Aa

A Cidade e as Serras

por Eça de Queiroz

Capítulo 11 - Parte 2

Recolhendo ao casarão, já o encontravamos com as janellas meio cerradas, os soalhos borrifados para aquellas quentes restias de sol de junho, que depois do almoço docemente nos retinham na livraria, preguiçando.

Mas realmente a alegre actividade do meu Principe não cessava, nem amollecia, sob o peso da sésta. A essa hora, em quanto pelo arvoredo mudo os mais agitados pardaes dormiam, e o sol mesmo parecia repousar, immovel na rutilancia da sua luz, Jacintho com o espirito acordado,--ávido de sempre gosar, agora que reconquistára essa faculdade,--tomava com delicia o seu livro. Por que o dono de trinta mil volumes era agora, na sua casa de Tormes, depois de resuscitado, o homem que só tem um livro. Essa mesma Natureza, que o desligára das ligaduras amortalhadoras do tedio, e lhe gritára o seu bello Ambula, caminha!--tambem certamente lhe gritára et lege, e lê. E libertado emfim do envolucro suffocante da sua Bibliotheca immensa, o meu ditoso amigo comprehendia emfim a incomparavel delicia de lêr um livro.

Quando eu correra a Tormes, (depois das revelações do Severo na venda do

Torto,) elle findava o D. Quichote, e ainda eu lhe escutára as derradeiras risadas com as cousas deliciosas, e de certo profundas, que o gordo Sancho lhe murmurava, escarranchado no seu burro. Mas agora o meu Principe mergulhára na Odyssea,--e todo elle vivia no espanto e no deslumbramento de assim ter encontrado no meio do caminho da sua vida, o velho errante, o velho Homero!

--Oh Zé Fernandes, como succedeu que eu chegasse a esta edade sem ter lido Homero?...

--Outras leituras, mais urgentes... O Figaro, George Ohnet...

--Tu leste a Illiada?

--Menino, sinceramente me gabo de nunca ter lido a Illiada.

Os olhos do meu Principe fuzilavam.

--Tu sabes o que fez Alcibiades, uma tarde, no Portico, a um sophista, um desavergonhado d'um sophista, que se gabava de não ter lido a

Illiada?

--Não.

--Ergueu a mão e atirou-lhe uma bofetada tremenda.

--Para lá, Alcibiades! Olha que eu li a Odyssea!

Oh! mas de certo eu a lêra, corridamente, com a alma desattenta! E insistia em me iniciar, elle, e me conduzir, através do Livro sem egual.

Eu ria. E rindo, pesado do almoço, terminava por consentir, e me estirava no canapé de verga. Elle, deante da mesa, direito na cadeira, abria o livro gravemente, pontificalmente, como um missal, e começava n'uma lenta ode sentida. Aquelle grande mar da Odyssea,--resplandecente e sonoro, sempre azul, todo azul, sob o vôo branco das gaivotas, rolando, e mansamente quebrando sobre a areia fina ou contra as rochas de marmore das Ilhas divinas,--exhalava logo uma frescura salina, bem vinda e consoladora n'aquella calma de Junho, em que a serra se entorpecia. Depois as estupendas manhas do subtil Ulysses e os seus perigos sobrehumanos, tantas lamurias sublimes, e um anceio tão espalhado da Patria perdida, e toda aquella intriga, em que embrulhava os Heroes, lograva as Deusas, illudia o Fado, tinham um delicioso sabôr ali, nos campos de Tormes, onde nunca se necessitava de subtileza ou de engenho, e a Vida se desenrolava com a segurança immutavel com que cada manhã sempre o Sol egual nascia, e sempre centeios e milhos, regados por agoas eguaes, seguramente medravam, espigavam, amadureciam... Emballado pela recitação grave e monotona do meu Principe, eu cerrava as palpebras docemente. Em breve um vasto tumulto, por terra e ceu, me alvoroçava...

E eram os rugidos de Polyphemo, ou a grita dos companheiros d'Ulysses roubando as vaccas de Apollo. Com os olhos logo esbugalhados para

Jacintho, eu murmurava: Sublime! E sempre, n'esse momento o engenhoso

Ulysses, de carapuço vermelho e o longo remo ao hombro, surprehendia com a sua facundia a clemencia dos Principes, ou reclamava presentes devidos ao Hospede, ou surripiava astutamente algum favor aos Deuses. E Tormes dormia, no esplendor de Junho. Novamente, eu cerrava as palpebras consoladas, sob a caricia ineffavel do largo dizer homerico... E meio adormecido, encantado, incessantemente avistava, longe, na divina

Hellade, entre o mar muito azul e o ceu muito azul, a branca vela, hesitante, procurando Ithaca...

Depois da sésta o meu Principe de novo se soltava para os campos. E a essa hora, sempre mais activa, voltava com ardor aos «seus planos», a essas culturas de luxo e elegantes officinas que cobririam a serra de magnificencias ruraes. Agora andava todo no esplendido appetite d'uma horta que elle concebera, immensa horta ajardinada, em que todos os legumes, classicos ou exoticos, cresceriam, soberbamente, em vistosos talhões, fechados por sebes de rosas, de cravos, de alfazêma, de dhalias. A agoa das regas desceria por lindos corrêgos de louça esmaltada. Nas ruas, a sombra cahiria de densas latadas de moscatel, pousando em esteios revestidos d'azulejo. E o meu Principe desenhára o plano d'esta espantosa horta, a lapiz vermelho, n'um papel immenso, que o Melchior e o Silverio, consultados, longamente contemplaram,--um coçando risonhamente a nuca, o outro com os braços duramente crusados, e o sobrôlho tragico.

