Capítulo 11 - Parte 1
IX
Cedo, de madrugada, sem rumor, para não despertar o meu Jacintho, que, com as mãos cruzadas sobre o peito, dormia beatificamente na sua enxerga de granito--parti para Guiães.
Ao cabo d'uma semana, recolhendo uma manhã para o almoço, encontrei no corredor as minhas malas tão desejadas, que um moço do casal da Giesta trouxera n'um carro com «recados do Snr. Pimentinha». O meu pensamento pulou para o meu Principe. E lancei pelo telegrapho, para Lisboa, para o
Hotel Bragança, este brado alegre:--«Estás lá? Sei recuperaste Grillo e
Civilisação! Hurrah! Abraço!»--Só depois de sete dias, occupados n'uma delicada apanha de aspargos com que outr'ora civilisára a horta da tia
Vicencia, notei o silencio de Jacintho. N'um bilhete postal renovei, desenvolvi o grito amigo:--«Estás lá? São os prazeres da Baixa que assim te tornam desattento e mudo? Eu, todo aspargos! Responde, quando chegas?
Tempo delicioso! 23^o á sombra. E os ossos?...»--Veio depois a devota romaria da Senhora da Roqueirinha. Durante a lua nova andei n'um córte de matto, na minha terra das Corcas. A tia Vicencia vomitou, com uma indigestão de murcellas. E o silencio do meu Principe era ingrato e ferrenho.
Emfim uma tarde, voltando da Flor da Malva, de casa da minha prima
Joanninha, parei em Sandofim, na venda do Manoel Rico, para beber de certo vinho branco que a minha alma conhece--e sempre pede.
Defronte, á porta do ferrador, o Severo, sobrinho do Melchior de Tormes e o mais fino alveitar da serra, picava tabaco, escarranchado n'um banco. Mandei encher outro quartilho: elle acariciou o pescoço da minha egua que já salvára d'um esfriamento: e, como eu indagasse do nosso
Melchior, o Severo contou que na véspera jantára com elle em Tormes, e se abeirára tambem do fidalgo...
--Ora essa! Então o snr. D. Jacintho está em Tormes?
O meu espanto divertiu o Severo: --Então v. exc.^a... Pois em Tormes é que elle está, ha mais de cinco semanas, sem arredar! E parece que fica para a vindima, e vai lá uma grandeza!
Santissimo nome de Deus! Ao outro dia, domingo, depois da missa e sem me assustar com a calma que carregava, trotei alvoroçadamente para Tormes.
Ao latir dos rafeiros, quando transpuz o portal solarengo, a comadre do
Melchior accudio dos lados do curral, com um alguidar de lavagem encostado á cintura.--Então o snr. D. Jacintho?... O snr. D. Jacintho andava lá para baixo, com o Silverio e com o Melchior, nos campos de
Freixomil...
--E o Snr. Grillo, o preto?
--Ha bocadinho tambem o enxerguei no pomar, com o francez, a apanhar limões doces...
Todas as janellas do solar rebrilhavam, com vidraças novas, bem polidas.
A um canto do páteo notei baldes de cal e tijellas de tintas. Uma escada de pedreiro descançára durante o Dia Santo arrimada contra o telhado. E, rente ao muro da capella, dois gatos dormiam sobre montões de palha desempacotada de caixotes consideraveis.
--Bem, pensei eu. Eis a Civilisação!
Recolhi a egua, galguei a escada. Na varanda, sobre uma pilha de ripas, reluzia n'um raio de sol uma banheira de zinco. Dentro encontrei todos os soalhos remendados, esfregados a carqueja. As paredes, muito caiadas e núas, refrigeravam como as d'um convento. Um quarto, a que me levaram tres portas escancaradas com franqueza serrana, era certamente o de
Jacintho: a roupa pendia de cabides de pau: o leito de ferro, com coberta de fustão, encolhia timidamente a sua rigidez virginal a um canto, entre o muro e a banquinha onde um castiçal de latão resplandecia sobre um volume do D. Quichote; no lavatorio pintado de amarello, imitando bambú, apenas cabia o jarro, a bacia, um naco gordo de sabão; e uma prateleirinha bastava ao esmerado alinho da escova, da thesoura, do pente, do espelhinho de feira, e do frasquinho de agua de alfazema que eu mandára de Guiães. As tres janellas, sem cortinas, contemplavam a belleza da serra, respirando um delicado e macio ar, que se perfumava nas resinas dos pinheiraes, depois nas roseiras da horta. Em frente, no corredor, outro quarto repetia a mesma simplicidade. Certamente a previdencia do meu Principe o destinára ao seu Zé Fernandes. Pendurei logo dentro, no cabide, o meu guarda-pó de lustrina.
