Capítulo 1 - Parte 1
Então, evidentemente, ella testaria em meu favor--certa que testava em favor de Christo e da sua dôce Madre Igreja!
Porque agora, eu estava bem decidido a não deixar ir para Jesus, filho de Maria, a aprazivel fortuna do commendador G. Godinho. Pois quê! Não bastavam ao Senhor os seus thesouros incontaveis; as sombrias cathedraes de marmore que atulham a terra e a entristecem; as inscripções, os papeis de credito que a piedade humana constantemente averba em seu nome; as pás d'ouro que os Estados, reverentes, lhe depositam aos pés trespassados de pregos; as alfaias, os calices, e os botões de punho de diamantes que elle usa na camisa, na sua igreja da Graça? E ainda voltava, do alto do madeiro, os olhos vorazes para um bule de prata, e uns insipidos predios da Baixa! Pois bem! disputaremos esses mesquinhos, fugitivos haveres--tu, ó filho do Carpinteiro, mostrando á titi a chaga que por ella recebeste, uma tarde, n'uma cidade barbara da Asia, e eu adorando essa chaga, com tanto ruido e tanto fausto, que a titi não possa saber onde está o merito, se em ti que morreste por nos amar de mais, se em mim que quero morrer por não te saber amar bastante!...
Assim pensava, olhando de través o céo, no silencio da rua de S. Lazaro.
Quando cheguei a casa, senti que a titi estava no oratorio, sósinha, a rezar. Enfiei para o meu quarto, surrateiramente; descalcei-me; despi a casaca; esguedelhei o cabello; atirei-me de joelhos para o soalho--e fui assim, de rastos, pelo corredor, gemendo, carpindo, esmurrando o peito, clamando desoladamente por Jesus, meu Senhor...
Ao ouvir, no silencio da casa, estas lugubres lamentações de arrastada penitencia, a titi veio á porta do oratorio, espavorida.
--Que é isso, Theodorico, filho, que tens tu?...
Abati-me sobre o soalho, aos soluços, desfallecido de paixão divina.
--Desculpe, titi... Estava no theatro com o dr. Margaride, estivemos ambos a tomar chá, a conversar da titi... E vai de repente, ao voltar para casa, alli na rua Nova da Palma, começo a pensar que havia de morrer, e na salvação da minha alma, e em tudo o que Nosso Senhor padeceu por nós, e dá-me uma vontade de chorar... Emfim, a titi faz favor, deixa-me aqui um bocadinho só, no oratorio, para alliviar...
Muda, impressionada, ella accendeu reverentemente, uma a uma, todas as velas do altar. Chegou mais para a borda uma imagem de S. José, favorito da sua alma, para que fosse elle o primeiro a receber a ardente rajada de preces que ia escapar-se, em tumulto, do meu coração cheio e ancioso.
Deixou-me entrar, de rastos. Depois, em silencio, desappareceu, cerrando o reposteiro com recato. E eu alli fiquei, sentado na almofada da titi, coçando os joelhos, suspirando alto--e pensando na viscondessa de Souto
Santos ou de Villar-o-Velho, e nos beijos vorazes que lhe atiraria por aquelles hombros maduros e succulentos, se a podesse ter só um instante, alli mesmo que fosse, no oratorio, aos pés de ouro de Jesus, meu
Salvador!
* * * * *
Corrigi então a minha devoção e tornei-a perfeita. Pensando que o bacalhau das sextas-feiras não fosse uma sufficiente mortificação, n'esses dias, diante da titi, bebia asceticamente um copo d'agua e trincava uma côdea de pão: o bacalhau comia-o á noite, de cebolada, com bifes á ingleza, em casa da minha Adelia. No meu guarda-roupa, n'esse duro inverno, houve apenas um paletot velho, tão renunciado me quiz mostrar aos culpados regalos da carne; mas orgulhava-me de ter lá, purificando os cheviottes profanos, a minha opa rôxa de irmão do Senhor dos Passos, e o devoto habito cinzento da Ordem Terceira de S.