Mas este plano, o da queijaria, o da capoeira, e outro, sumptuoso, d'um pombal tão povoado que todo o ceu de Tormes ás tardes se tornaria branco e todo fremente d'azas--não sahiam das nossas gostosas palestras, ou dos papeis em que Jacintho os debuxava, e que se amontoavam sobre a meza, platonicos, immoveis, entre o tinteiro de latão e o vaso com flôres.

Nem enxadada fendera terra, nem alavanca deslocára pedra, nem serra serrára madeira, para encetar estas maravilhas. Contra a resistencia rebolada e escorregadia do Melchior, contra a respeitosa inercia do

Silverio se quedavam, encalhados, os planos do meu Principe, como galeras vistosas em rochas ou em lôdo.

Não convinha bolir em nada, (clamava o Silverio) antes das colheitas e da vindima! E depois, (acrescentava o Melchior com um sorriso de grande promessa) «para boas obras mez de Janeiro» porque lá ensina o dictado:

Em Janeiro--mette obreiro

Mez meante--que não ante.

E, de resto, o goso de conceber as suas obras e de indicar, estendendo a bengala por cima de valle e monte, os sitios privilegiados que ellas aformoseariam, bastava por ora ao meu Principe, ainda mais imaginativo que operante. E, em quanto meditava estas transformações da terra, muito progressivamente e com um amavel esforço, se ia familiarisando com os homens simples que a trabalhavam. Na sua chegada a Tormes, o meu

Principe soffria d'uma estranha timidez diante dos caseiros, dos jornaleiros, e até de qualquer rapazinho que passasse, tangendo uma vacca para o pasto. Nunca elle então se demoraria a conversar com os moços, quando á borda d'um caminho ou n'um campo em monda elles se endireitavam de chapeu na mão, n'um respeito de velha vassalagem. De certo o empecia a preguiça, e talvez ainda o pudico recato de transpor toda a immensa distancia que se alargava desde a sua complicada super-civilisação até á rude simplicidade d'aquellas almas naturaes:--mas sobretudo o retinha o medo de mostrar a sua ignorancia da lavoura e da terra, ou de parecer talvez desdenhoso de occupações e de interesses, que para os outros eram supremos e quasi religiosos. Remia então esta reserva com uma profusão de sorrisos, de doces acenos, tirando tambem o chapeu em cortezias profundas, com uma tal emphase de polidez que eu por vezes receava que elle murmurasse aos jornaleiros: «Tenha v. ex.^a muito boas tardes;... Creado de v. ex.^a!»

Mas agora, depois d'aquellas semanas de serra, e de já saber (com um saber ainda fragil,) a epocha das sementeiras e das ceifas, e que as arvores de fructa se semeiam no inverno, já se aprazia em parar junto dos trabalhadores, contemplar descançadamente o trabalho, dizer cousas affaveis e vagas.

--Então, isso vae andando?... Ora ainda bem!... Este bocado de torrão aqui é rico... O talude ali adeante está precisando concerto...

E cada um d'estes tão simples dizeres lhe era doce, como se por meio d'elles penetrasse mais fundamente na intimidade da terra, e consolidasse a sua encarnação em «homem do campo,» deixando de ser uma mera sombra circulando entre realidades. Já por isso não crusava no caminho o mocinho atraz das vaccas, que não o detivesse, o não interrogasse: «Para onde vaes tu? De quem é o gado? Como te chamas?» E, contente comsigo, sempre gabava gratamente o desembaraço do rapaz, ou a esperteza dos seus olhos. Outra satisfação do meu Principe era conhecer os nomes de todos os campos, as nascentes d'agua, e as delimitações da sua quinta.

--Vês acolá, para além do ribeiro, o pinheiral. Já não é meu, é dos

Albuquerques.

E com a perenne alegria de Jacintho as noites da serra, no vasto casarão, eram faceis e curtas. O meu Principe era então uma alma que se simplificava:--e qualquer pequenino goso lhe bastava, desde que n'elle entrasse paz ou doçura. Com verdadeira delicia ficava, depois do café, estendido n'uma cadeira, sentindo atravez das janellas abertas, a nocturna tranquillidade da serra, sob a mudez estrellada do ceu.

As historias, muito simples e muito caseiras, que eu lhe contava, de

Guiães, do abbade, da tia Vicencia, dos nossos parentes da Flôr da

Malva, tão sinceramente o interessavam que eu encetára, para seu regalo, a chronica completa de Guiães, com todos os namoricos, e as façanhas de forças, e as desavenças por causa de servidões ou d'aguas. Tambem por vezes nos enfronhavamos, com afferro n'uma partida de gamão, sobre um bello taboleiro de pau preto, com pedras de velho marfim, que nos emprestára o Silverio. Mas nada de certo o encantava tanto como atravessar as casas, pé ante pé, até uma saleta que dava para o pomar, e ahi ficar encostado á janella, sem luz, n'um enlevado socego, a escutar longamente, languidamente, os rouxinoes que cantavam no laranjal.

O que você achou desta história?

Seja o primeiro a avaliar!

Você precisa entrar para avaliar.

Você também pode gostar