Mas na sala immensa, onde tanto philosopháramos considerando as estrellas, Jacintho arranjára um centro de repouso e d'estudo--e desenrolára essa «grandeza» que impressionava o Severo. As cadeiras de verga da Madeira, amplas e de braços, offereciam o conforto de almofadinhas de chita. Sobre a mesa enorme de pau branco, carpinteirada em Tormes, admirei um candieiro de metal de tres bicos, um tinteiro de frade armado de pennas de pato, um vaso de capella transbordando de cravos. Entre duas janellas uma commoda antiga, embutida, com ferragens lavradas, recebera sobre o seu marmore rosado o devoto peso d'um
Presepio, onde Reis Magos, pastores de surrões vistosos, cordeiros d'esguedelhada lã, se apressavam atravez d'alcantis para o Menino, que na sua lapinha lhes abria os braços, coroado por uma enorme Corôa Real.
Uma estante de madeira enchia outro pedaço de parede, entre dois retratos negros com caixilhos negros; sobre uma das suas prateleiras repousavam duas espingardas; nas outras esperavam, espalhados, como os primeiros Doutores nas bancadas d'um concilio, alguns nobres livros, um
Plutarcho, um Virgilio, a Odyssea, o Manual de Epictecto, as Chronicas de Froissart. Depois, em fila decorosa, cadeiras de palhinha, muito novas, muito envernisadas. E a um canto um mólho de varapaus.
Tudo resplandecia de asseio e ordem. As portadas das janellas, cerradas, abrigavam do sol que batia aquelle lado de Tormes, escaldando os peitoris de pedra. Do soalho, burrifado de agua, subia, na suavisada penumbra, uma frescura. Os cravos rescendiam. Nem dos campos, nem da casa, se elevava um rumor. Tormes dormia no esplendor da manhã santa. E, penetrado por aquella consoladora quietação de convento rural, terminei por me estender n'uma cadeira de verga, junto da mesa, abrir languidamente um tomo de Virgilio, e murmurar, appropriando o doce verso que encontrára:
Fortunate Jacinthe! Hic, inter arva nota
Et fontes sacros, frigus captabis opacum...
Afortunado Jacintho, na verdade! Agora, entre campos que são teus e aguas que te são sagradas, colhes emfim a sombra e a paz!
Li ainda outros versos. E, na fadiga das duas horas de egua e calor desde Guiães, irreverentemente adormecia sobre o divino
Bucoliasta--quando me despertou um berro amigo! Era o meu Principe. E muito decididamente, depois de me soltar do seu rijo abraço, o comparei a uma planta estiolada, emmurchecida na escuridão, entre tapetes e sêdas, que, levada para vento e sol, profusamente regada, reverdece, desabrocha e honra a Natureza! Jacintho já não corcovava. Sobre a sua arrefecida pallidez de super-civilisado, o ar montesino, ou vida mais verdadeira, espalhára um rubor trigueiro e quente de sangue renovado que o virilisava soberbamente. Dos olhos, que na Cidade andavam sempre tão crepusculares e desviados do Mundo, saltava agora um brilho de meio-dia, resoluto e largo, contente em se embeber na belleza das coisas. Até o bigode se lhe encrespára. E já não deslisava a mão desencantada sobre a face,--mas batia com ella triumphalmente na côxa. Que sei? Era um
Jacintho novissimo. E quasi me assustava, por eu ter de aprender e penetrar, n'este novo Principe, os modos e as idéas novas.
--Caramba, Jacintho, mas então...?
Elle encolheu jovialmente os hombros realargados. E só me soube contar, trilhando soberanamente com os sapatos brancos e cobertos de pó o soalho remendado, que, ao acordar em Tormes, depois de se lavar n'uma dorna, e d'enfiar a minha roupa branca, se sentira de repente como desannuviado, desenvencilhado! Almoçára uma pratada de ovos com chouriço, sublime. Passeára por toda aquella magnificencia da serra com pensamentos ligeiros de liberdade e de paz. Mandára ao Porto comprar uma cama, uns cabides... E alli estava...
--Para todo o verão?