Francisco. Sobre a commoda ardia uma lamparina perennal diante da lithographia colorida de Nossa Senhora do Patrocinio: eu punha todos os dias rosas dentro d'um copo, para lhe perfumar o ar em redor; e a titi, quando vinha remexer nas minhas gavetas, ficava a olhar a sua padroeira, desvanecida, sem saber se era á Virgem, ou se era a ella, indirectamente, que eu dedicava aquelle preito da luz e o louvor dos aromas. Nas paredes dependurei as imagens dos santos mais excelsos, como galeria d'antepassados espirituaes de quem tirava o constante exemplo das difficeis virtudes; mas não houve de resto no céo santo, por mais obscuro, a quem eu não offertasse um cheiroso ramalhete de Padre-Nossos em flôr. Fui eu que fiz conhecer á titi S. Telesforo, Santa Secundina, o beato Antonio Estronconio, Santa Restituta, Santa Umbulina, irmã do grão
S. Bernardo, e a nossa dilecta e suavissima patricia Santa Basilissa, que é solemnisada juntamente com S. Hypacio, n'esse festivo dia d'agosto em que embarcam os cirios para a Atalaya.
Prodigiosa foi então a minha actividade devota! Ia a matinas, ia a vesperas. Jámais falhei igreja ou ermida onde se fizesse a adoração ao
Sagrado Coração de Jesus. Em todas as exposições do Santissimo eu lá estava, de rojos. Partilhava sofregamente de todos os desaggravos ao
Sacramento. Novenas em que eu rezei contam-se pelos lumes do céo. E o
Septenario das Dôres era um dos meus dôces cuidados.
Havia dias em que, sem repousar, correndo pelas ruas, esbaforido, eu ia á missa das sete a Sant'Anna, e á missa das nove da igreja de S. José, e á missa do meio dia na ermida da Oliveirinha. Descansava um instante a uma esquina, de ripanço debaixo do braço, chupando á pressa o cigarro: depois voava ao Santissirno exposto na parochial de Santa Engracia, á devoção do Terço no convento de Santa Joanna, á benção do Sacramento na capella de Nossa Senhora ás Picôas, á novena das Chagas de Christo, na sua igreja, com musica. Tomava então a tipoia do Pingalho, e ainda visitava, ao acaso, de fugida, os Martyres e S. Domingos, a igreja do convento do Desagravo e a igreja da Visitação das Selesias, a capella de
Monserrate ás Amoreiras e a Gloria ao Cardal da Graça, as Flamengas e as
Albertas, a Pena, o Rato, a Sé!
Á noite, em casa da Adelia, estava tão derreado, mono e molle ao canto do sofá,--que ella atirava-me murros pelos hombros, e gritava, furiosa: --Esperta, morcão!
Ai de mim! Um dia veio, porém, em que a Adelia, em vez de me chamar morcão, quando, esfalfado no serviço do Senhor, eu mal podia ajudal-a a desatacar o collete--passou, sempre que os meus labios insaciaveis se collavam de mais ao seu collo, a empurrar-me, a chamar-me carraça...
Foi isto pelas alegres vesperas de Santo Antonio, ao apparecerem os primeiros manjaricões, no quinto mez da minha devoção perfeita.
A Adelia começára a andar pensativa e distrahida. Tinha ás vezes, quando eu lhe fallava, um modo de dizer «hein?», com o olhar incerto e disperso, que era um tormento para o meu coração. Depois um dia deixou de me fazer a caricia melhor, que eu mais appetecia--a penetrante e a regaladora beijoca na orelha.
Sim, decerto permanecia terna... Ainda dobrava maternalmente o meu paletot; ainda me chamava riquinho; ainda me acompanhava ao patamar em camisa, dando, ao descollar do nosso abraço, esse lento suspiro que era para mim a mais preciosa evidencia da sua paixão;--mas já me não favorecia com a beijoquinha na orelha.
