Capítulo 11 - Parte 1
Assim, pelas varzeas entrecorridas de regueiros, lenta nos recostos dos mattos, escorregando mais rapida, pelos corregos pedregosos, seguia a procissão, sempre com a cruz adiante, alta e prateada, rebrilhando por vezes n'um breve raiosinho de sol que, vagarosamente, surdia da nevoa desfeita. Ramos baixos de lodão ou de salgueiro passavam uma derradeira caricia sobre o velludo dos caixões.
Um regato por vezes nos acompanhava, com discreto fulgir entre as relvas, sussurrando e como resando tambem, alegremente: e nos quintalinhos umbrosos, á nossa passagem, os gallos, de cima das pilhas de matto, faziam soar o seu clarim festivo. Depois, adiante da fonte da
Lira, como o caminho se alongava, e desejassemos poupar o nosso velho abbade, cortamos atravez d'uma seara, já alta, quasi madura, toda entremeada de papoulas, O sol radiou: sob a brisa larga, que levára a nevoa, toda a messe ondulou n'uma lenta vaga dourada, em que se balouçavam os esquifes; e, como enorme papoula, a mais vermelha, rutilava o guarda sol de panninho logo aberto pelo sacristão para abrigar o abbade.
Jacintho tocou no meu cotovello: --Que lindos vamos! Ora vê tu a Natureza... N'um simples enterrar d'ossos, quanta graça e quanta belleza!
Na Capellinha, nova, dominando o valle da Carriça, solitaria e muito nua, no meio d'um adro, ainda mal alisado, sem uma verdura de relva, uma frescura d'arbusto, dous moços seguravam á porta molhos de tochas, que o
Silverio distribuiu, a passos graves, com cortezias, solemnissimo.
Dentro as curtas chammas, mal luziam, mal derramavam a sua amarellidão triste, esbatidas na relusente brancura dos muros estucados, na jovial claridade que cahia das altas vidraças bem polidas. Em torno dos esquifes, pousados sobre bancos, que pesados velludilhos recobriam, o abbade murmurava um suave latim, emquanto ao fundo as mulheres, sumidas na sombra dos seus negros lenços, gemiam amens agudos, abafavam um respeitoso soluço. Depois, tomando levemente o hyssope, ainda o bom abbade aspergiu, para uma derradeira purificação, os incertos ossos dos incertos Jacinthos. E todos desfilamos por diante do meu Principe, timidamente encostado á umbreira, com o Silverio ao lado esmagando contra o peitilho as barbas immensas, a face descahida, cerradas as palpebras como contendo lagrimas.
No adro, o meu Principe accendeu regaladamente um cigarro pedido ao
Melchior: --E então, Zé Fernandes, que te pareceu a ceremoniasinha?
--Muito campestre, muito suave, muito risonha... Uma delicia.
Mas o Abbade, que se desvestira na Sachristia, appareceu, já com o seu grande casaco de lustrina, e seu velho chapeu desabado, trazidos pelo moço da Residencia, n'um sacco de chita. Jacintho, immediatamente lhe agradeceu tantos cuidados, a affavel hospitalidade que offerecera aos ossos, durante a construcção da Capellinha nova. E o suave velho, todo branquinho, de faces ainda menineiras e coradas, com um claro sorriso de dentes sadios, louvava Jacintho, que assim viera de tão longe, em tão longa jornada, para cumprir aquelle dever de bom neto.
--São avós muito remotos, e agora tão confusos! murmurava Jacintho sorrindo.
--Pois mais merito ainda o de v. ex.^a. Respeitar um avô morto, bem é corrente... Mas respeitar os ossos d'um quinto avô, d'um setimo avô!
--Sobretudo, Snr. Abbade, quando d'elles nada se sabe, e naturalmente nada fizeram.
O velho sacudiu risonhamente o dedo gordo: --Ora quem sabe, quem sabe! Talvez fossem excellentes! E por fim, quem muito se demora no mundo, como eu, termina por se convencer que no mundo não ha cousa ou ser inutil. Ainda hontem eu lia n'um jornal do Porto, que por fim, segundo se descobriu, são as minhocas que estrumam e lavram a terra, antes de chegar o lavrador e os bois com o arado. Até as minhocas são uteis. Não ha nada inutil... Eu tinha lá na residencia uma porção de cardos a um canto da horta, que me affligiam. Pois reflecti e terminei por me regalar com elles em xarope. Os avós de v. ex.^a por cá andaram, por cá trabalharam, por cá padeceram. Quer dizer: por cá serviram. E, em todo o caso, que lhes rezemos um Padre-Nosso por alma não lhes póde fazer senão bem, a elles e a nós.