--Não! Mas um mez... Dois mezes! Emquanto houver chouriços, e a agoa da fonte, bebida pela telha ou n'uma folha de couve, me souber tão divinamente!
Cahi sobre a cadeira de verga, e contemplei, arregalado, quasi esgazeado, o meu Principe! Elle enrolava n'uma mortalha tabaco picado, tabaco grosso, guardado n'uma malga vidrada. E exclamava: --Ando ahi pelas terras desde o romper d'alva! Pesquei já hoje quatro trutas, magnificas... Lá em baixo, no Naves, um riachote que se atira pelo valle da Seranda... Temos logo ao jantar essas trutas!
Mas eu, avido pela historia d'aquella ressurreição: --Então, não estiveste em Lisboa?... Eu telegraphei...
--Qual telegrapho! Qual Lisboa! Estive lá em cima, ao pé da fonte da
Lira, á sombra d'uma grande arvore, sub tegmine não sei quê, a lêr esse adorável Virgilio... E tambem a arranjar o meu palacio! Que te parece, Zé Fernandes? Em tres semanas, tudo soalhado, envidraçado, caiado, encadeirado!... Trabalhou a freguezia inteira! Até eu pintei, com uma immensa brocha. Viste o comedoiro?
--Não.
--Então vem admirar a belleza na simplicidade, barbaro!
Era a mesma onde nós tanto exaltaramos o arroz com favas--mas muito esfregada, muito caiada, com um rodapé bezuntado d'azul estridente onde logo adivinhei a obra do meu Principe. Uma toalha de linho de Guimarães cobria a mesa, com as franjas roçando o soalho. No fundo dos pratos de louça forte reluzia um gallo amarello. Era o mesmo gallo e a mesma louça em que na nossa casa, em Guiães, se servem os feijões dos cavadores...
Mas no páteo os cães latiram. E Jacintho correu á varanda, com uma ligeireza curiosa que me deleitou. Ah, bem definitivamente se esfrangalhára aquella rede de malha que se não percebia e que outr'ora o travava!--N'esse momento appareceu o Grillo, de quinzena de linho, segurando em cada mão uma garrafa de vinho branco. Todo se alegrou «em vêr na quinta o siô Fernandes». Mas a sua veneranda face já não resplandecia, como em Paris, com um tão sereno e ditoso brilho de ebano.
Até me pareceu que corcovava... Quando o interroguei sobre aquella mudança, estendeu duvidosamente o beiço grosso: --O menino gosta, eu então tambem gósto... Que o ar aqui é muito bom, siô Fernandes, o ar é muito bom!
Depois, mais baixo, envolvendo n'um gesto desolado a louça de Barcellos, as facas de cabo d'osso, as prateleiras de pinho como n'um refeitorio de
Franciscanos: --Mas muita magreza, siô Fernandes, muita magreza!
Jacintho voltava com um maço de jornaes cintados: --Era o carteiro. Já vês que não amuei inteiramente com a Civilisação.
Eis a Imprensa!... Mas nada de Figaro, ou da horrenda Dois-Mundos!
Jornaes de Agricultura! Para aprender como se produzem as risonhas messes, e sob que signo se casa a vinha ao olmo, e que cuidados necessita a abelha provida... Quid faciat laetas segetes... De resto para esta nobre educação, já me bastavam as Georgicas, que tu ignoras!
Eu ri: --Alto lá! Nos quoque gens sumus et nostrum Virgilium sabemus!
Mas o meu novissimo amigo, debruçado da janella, batia as palmas--como
Catão para chamar os servos, na Roma simples. E gritava: --Anna Vaqueira! Um copo d'agoa, bem lavado, da fonte velha!
Pulei, immensamente divertido: --Oh Jacintho! E as aguas carbonatadas? e as phosphatadas? e as esterilisadas? e as sodicas?...
O meu Principe atirou os hombros com um desdem soberbo. E acclamou a apparição d'um grande copo, todo embaciado pela frescura nevada da agoa refulgente, que uma bella moça trazia n'um prato. Eu admirei sobretudo a moça... Que olhos, d'um negro tão liquido e serio! No andar, no quebrar da cinta, que harmonia e que graça de Nympha latina!
E apenas pela porta desapparecera a explendida apparição: --Oh Jacintho, eu d'aqui a um instante tambem quero agua! E se compete a esta rapariga trazer as cousas, eu, de cinco em cinco minutos, quero uma cousa!... Que olhos, que corpo... Caramba, menino! Eis a poesia, toda viva, da serra...
