeteceu a alface rechonchuda e crespa; e atirou pulos aos ramos altos d'uma copada cerejeira, toda carregada de cereja. Depois, costeando o velho lagar, a que um bando de pombas branqueava o telhado, deslisámos até ao carreiro, cortado no costado do monte. E andando, pensativamente, o meu Principe pasmava para os milheiraes, para os vetustos carvalhos plantados por vetustos Jacinthos, para os casebres espalhados sobre os cabeços á orla negra dos pinheiraes.
De novo penetramos na avenida de faias e transpozemos o portão senhorial entre o latir dos cães, mais mansos, farejando um dono. Jacintho reconheceu «certa nobreza» na frontaria do seu lar. Mas sobretudo lhe agradava a longa alameda, assim direita e larga, como traçada para n'ella se desenrolar uma cavalgada de Senhores com plumas e pagens.
Depois, de cima da varanda, reparando na telha nova da capella, louvou o
Silverio, «esse ralaço», por cuidar ao menos da morada do Bom-Deus.
--E esta varanda tambem é agradavel, murmurou elle mergulhando a face no aroma dos cravos. Precisa grandes poltronas, grandes divans de verga...
Dentro, na «nossa sala», ambos nos sentamos nos poiaes da janella, contemplando o doce socego crepuscular que lentamente se estabelecia sobre valle e monte. No alto tremeluzia uma estrellinha, a Venus diamantina, languida annunciadora da noite e dos seus contentamentos.
Jacintho nunca considerára demoradamente aquella estrella, de amorosa refulgencia, que perpetua no nosso Céo catholico a memoria da Deusa incomparavel:--nem assistira jámais, com a alma attenta, ao magestoso adormecer da Natureza. E este ennegrecimento dos montes que se embuçam em sombra; os arvoredos emmudecendo, cançados de susurrar; o rebrilho dos casaes mansamente apagado; o cobertor de nevoa, sob que se acama e agasalha a frialdade dos valles; um toque somnolento de sino que rola pelas quebradas; o segredado cochichar das aguas e das relvas escuras--eram para elle como iniciações. D'aquella janella, aberta sobre as serras, entrevia uma outra vida, que não anda sómente cheia do Homem e do tumulto da sua obra. E senti o meu amigo suspirar como quem emfim descança.
D'este enlevo nos arrancou o Melchior com o doce aviso do «jantarinho de suas Incellencias». Era n'outra sala, mais núa, mais abandonada:--e ahi logo á porta o meu super-civilisado Principe estacou, estarrecido pelo desconforto, escassez e rudeza das coisas. Na mesa, encostada ao muro denegrido, sulcado pelo fumo das candeias, sobre uma toalha de estopa, duas velas de sêbo em castiçaes de lata alumiavam grossos pratos de louça amarella, ladeados por colheres de estanho e por garfos de ferro.
Os copos, d'um vidro espesso, conservavam a sombra roxa do vinho que n'elles passára em fartos annos de fartas vindimas. A malga de barro, atestada de azeitonas pretas, contentaria Diogenes. Espetado na côdea d'um immenso pão reluzia um immenso facalhão. E na cadeira senhoreal reservada ao meu Principe, derradeira alfaia dos velhos Jacinthos, de hirto espaldar de couro, com a madeira roída de caruncho, a clina fugia em melenas pelos rasgões do assento poido.
Uma formidavel moça, de enormes peitos que lhe tremiam dentro das ramagens do lenço cruzado, ainda suada e esbrazeada do calor da lareira, entrou esmagando o soalho, com uma terrina a fumegar. E o Melchior, que seguia erguendo a infusa do vinho, esperava que suas Incellencias lhe perdoassem porque faltára tempo para o caldinho apurar... Jacintho occupou a séde ancestral--e, durante momentos (de esgazeada anciedade para o caseiro excellente) esfregou energicamente, com a ponta da toalha, o garfo negro, a fusca colhér de estanho. Depois, desconfiado, provou o caldo, que era de gallinha e rescendia. Provou--e levantou para mim, seu camarada de miserias, uns olhos que brilharam, surprehendidos.
Tornou a sorver uma colherada mais cheia, mais considerada. E sorriu, com espanto:--«Está bom!»