Quando eu entrava abrazado--encontrava-a por vestir, por pentear, molle, estremunhada e com olheiras. Estendia-me a mãosinha desamoravel, bocejava, colhia preguiçosamente a viola: e emquanto eu, a um canto, chupando cigarros mudos, esperava que se abrisse a portinha envidraçada da alcova que dava para o céo--a deshumana Adelia, estirada no sofá, de chinelas cahidas, beliscava os bordões, murmurando, por entre longos ais, cantigas de estranha saudade...
N'um arranco de ternura, eu ia ajoelhar-me á beira do seu peito. E lá vinha logo a dura, a regelada palavra: --Está quieto, carraça!
E recusava-me sempre o seu carinho. Dizia-me: «não posso, estou com azia.» Dizia-me: «adeus, tenho a dôr na ilharga.»
Eu sacudia os joelhos, recolhia ao Campo de Sant'Anna--espoliado, miserrimo, chorando na escuridão da minha alma pelos tempos ineffaveis em que ella me chamava morcão!
Uma noite de julho, macia como um velludo preto e pespontada d'estrellas, chegando mais cedo a casa d'ella, encontrei a portinha aberta. O candieiro de petroline, pousado no soalho do patamar, enchia a escada de luz;--e dei com a Adelia, em saia branca, fallando a um rapaz de bigodinho louro, embrulhado pelintramente n'uma capa á hespanhola.
Ella empallideceu, elle encolheu--quando eu surgi, grande e barbudo, com a minha bengala na mão. Depois a Adelia, sorrindo, sem perturbação, vera e limpida, apresentou-me «seu sobrinho Adelino.» Era filho da mana
Ricardina, a que vivia em Vizeu, e irmão do Theodoriquinho... Tirando o chapéo, apertei na palma larga e leal os dedos fugidios do snr. Adelino: --Estimo muito conhecel-o, cavalheiro. Sua mamã, seu mano, bons?
N'essa noite a Adelia, resplandecente, tornou a chamar-me morcão, restituiu-me o beijinho na orelha. E toda essa semana foi deliciosa como a d'um noivado. O verão ardia; e começára na Conceição Velha a novena de
S. Joaquim. Eu sahia de casa á hora repousante em que se regam as ruas, mais contente que os passaros chalrando nas arvores do campo de
Sant'Anna. Na salinha clara, com todas as cadeiras cobertas de fustão branco, encontrava a minha Adelia de chambre, fresca de se ter lavado, cheirando a agua de colonia, e aos lindos cravos vermelhos que a toucavam; e depois das manhãs calorosas, nada havia mais idyllico, mais dôce que as nossas merendas de morangos na cozinha, ao ar da janella, contemplando bocadinhos verdes de quintaes e ceroulas humildes a seccar em cordas... Ora uma tarde que assim nos apraziamos, ella pediu-me oito libras.
Oito libras!... Descendo á noite a rua da Magdalena, eu ruminava quem m'as poderia emprestar sem juro e rasgadamente. O bom Casimiro estava em
Torres, o prestante Rinchão estava em Paris... E pensava já no padre
Pinheiro (cujas dôres de rins eu lamentava sempre com affecto) quando avistei a escapar-se, todo encolhido, todo surrateiro, d'uma d'essas viellas impuras onde Venus Mercenaria arrasta os seus chinelos--o José
Justino, o nosso José Justino, o piedoso secretario da confraria de S.
José, o virtuosissimo tabellião da titi!...
Gritei logo: «boas noites, Justininho!» E regressei ao Campo de
Sant'Anna, tranquillo, gozando já a repenicada beijoca que me daria a
Délinha, quando eu risonho lhe estendesse na mão as oito rodellas d'ouro. Ao outro dia cedo, corri ao cartorio do Justino, a S. Paulo, contei-lhe a pranteada historia d'um condiscipulo meu, tisico, miseravel, arquejando sobre uma enxerga, n'uma fetida casa d'hospedes, ao pé do largo dos Caldas.
