Aa

A Cidade e as Serras

por Eça de Queiroz

Capítulo 18 - Parte 2

Arrastei então por Paris dias d'immenso tedio. Ao longo do Boulevard revi nas vitrines todo o luxo, que já me enfartára havia cinco annos, sem uma graça nova, uma curta frescura de invenção. Nas livrarias, sem descobrir um livro, folheava centenas de volumes amarellos, onde, de cada pagina que ao acaso abria, se exhalava om cheiro môrno d'alcova e de pós d'arroz, entre linhas trabalhadas com effeminado arrebique, como rendas de camisas. Ao jantar, em qualquer restaurante, encontrava, ornando e disfarçando as carnes ou as aves, o mesmo môlho, de côres e sabores de pomada, que já de manhã, n'outro restaurante, espelhado e dourejado, me enjoára no peixe e nos legumes. Paguei por grossos preços garrafas do nosso adstringente e rustico vinho de Torres, ennobrecido com o titulo de Château isto, Château aquillo, e pó postiço no gargalo.

Á noite, nos theatros, encontrava a Cama, a costumada cama, como centro e unico fim da vida, attrahindo, mais fortemente que o monturo attrahe os moscardos, todo um enxame de gentes, estonteadas, frementes d'erotismo, zumbindo chacotas senis. Esta sordidez da Planicie me levou a procurar melhor aragem d'espirito nas alturas da Collina, em

Montmartre; e ahi, no meio d'uma multidão elegante de Senhoras, de

Duquezas, de Generaes, de todo o alto pessoal da Cidade, eu recebia, do alto do palco, grossos jorros de obscenidades, que faziam estremecer de goso as orelhas cabelludas de gordos banqueiros, e arfar com delicia os corpetes de Worms e de Doucet, sobre os peitos postiços das nobres damas. E recolhia enjoado com tanto relento d'Alcova, vagamente dispeptico com os môlhos de pomada do jantar, e sobre tudo descontente comigo, por me não divertir, não comprehender a Cidade, e errar atravez d'ella e da sua Civilisação Superior, com a reserva ridicula d'um

Censor, d'um Catão austero. Oh senhores!--pensava,--pois eu não me divertirei nesta deliciosa Cidade? Entrará comigo o bolor da velhice?

Passei as pontes, que separam em Paris o Temporal do Espiritual, mergulhei no meu doce Bairro Latino, evoquei, deante de certos cafés, a memoria da minha Nini; e, como outr'ora, preguiçosamente, subi as escadas da Sorbonne. N'um amphitheatro, onde sentira um grosso susurro, um homem magro, com uma testa muito branca e larga, como talhada para alojar pensamentos altos e puros, ensinava, falando das instituições da

Cidade Antiga. Mas, mal eu entrára, o seu dizer elegante e limpido foi suffocado por gritos, urros, patadas, um tumulto rancoroso de troça bestial, que sahia da mocidade apinhada nos bancos, a mocidade das

Escolas, Primavera sagrada, em que eu fôra flôr murcha. O Professor parou, espalhando em redor um olhar frio, e remexendo as suas notas.

Quando o grosso grunhido se moderou em susurro desconfiado, elle recomeçou com alta serenidade. Todas as suas ideias eram frias e substanciaes, expressas n'uma lingoa pura e forte; mas, immediatamente, rompe uma furiosa rajada de apitos, uivos, relinchos, cacarejos de gallo, por entre magras mãos, que se estendiam levantadas para estrangular as ideias. Ao meu lado um velho, encolhido na alta gola d'um macfrelane de xadrezes, contemplava o tumulto com melancolia, pingando endefluxado. Perguntei ao velho: --Que querem elles? É embirração com o professor... é politica?

O velho abanou a cabeça, espirrando: --Não... É sempre assim, agora, em todos os cursos... Não querem ideias... Creio que queriam cançonetas. É o amor da porcaria e da troça.

Então, indignado, berrei: --Silencio, brutos!

E eis que um abortosinho de rapaz, amarellado e sebento, de longas melenas, umas enormes lunetas rebrilhantes, se arrebita, me fita, e me berra: --Sale Maure!

Ergui o meu grosso punho serrano,--e o desgraçado, n'uma confusão de melenas, com sangue por toda a face, alluio, como um montão de trapos molles, ganindo desesperadamente, em quanto o furacão de uivos e cacarejos, guinchos e silvos, envolvia o Professor, que cruzára os braços, esperando, com uma serenidade simples.

Desde esse momento decidi abandonar a fastidiosa Cidade; e o unico dia alegre e divertido que n'ella passei foi o derradeiro, comprando para os meus queridinhos de Tormes brinquedos consideraveis, tremendamente complicados pela Civilisação,--vapores de aço e cobre, providos de caldeiras para viajar em tanques; leões de pelle veridica rugindo pavorosamente, bonecas vestidas pela Laferrière, com phonographo no ventre...

Finalmente abalei uma tarde, depois de lançar da minha janella, sobre o

Boulevard, as minhas despedidas á Cidade: --Pois adeusinho, até nunca mais! Na lama do teu vicio e na poeira da tua vaidade, outra vez, não me pilhas! O que tens de bom, que é o teu genio, elegante e claro, lá o receberei na Serra pelo correio.

Adeusinho!