E assim, docemente philosophando, paramos n'um souto de carvalheiras, onde esperava a velhissima egoa do Abbade, por que o santo homem agora, depois do rheumatismo do ultimo inverno, já não affrontava rijamente como antes os trilhos duros da serra. Para elle montar, filialmente
Jacintho segurou o estribo. E emquanto a egoa se empurrava pelo corrego acima, quasi tapada sob o immenso guarda sol vermelho em que se abrigava o velho, nós recolhemos a casa mettendo pela serra da Lombinha, atravez dos milhos, e depressa, porque eu estalava, aperreado, dentro da roupa preta do meu Principe.
--Estão pois accommodados estes senhores, Zé Fernandes! Só resta rezar por elles o Padre-Nosso, que recommenda o abbade... Sómente, eu não sei, já não me lembro do Padre-Nosso.
--Não te afflijas, Jacintho: peço á tia Vicencia que reze por mim e por ti. É sempre a tia Vicencia que reza os meus Padre-Nossos.
Durante essas semanas que preguicei em Tormes, eu assisti, com internecido interesse, a uma consideravel evolução de Jacintho nas suas relações com a Natureza. D'aquelle periodo sentimental de contemplação, em que colhia theorias nos ramos de qualquer cerejeira, e edificava
Systemas sobre o espumar das levadas, o meu Principe lentamente passava para o desejo da Acção... E d'uma acção directa e material, em que a sua mão, emfim restituida a uma funcção superior, revolvesse o torrão.
Depois de tanto commentar, o meu Principe, evidentemente, aspirava a crear.
Uma tardinha, ao anoitecer, sentados no pomar, no rebordo do tanque, em quanto o Manoel hortelão apanhava laranjas no alto d'uma escada arrimada a uma alta laranjeira, Jacintho observou, mais para si do que para mim: --É curioso... Nunca plantei uma arvore!
--Pois é um dos tres grandes actos, sem os quaes segundo diz não sei que
Philosopho, nunca se foi um verdadeiro homem... Fazer um filho, plantar uma arvore, escrever um livro. Tens de te apressar, para ser um homem. É possivel que talvez nunca prestasses um serviço a uma arvore, como se presta a um semelhante!
--Sim... Em Paris, quando era pequeno, regava os lilazes. E no verão é um bello serviço! Mas nunca semeei.
E como o Manoel descia da escada, o meu Principe, que nunca acreditára inteiramente--pobre homem!--no meu saber agricola, immediatamente reclamou o parecer d'aquella auctoridade: --Oh Manoel, ouça lá, o que é que se poderia agora semear?
Como cesto das laranjas enfiado no braço, o Manoel exclamou, atravez d'um lento riso, entre respeitoso e divertido: --Semear, patrão? Agora é antes colher... Olhe que já se anda a limpar a eirasinha para a debulha, meu patrão.
--Pois sim... Mas sem ser milho nem cevada... Então alli no pomar, rente do muro velho, não se podia plantar uma fila de pecegueiros?
O riso do Manoel crescia.
--Isso sim, meu senhor! Isso é lá para os Santos ou para o Natal. Agora só a couvinha na horta, a beldroega, os espinafres, algum feijãosinho em terra muito fresca...
O meu Principe sacudiu com brando gesto estes legumes rasteiros.
--Bem, boa noite, Manoel. Essas laranjas são da tal laranjeira que diz o
Melchior, muito doces, muito finas? Então leve para os seus pequenos.
Leve muitas para os pequenos.
Não! o empenho era crear a arvore. Pela arvore contemplada na serra em sua verdadeira magestade, na beneficencia da sua sombra, na frescura emballadora do seu rumorejar, na graça e santidade dos ninhos que a povoam, começára talvez, lentamente, o seu amor novo da Terra. E agora sonhava uma Tormes toda coberta d'arvores, cujos fructos e verduras, e sombras, e rumorejos suaves, e abrigados ninhos, fossem a obra e o cuidado das suas mãos paternaes.
No silencio grave do crepusculo, que descia, murmurou ainda: --Oh Zé Fernandes; quaes são as arvores que crescem mais depressa?