O meu Principe sorria, com sinceridade: --Não! não nos illudamos, Zé Fernandes, nem façamos Arcadia. É uma bella moça, mas uma bruta... Não ha alli mais poesia, nem mais sensibilidade, nem mesmo mais belleza do que n'uma linda vacca tourina. Merece o seu nome de Anna Vaqueira. Trabalha bem, digere bem, concebe bem. Para isso a fez a Natureza, assim sã e rija; e ella cumpre. O marido todavia não parece contente, porque a desanca. Tambem é um bello bruto... Não, meu filho, a serra é maravilhosa e muito grato lhe estou... Mas temos aqui a fêmea em toda a sua animalidade e o macho em todo o seu egoismo... São porém verdadeiros, genuinamente verdadeiros! E esta verdade, Zé
Fernandes, é para mim um repouso.
Lentamente, gozando a frescura, o silencio, a liberdade do vasto casarão, retrocedemos á sala que Jacintho já denominára a Livraria. E, de repente, ao avistar n'um canto uma caixa com a tampa meio despregada, quasi me engasguei, na furiosa curiosidade que me assaltou: --E os caixotes? Oh Jacintho?... Toda aquella immensa caixotaria que nós mandamos, abarrotada de Civilisação? Soubeste? Appareceram?
O meu Principe parou, bateu alegremente na côxa: --Sublime! Tu ainda te lembras d'aquelle homemsinho, de sacco a tiracollo, que nós admiramos tanto pela sua sagacidade, o seu saber geographico?... Lembras? Apenas fallei em Tormes, gritou que conhecia, rabiscou uma nota... Nem era necessario mais! «Oh! Tormes, perfeitamente, muito antigo, muito curioso!» Pois mandou tudo para
Alba-de-Tormes, em Hespanha! Está tudo em Hespanha!
Cocei o queixo, desconsolado: --Ora, ora... Um homem tão esperto, tão expedito, que fazia tanta honra ao Progresso! Tudo para Hespanha!... E mandaste vir?
--Não! Talvez mais tarde... Agora, Zé Fernandes, estou saboreando esta delicia de me erguer pela manhã, e de ter só uma escova para alisar o cabello.
Considerei, cheio de recordações, o meu amigo: --Tinhas umas nove...
--Nove? Tinha vinte! Talvez trinta! E era uma atrapalhação, não me bastavam!... Nunca em Paris andei bem penteado. Assim com os meus setenta mil volumes: eram tantos que nunca li nenhum. Assim com as minhas occupações: tanto me sobrecarregavam, que nunca fui util!
* * * * *
De tarde, depois da calma, fomos vaguear pelos caminhos colleantes d'aquella quinta rica, que, através de duas legoas, ondula por valle e monte. Não m'encontrára mais com Jacintho em meio da Natureza, desde o remoto dia d'entremez em que elle tanto soffrera no sociavel e policiado bosque de Montmorency. Ah, mas agora, com que segurança e idyllico amor elle se movia através d'essa Natureza, d'onde andára tantos annos desviado por theoria e por habito! Já não arreceiava a humidade mortal das relvas; nem repellia como impertinente o roçar das ramagens; nem o silencio dos altos o inquietava como um despovoamento do Universo. Era com delicias, com um consolado sentimento de estabilidade recuperada, que enterrava os grossos sapatos nas terras molles, como no seu elemento natural e paterno: sem razão, deixava os trilhos faceis, para se embrenhar através de arbustos emaranhados, e receber na face a caricia das folhas tenras; sobre os outeiros, parava, immovel, retendo os meus gestos e quasi o meu halito, para se embeber de silencio e de paz: e duas vezes o surprehendi attento e sorrindo á beira d'um regatinho palreiro, como se lhe escutasse a confidencia...
Depois philosophava, sem descontinuar, com o enthusiasmo d'um convertido, avido de converter: --Como a intelligencia aqui se liberta, hein? E como tudo é animado d'uma vida forte e profunda!... Dizes tu agora, Zé Fernandes, que não ha aqui pensamento...
--Eu?! Eu não digo nada, Jacintho...
--Pois é uma maneira de reflectir muito estreita e muito grosseira...
--Ora essa! Mas eu...
--Não, não percebes. A vida não se limita a pensar, meu caro doutor...
--Que não sou!
--A vida é essencialmente Vontade e Movimento: e n'aquelle pedaço de terra, plantado de milho, vae todo um mundo de impulsos, de forças que se revelam, e que attingem a sua expressão suprema, que é a Fórma. Não, essa tua philosophia está ainda extremamente grosseira...