--É uma desgraça, Justino! Nem dinheiro tem para um caldinho... Eu é que o ajudo: mas, que diabo, estou a tinir... Faço-lhe companhia, é o que posso; leio-lhe orações, e Exercicios da vida christã. Hontem á noite vinha eu de lá... E acredite você, Justino, que nem gósto d'andar por aquellas ruas, tão tarde... Jesus, que ruas que indecencia, que immoralidade!... Aquelles beccos d'escadinhas, hein?... Eu hontem bem percebi que você ia horrorisado: eu tambem... De sorte que esta manhã estava no oratorio da titi, a rezar pelo meu condiscipulo, a pedir a
Nosso Senhor que o ajudasse e que lhe désse algum dinheiro, e vai pareceu-me ouvir uma voz lá de cima da cruz a dizer: «entende-te com o
Justino, falla ao nosso Justininho, elle que te dê oito libras para o rapaz...» Fiquei tão agradecido a Nosso Senhor! De modo que aqui venho,
Justino, por ordem d'Elle.
O Justino escutava-me, branco como os seus collarinhos, dando estalinhos tristes nos dedos;--depois, em silencio, estendeu-me uma a uma sobre a carteira as oito moedas d'ouro. Assim eu servi a minha Adelia.
Fugaz foi porém a minha gloria!
D'ahi a dias estando no Montanha, regalado, a gozar uma carapinhada--o criado veio avisar-me que uma mocinha trigueira e de chale, a snr.^a
Marianna, esperava por mim á esquina... Santo Deus! A Marianna era a criada da Adelia. E corri, a tremer, certo de que a minha bem-amada ficára soffrendo da sua abominavel dôr na sua branca ilharga. Pensei mesmo em começar o Rosario das dezoito apparições de Nossa Senhora de
Lourdes, que a titi considera efficacissimo em casos de pontada ou de touros tresmalhados...
--Ha novidade, Marianna?
Ella levou-me para dentro d'um pateo onde cheirava mal; e ahi, com os olhos vermelhos, destraçando furiosamente o chale, rouca ainda da bulha que tivera com a Adelia, rompeu a contar-me coisas torpes, execrandas, sordidas. A Adelia enganava-me! O snr. Adelino não era sobrinho: era o querido, o chulo. Apenas eu sahia, elle entrava: a Adelia dependurava-se-lhe do pescoço, n'um delirio; e chamavam-me então o carraça, o carola, o bode, vituperios mais negros, cuspindo sobre o meu retrato. As oito libras tinham sido para o Adelino comprar fato de verão; e ainda sobrára para irem á feira de Belem, em tipoia descoberta, e de guitarra... A Adelia adorava-o com pieguice e com furor: cortava-lhe os callos; e os suspiros da sua impaciencia, quando elle tardava, lembravam o bramar das cervas, nos mattos quentes, em maio!...
Duvidava eu? Queria uma evidencia? Que fosse n'essa noite, tarde, depois da uma hora, bater á portinha da Adelia!
Livido, apoiado ao muro, eu mal sabia se o cheiro que me suffocava vinha do canto escuro do pateo--se das immundicies que borbulhavam da bocca da
Marianna, como d'um cano d'esgoto rebentado. Limpei o suor, murmurei, a desfallecer: --Está bom Marianna, obrigadinho, eu verei, vá com Deus...
Cheguei a casa tão sombrio, tão murcho, que a titi perguntou-me, com um risinho, se eu «malhára abaixo da egoa.» --Da egoa?... Não, titi, credo! Estive na igreja da Graça...
--É que vens tão enfiado, assim com as pernas molles... E então o Senhor hoje estava bonito?