Estava precioso: tinha figado e tinha moela: o seu perfume enternecia: tres vezes, fervorosamente, ataquei aquelle caldo.
--Tambem lá volto! exclamava Jacintho com uma convicção immensa. É que estou com uma fome... Santo Deus! Ha annos que não sinto esta fome.
Foi elle que rapou avaramente a sopeira. E já espreitava a porta, esperando a portadora dos piteus, a rija moça de peitos trementes, que emfim surgiu, mais esbrazeada, abalando o sobrado--e pousou sobre a mesa uma travessa a trasbordar de arroz com favas. Que desconsolo! Jacintho, em Paris, sempre abominára favas!... Tentou todavia uma garfada timida--e de novo aquelles seus olhos, que o pessimismo ennovoára, luziram, procurando os meus. Outra larga garfada, concentrada, com uma lentidão de frade que se regala. Depois um brado: --Optimo!... Ah, d'estas favas, sim! Oh que fava! Que delicia!
E por esta santa gula louvava a serra, a arte perfeita das mulheres palreiras que em baixo remexiam as panellas, o Melchior que presidia ao brodio...
--D'este arroz com fava nem em Paris, Melchior amigo!
O homem optimo sorria, inteiramente desannuviado: --Pois é cá a comidinha dos moços da quinta! E cada pratada, que até suas Incellencias se riam... Mas agora, aqui, o Snr. D. Jacintho, tambem vae engordar e enrijar!
O bom caseiro sinceramente cria que, perdido n'esses remotos Parizes, o
Senhor de Tormes, longe da fartura de Tormes, padecia fome e mingava...
E o meu Principe, na verdade, parecia saciar uma velhissima fome e uma longa saudade da abundancia, rompendo assim, a cada travessa, em louvores mais copiosos. Diante do louro frango assado no espeto e da salada que elle appetecera na horta, agora temperada com um azeite da serra digno dos labios de Platão, terminou por bradar:--«É divino!» Mas nada o enthusiasmava como o vinho de Tormes, cahindo d'alto, da bojuda infusa verde--um vinho fresco, esperto, seivoso, e tendo mais alma, entrando mais na alma, que muito poema ou livro santo. Mirando, á vela de sèbo, o copo grosso que elle orlava de leve espuma rosea, o meu
Principe, com um resplendôr d'optimismo na face, citou Virgilio: --Quo te carmina dicam, Rethica? Quem dignamente te cantará, vinho amavel d'estas serras?
Eu, que não gosto que me avantagem em saber classico, espanejei logo tambem o meu Virgilio, louvando as doçuras da vida rural: --Hanc olim veteres vitam coluere Sabini... Assim viveram os velhos
Sabinos. Assim Romolo e Remo... Assim cresceu a valente Etruria. Assim
Roma se tornou a maravilha do mundo!
E immovel, com a mão agarrada á infusa, o Melchior arregalava para nós os olhos em infinito assombro e religiosa reverencia.
* * * * *
Ah! Jantamos deliciosissimamente, sob os auspicios do Melchior--que ainda depois, próvido e tutelar, nos forneceu o tabaco. E, como ante nós se alongava uma noite de monte, voltamos para as janellas desvidraçadas, na sala immensa, a contemplar o sumptuoso céo de verão. Philosophámos então com pachorra e facundia.
Na Cidade (como notou Jacintho) nunca se olham, nem lembram os astros--por causa dos candieiros de gaz ou dos globos de electricidade que os offuscam. Por isso (como eu notei) nunca se entra n'essa communhão com o Universo que é a unica gloria e unica consolação da
Vida. Mas na serra, sem predios disformes de seis andares, sem a fumaraça que tapa Deus, sem os cuidados que como pedaços de chumbo puxam a alma para o pó rasteiro--um Jacintho, um Zé Fernandes, livres, bem jantados, fumando nos poiaes d'uma janella, olham para os astros e os astros olham para elles. Uns, certamente, com olhos de sublime immobilidade ou de subllime indifferença. Mas outros curiosamente, anciosamente, com uma luz que acena, uma luz que chama, como se tentassem, de tão longe, revelar os seus segredos, ou de tão longe comprehender os nossos...