--Irra! mas eu não...
--E depois, menino, que inesgotavel, que miraculosa diversidade de fórmas... E todas bellas!
Agarrava o meu pobre braço, exigia que eu reparasse com reverencia. Na
Natureza nunca eu descobriria um contorno feio ou repetido! Nunca duas folhas d'hera, que, na verdura ou recorte, se assemelhassem! Na Cidade, pelo contrario, cada casa repete servilmente a outra casa; todas as faces reproduzem a mesma indifferença ou a mesma inquietação; as idéas teem todas o mesmo valor, o mesmo cunho, a mesma fórma, como as libras; e até o que ha mais pessoal e intimo, a Illusão, é em todos identica, e todos a respiram, e todos se perdem n'ella como no mesmo nevoeiro... A mesmice--eis o horror das Cidades!
--Mas aqui! Olha para aquelle castanheiro. Ha tres semanas que cada manhã o vejo, e sempre me parece outro... A sombra, o sol, o vento, as nuvens, a chuva, incessantemente lhe compõem uma expressão diversa e nova, sempre interessante. Nunca a sua frequentação me poderia fartar...
Eu murmurei: --É pena que não converse!
O meu Principe recuou, com olhares chammejantes, d'Apostolo: --Como que não converse? Mas é justamente um conversador sublime! Está claro, não tem ditos, nem parola theorias, ore rotundo. Mas nunca eu passo junto d'elle que não me suggira um pensamento ou me não desvende uma verdade... Ainda hoje quando eu voltava de pescar as trutas...
Parei: e logo elle me fez sentir como toda a sua vida de vegetal é isenta de trabalho, da anciedade, do esforço que a vida humana impõe; não tem de se preoccupar com o sustento, nem com o vestido, nem com o abrigo; filho querido de Deus, Deus o nutre, sem que elle se mova ou se inquiete... E é esta segurança que lhe dá tanta graça e tanta magestade.
Pois não achas?
Eu sorria, concordava. Tudo isto era de certo rebuscado e especioso. Mas que importavam as requintadas metaphoras, e essa metaphysica mal madura, colhida á pressa nos ramos d'um castanheiro? Sob toda aquella ideologia transparecia uma excellente realidade--a reconciliação do meu Principe com a Vida. Segura estava a sua Resurreição depois de tantos annos de cova, da cova molle em que jazera, enfaixado como uma mumia nas faixas do Pessimismo!
E o que esse Principe, n'esta tarde me esfalfou! Farejava, com uma curiosidade insaciavel, todos os recantos da serra! Galgava os cabeços correndo, como na esperança de descobrir lá do alto os esplendores nunca contemplados d'um Mundo inedito. E o seu tormento era não conhecer os nomes das arvores, da mais rasteira planta brotando das fendas d'um socalco... Constantemente me folheava como a um Diccionario Botanico.
--Fiz toda a sorte de cursos, passei pelos professores mais illustres da
Europa, tenho trinta mil volumes, e não sei se aquelle senhor além é um amieiro ou um sobreiro...
--É um azinheiro, Jacintho.
Já a tarde cahia quando recolhemos muito lentamente. E toda essa adoravel paz do céo, realmente celestial, e dos campos, onde cada folhinha conservava uma quietação contemplativa, na luz docemente desmaiada, pousando sobre as cousas com um liso e leve affago, penetrava tão profundamente Jacintho, que eu o senti, no silencio em que cahiramos, suspirar de puro allivio.
Depois, muito gravemente: --Tu dizes que na natureza não ha pensamento...
--Outra vez! Olha que massada! Eu...
--Mas é por estar n'ella supprimido o pensamento que lhe está poupado o soffrimento! Nós, desgraçados, não podemos supprimir o pensamento, mas certamente o podemos disciplinar e impedir que elle se estonteie e se esfalfe, como na fornalha das cidades, ideando gozos que nunca se realisam, aspirando a certezas que nunca se attingem!... E é o que aconselham estas collinas e estas arvores á nossa alma, que vela e se agita:--que viva na paz d'um sonho vago e nada appeteça, nada tema, contra nada se insurja, e deixe o Mundo rolar, não esperando d'elle senão um rumor de harmonia, que a emballe e lhe favoreça o dormir dentro da mão de Deus. Hein, não te parece, Zé Fernandes?