Na tarde do seguinte Domingo, debruçado da janella do comboio, que vagarosamente deslisava pela borda do rio lento, n'um silencio todo feito d'azul e sol, avistei, na plata-forma da quieta estação da minha aldeia, os Senhores de Tormes, com a minha afilhada Thereza, muito vermelha, arregalando os seus soberbos olhos, e o bravo Jacinthinho, que empunhava uma bandeira branca. O alvoroço ditoso com que abracei e beijei aquella tribu bem amada conviria perfeitamente a quem voltasse vivo d'uma guerra distante, na Tartaria. Na alegria de recuperar a

Serra, até beijoquei o chefe Pimentinha, que a estalar d'obesidade se açodava gritando ao carregador todo o cuidado com as minhas malas.

Jacintho, magnifico, de grande chapéo serrano e jaqueta, de novo me abraçou: --E esse Paris?

--Medonho!

Abri depois os braços para o bravo Jacintinho.

--Então para que é essa bandeira, meu cavalleiro?

--É a bandeira do Castello! declarou elle, com uma bella seriedade nos seus grandes olhos.

A mãe ria. Desde essa manhã, logo que soubera da chegada do Ti-Zé, appareceu de bandeira, feita pelo Grillo, e não a largára mais; com ella almoçára, com ella descera de Tormes!

--Bravo! E, prima Joanninha, olhe que está magnifica! Eu, tambem, venho d'aquellas pelles meladas de Paris... Mas acho-a triumphal! E o tio

Adrião, e a tia Vicencia?

--Tudo optimo! gritou Jacintho. A serra, Deos louvado, prospera. E agora, para cima! Tu hoje ficas em Tormes. Para contar da Civilisação.

No largo por traz da estação, debaixo dos eucalyptos, que revi com gosto, esperavam os tres cavallos, e dous bellos burros brancos, um com cadeirinha para a Thereza, outro com um cesto de verga, para metter dentro o heroico Jacinthinho, um e outro servidos á estribeira por um creado. Eu ajudára a prima Joanninha a montar, quando o carregador appareceu com um masso de jornaes e papeis, que eu esquecera na carruagem. Era uma papelada, de que me surtira na Estação d'Orleans, toda recheada de mulheres nuas, de historietas sujas, de parisianismo, d'erotismo. Jacintho, que as reconhecera, gritou rindo: --Deita isso fóra!

E eu atirei, para um montão de lixo, ao canto do Pateo, aquelle putrido rebotalho da Civilisação. E montei. Mas ao dobrar para o caminho empinado da serra, ainda me voltei, para gritar adeus ao Pimenta, de quem me esquecera. O digno chefe, debruçado sobre o monturo, apanhava, sacudia, recolhia com amor aquellas bellas estampas, que chegavam de

Paris, contavam as delicias de Paris, derramavam atravez do mundo a seducção de Paris.

Em fila começamos a subir para a Serra. A tarde adoçava o seu esplendor d'estio. Uma aragem trazia, como offertados, perfumes das flôres silvestres. As ramagens moviam, com um aceno de doce acolhimento, as suas folhas vivas e relusentes. Toda a passarinhada cantava, n'um alvoroço de alegria e de louvor. As agoas correntes, saltantes, lusidias, despediam um brilho mais vivo, n'uma pressa mais animada.

Vidraças distantes de casas amaveis, flammejavam com um fulgor d'ouro. A serra toda se offertava, na sua belleza eterna e verdadeira. E, sempre adiante da nossa fila, por entre a verdura, fluctuava no ar a bandeira branca, que o Jacinthinho não largava, de dentro do seu cesto, com a haste bem segura na mão. Era a bandeira do Castello, affirmára elle.

E na verdade me parecia que, por aquelles caminhos, atravez da natureza campestre e mansa,--o meu Principe, atrigueirado nas soalheiras e nos ventos da serra, a minha prima Joanninha, tão doce e risonha mãe, os dois primeiros representantes da sua abençoada tribu, e eu--, tão longe de amarguradas illusões e de falsas delicias, trilhando um solo eterno, e de eterna solidez, com a alma contente, e Deus contente de nós, serenamente e seguramente subiamos--para o Castello da Gran-Ventura!

Fim

ADVERTENCIA

Desde a pagina 241, até o final, as provas d'este livro não foram revistas pelo auctor, arrebatado pela morte antes de haver dado a esta parte da sua escripta aquella ultima demão, em que habitualmente elle punha a diligencia mais perseverante e mais admiravelmente lucida.

Aquelle dos seus amigos e companheiro de letras, a quem foi confiado o trabalho delicado e piedoso de tocar no manuscripto posthumo de Eça de

Queiroz, ao concluir o desempenho de tal missão, beija com o mais enternecido e saudoso respeito a mão, para todo sempre immobilisada, que traçou estas paginas encantadoras; e faz votos por que a revisão de que se incumbiu não deslustre muito grosseiramente a immortal aureola com que ficará resplandecendo na litteratura portugueza este livro, em que o espirito do grande escriptor parece exhalar-se da vida n'um terno suspiro de doçura, de paz, e de puro amor á terra da sua patria.

24 de abril de 1901.

O que você achou desta história?

Seja o primeiro a avaliar!

Você precisa entrar para avaliar.

Você também pode gostar