--Eh, meu Jacintho... A arvore que cresce mais depressa é o eucalypto, o feiissimo e ridiculo eucalypto. Em seis annos tens ahi Tormes coberta de eucalyptos...
--Tudo tão lento, Zé Fernandes...
Porque o seu sonho, que eu comprehendia, seria plantar caroços que subissem em fortes troncos, se alargassem em verdes ramarias, antes de elle voltar ao 202, no começo do inverno...
--Um carvalho!... Trinta annos, antes que seja bello! Desanímo! É bom para Deus, que pode esperar... Patiens quia aeternus. Trinta annos!
D'aqui a trinta annos, arvores só para me cobrirem a sepultura!
--Já é um ganho. E depois para teus filhos, Jacintho...
--Filhos! onde os tenho eu?
--É o mesmo processo dos castanheiros. Semeia. Não faltam por ahi terras agradaveis... Em nove mezes tens uma planta feita. E quanto mais tenrinhas, e mais pequeninas, mais essas plantas encantam.
Elle murmurou, crusando as mãos sobre o joelho: --Tudo leva tanto tempo!...
E á borda do tanque nos quedamos, calados, na fresca doçura do anoitecer, entre o cheiro avivado das madresilvas do muro, olhando o crescente da lua, que surdia dos telhados de Tormes.
E decerto esta pressa de se tornar entre a Natureza não mais um sonhador, mas um creador, arremessou vivamente o seu interesse para os gados! Repetidamente, nos nossos passeios atravez da quinta, elle lhe notava a solidão.
--Faltam aqui animaes, Zé Fernandes!
Imaginava eu, que elle appetecia em Tormes o ornato elegante de veados e pavões. Mas um domingo, costeando o largo campo da Ribeirinha, sempre escasso d'agoas, agora mais resequido por verão de tanta seccura, o meu
Principe parou a considerar os tres carneiros do caseiro, que retouçavam com penuria uma relvagem pobre.
E, de repente, como magoado: --Justamente! Aqui está o espaço para um bello prado, um immenso prado, muito verde, muito farto, com rebanhos de carneiros brancos, gordissimos como bolas de algodão pousadas na relva!... Era lindo, hein? É facil, não é verdade, Zé Fernandes?
--Sim... Trazes a agoa para o prado. Agoas não faltam, na serra.
E o meu principe encadeando logo n'esta inspirada idea outra, mais rica e vasta, lembrou quanta belleza daria a Tormes encher esses prados, esses verdes ferregiaes, de manadas de vaccas, formosas vaccas inglezas, bem nedias e bem luzidias. Hein? Uma belleza. Para abrigar esses gados ricos, construiria curraes perfeitos, d'uma architectura leve e util, toda em ferro e vidro, fundamente varridos pelo ar, largamente lavados pela agoa... Hein? Que formosura! Depois, com todas essas vaccas, e o leite jorrando, nada mais facil e mais divertido, e até mais moral, que a installação d'uma queijeira, á fresca moda Hollandeza, toda branca e reluzente, de azulejos e de marmore, para fabricar os Camemberts, os
Bries... os Coulommiers... Para a casa, que conforto! E para toda a serra, que actividade!
--Pois não te parece, Zé Fernandes?
--Com certeza. Tu tens, em abundancia, os quatro Elementos: o ar, a agoa, a terra, e o dinheiro. Com estes quatro elementos, facilmente se faz uma grande lavoura. Quanto mais uma queijeira!
--Pois não é verdade? E até como negocio! Está claro, para mim o lucro é o deleite moral do trabalho, o emprego fecundo do dia... Mas uma queijaria, assim perfeita, rende. Rende prodigiosamente. E educa o paladar, incita a installações eguaes, implanta talvez no paiz uma industria nova e rica! Ora com essa installação, perfeita, quanto me poderá custar cada queijo?
Fechei um olho, calculando: --Eu te digo.... Cada queijo, um d'esses queijinhos redondos, como o
Camembert ou o Rabaçal, póde vir a custar-te, a ti Jacintho queijeiro, entre duzentos e cincoenta e trezentos mil réis.
O meu Principe recuou, com dous olhos alegres espantados para mim.
--Como trezentos mil réis?
--Ponhamos duzentos... Tem a certeza! Com todos esses prados, e os encanamentos d'agoa e a configuração da serra alterada, e as vaccas inglezas, e os edificios de porcellana e vidro, e as maquinas, a extravagancia, e a patuscada bucolica, cada queijo te custa, a ti productor, duzentos mil réis. Mas com certeza o vendes no Porto por um tostão. Põe cincoenta réis para a caixa, rotulos, transporte, commissão, etc. Tens apenas, em cada queijo uma perda de cento e noventa e nove mil oitocentos e cincoenta réis!
O meu Principe não desanimou.
--Perfeitamente! Faço um d'esses espantosos queijos por semana, ao sabbado, para o comermos nós ambos ao domingo!
E tanta energia lhe communicava o seu novo Optimismo, tão anciosamente aspirava a crear, que logo, arrastando o Silverio e o Melchior por cabeços e barrancos, largou a percorrer a quinta toda, para determinar onde cresceriam, ao seu mando inspirado, os verdes prados, e se ergueriam, rebrilhantes no sol de Tormes, os curraes elegantes. Com a esplendida segurança dos seus cento e nove contos de renda, não surgia difficuldade, risonhamente murmurada pelo Melchior, ou exclamada, com respeitoso pasmo, pelo Silverio, que elle não afastasse brandamente, com geito leve, como um galho de roseira brava atravessado n'uma vereda.
Aquellas rochas, além, empecendo? Que se arrancassem! Um valle importuno dividia dous campos? Que se atulhasse! O Silverio suspirava, enxugando sobre a escura calva um suor quasi d'angustia. Pobre Silverio! Rijamente sacudido na doce pachorra da sua administração, calculando despezas que se affiguravam sobrehumanas á sua parcimonia serrana, forçado a arquejar, sem descanço, sob soalheiras de Junho, o desgraçado retomára na Serra o geito que Jacintho deixára em Paris,--e era elle que corria pelas longas barbas tenebrosas os dedos desalentados... Emfim uma tarde desabafou comigo, a um canto da varanda, em quanto Jacintho, na livraria, escrevia a um seu amigo de Hollanda, o conde Rylant, Mordomo
Mór da Corte, pedindo desenhos, e planos, e orçamentos d'uma queijeira perfeita.
--Pois, Snr. Fernandes, se toda esta grandeza vae por diante, sempre lhe digo que o Snr. D. Jacintho enterra aqui na serra dezenas de contos...
Dezenas de contos!
E como eu alludia á fortuna do meu Principe, a quem todas essas obras tão vastas, que alterariam o antiquissimo rosto da serra, não custavam mais que a outros o concerto d'um socalco,--o bom Silverio atirou os longos braços para as coxas gordas, ainda mais desolado: --Pois por isso mesmo, Snr. Fernandes! Se o Snr. D. Jacintho não tivesse a dinheirama, recuava. Assim, é zás zás, para deante; e eu não o censuro pela ideia. Lograsse eu a renda de S. Ex.^a, que me atirava tambem a uma lavoura de capricho. Mas não aqui, Snr. Fernandes, n'estas serranias, entre alcantis. Pois um senhor que possue aquella linda propriedade de
Montemór, nos campos do Mondego, onde até podia plantar jardins de desbancar os do Palacio de Crystal do Porto! E a Velleira? O Snr.
Fernandes não conhece a Velleira, lá para os lados de Penafiel? Isso é um condado! E uma terra chã, boa terra, toda junta, alli em volta da casa, com uma torre. Um regalo, Snr. Fernandes. Mas sobretudo Montemór!
Lá é que eram prados e manadas de vaccas inglezas, e queijeira e horta rica, de fartar, e ahi trinta perús na capoeira...
--Então que quer, Silverio? O Jacintho gosta da serra. E depois este é o solar da familia, e aqui começaram no seculo XIV os Jacinthos...
O pobre Silverio, no seu desespero, esquecia o respeito devido á secular nobreza da casa.
--Ora! até ficam mal ao Snr. Fernandes essas ideias, n'este seculo da liberdade... Pois estamos lá em tempos de se fallar em fidalguias, agora que por toda a parte anda tudo em Republica? Leia o Seculo, Snr.
Fernandes! leia o Seculo, e verá! E depois eu sempre quero vêr o Snr.
D. Jacintho, aqui no inverno, com o nevoeiro a subir do rio logo pela manhã, e a friagem a trespassar os ossos, e ventanias que atiram carvalheiras de raizes ao ar, e chuvas e chuvas que se desfaz a serra!... Olhe, até mesmo por amor da saude o Snr. D. Jacintho, que é fraquinho e acostumado á cidade, necessita sahir da serra. Em Montemór, em Montemór é que s. ex.^a estava bem. E o Snr. Fernandes, tão amigo d'elle e assim com tanta influencia, devia teimar, e berrar, até que o levasse para Montemór.
Mas, infelizmente para a quietação do Silverio, Jacintho lançára raizes, e rijas, e amorosas raizes na sua rude serra. Era realmente como se o tivessem plantado d'estaca n'aquelle antiquissimo chão, d'onde brotára a sua raça, e o antiquissimo humus refluisse e o penetrasse todo, e o andasse transformando n'um Jacintho rural, quasi vegetal, tão do chão, e preso ao chão, como as arvores que elle tanto amava.
E depois o que o prendia á serra era o ter n'ella encontrado o que na
Cidade, apesar da sua sociabilidade, não encontrára nunca,--dias tão cheios, tão deliciosamente occupados, d'um tão saboroso interesse, que sempre penetrava n'elles, como n'uma festa ou n'uma gloria.
Logo de manhã, ás seis horas, eu, no meu quarto, mexendo ainda regaladamente o meu corpo nos colchões de fresco folhelho, sentia os seus rijos sapatões pelo corredor, e o seu cantarolar, desafinado, mas ditoso como o d'um melro. Em poucos instantes escancarava com fragor a minha porta, já de chapeu desabado, já de bengalão de cerejeira, disposto com reservado fervor para os trilhos conhecidos da serra. E era sempre a mesma nova, quasi orgulhosa: --Dormi hoje deliciosamente, Zé Fernandes. Tão bem, com uma tal serenidade, que começo a acreditar que sou um justo! Um dia lindo!
Quando abri a janella, ás cinco horas, quasi gritei de puro gosto!
Na sua pressa, nem me deixava demorar na frescura da banheira; e quando eu repetia a risca mal começada do cabello, aquelle antigo homem das trinta e nove escovas, protestava contra esse desbarato effeminado d'um tempo devido aos fortes gozos da terra.
Mas quando, depois de acariciar os rafeiros no pateo, desembocavamos da alameda de platanos, e deante de nós se dividiam matutinamente, mais brancos entre o verde matutino, os caminhos colleantes da quinta, toda a sua pressa findava, e penetrava na Natureza, com a reverente lentidão de quem penetra n'um Templo. E repetidamente sustentava ser «contrario á
Esthetica, á Philosophia e á Religião, andar depressa através dos campos.» De resto, com aquella subtil sensibilidade bucolica que n'elle se desenvolvera, e incessantemente se afinava, qualquer breve belleza, do ar ou da terra, lhe bastava para um longo encanto. Ditosamente poderia elle entreter toda uma manhã, caminhar por entre um pinheiral, de tronco a tronco, callado, embebido no silencio, na frescura, no resinoso aroma, empurrando com o pé as agulhas e as pinhas seccas.
Qualquer agua corrente o retinha, enternecido n'aquella serviçal actividade, que se apressa, cantando, para o torrão que tem sêde, e n'elle se some, e se perde. E recordo ainda quando me reteve meio domingo, depois da Missa, no cabeço, junto a um velho curral desmantellado, sob uma grande arvore,--só por que em torno havia quietação, doce aragem, um fino piar d'ave na ramaria, um murmurio de regato entre canas verdes, e por sobre a sébe, ao lado, um perfume, muito fino e muito fresco, de flores escondidas.
Depois, quando eu, velho familiar das serras, me não abandonava aos mesmos extasis que a elle lhe enchiam a alma ainda noviça--o meu
Principe rugia, com a indignação d'um poeta que descobre um mercieiro bocejando sobre Shakspeare ou Musset. Eu ria.
--Meu filho, olha que eu não passo d'um pequeno proprietario. Para mim não se trata de saber se a terra é linda, mas se a terra é boa. Olha o que diz a Biblia! «Trabalharás a quinta com o suor do teu rosto!» E não diz «contemplarás a quinta com o enlevo da tua imaginação!» --Podéra! exclamava o meu Principe. Um livro escripto por Judeos, por asperos semitas, sempre com o turvo olho posto no lucro! Repára, homem, para aquelle bocadinho de valle, e consegue não pensar, por um momento, nos trinta mil reis que elle rende! Verás que pela sua belleza e graça elle te dá mais contentamento á alma que os trinta mil reis ao corpo. E na vida só a alma importa.