--Ai, titi, estava rico!... Mas não sei porquê, pareceu-me tão tristinho, tão tristinho... Até eu disse ao padre Eugenio: «Ó Eugeninho, o Senhor hoje tem desgosto!» E disse-me elle: «Que quer você, amigo? É que vê por esse mundo tanta patifaria!» E olhe que vê, titi! Vê muita ingratidão, muita falsidade, muita traição!
Rugia, enfurecido: e cerrára o punho como para o deixar cahir, punidor e terrivel, sobre a vasta perfidia humana. Mas contive-me, abotoei devagar a quinzena, recalquei um soluço.
--Pois é verdade, titi... Fez-me tanta impressão aquella tristeza do
Senhor que fiquei assim um bocado amarfanhado... E de mais a mais tenho tido um desgosto: está um condiscipulo meu muito mal, coitadinho, a espichar...
E outra vez, como diante do Justino (aproveitando reminiscencias do
Xavier e da rua da Fé), estirei a carcassa d'um condiscipulo sobre a podridão d'uma enxerga. Disse as bacias de sangue, disse a falta de caldos... Que miseria, titi, que miseria! E então um moço tão respeitador das coisas santas, que escrevia tão bem na Nação!...
--Desgraças, murmurou a tia Patrocinio, meneando as agulhas da meia.
--É verdade, desgraças, titi. Ora como elle não tem familia e a gente da casa é desleixada, nós os condiscipulos é que vamos por turnos servir-lhe d'enfermeiros. Hoje toca-me a mim. E queria então que a titi me désse licença para eu ficar fóra, até cerca das duas horas... Depois vem outro rapaz, muito instruido, que é deputado.
A tia Patrocinio permittiu:--e até se offereceu para pedir ao patriarcha
S. José que fosse preparando ao meu condiscipulo uma morte somnolenta e ditosa...
--Isso é que era um grande favor, titi! Elle chama-se Macieira... O
Macieira vesgo. É para S. José saber.
Toda a noite vagueei pela cidade, adormecida na molleza do luar de julho. E por cada rua me acompanharam sempre, fluctuantes e transparentes, duas figuras, uma em camisa, outra de capa á hespanhola, enroscadas, beijando-se furiosamente--e só desligando os beiços pisados para rirem alto de mim e para me chamarem carola.
Cheguei ao Rocio quando batia uma hora no relogio do Carmo. Ainda fumei um cigarro, indeciso, por debaixo das arvores. Depois voltei os passos para a casa da Adelia, vagaroso, e com medo. Na sua janella vi uma luz enlanguecida e dormente. Agarrei a grossa aldraba da porta,--mas hesitei com terror da certeza que vinha buscar, terminante e irreparavel... Meu
Deus! Talvez a Marianna, por vingança, calumniasse a minha Adelia! Ainda na vespera ella me chamára riquinho, com tanto ardor! Não seria mais sensato e mais proveitoso acreditar n'ella, tolerar-lhe um fugitivo transporte pelo snr. Adelino, e continuar a receber egoistamente o meu beijinho na orelha?
Mas então á idéa lacerante de que ella tambem beijava na orelha o snr.
Adelino, e que o snr. Adelino também dizia ai! ai! como eu--assaltou-me o desejo ferino de a matar, com desprezo e a murros, alli, n'esses degraus onde tantas vezes arrulhára a suavidade dos nossos adeuses. E bati na porta com um punho bestial como se fosse já sobre o seu fragil, ingrato peito.
Senti correr desabridamente o fecho da vidraça. Ella surgiu em camisa, com os seus bellos cabellos revoltos: --Quem é o bruto?
--Sou eu, abre.
Reconheceu-me--a luz dentro desappareceu; e foi como se aquella torcida de candieiro, apagando-se, deixasse tambem a minha alma em escuridão, fria para sempre e vazia. Senti-me regeladamente só, viuvo, sem occupação e sem lar. Do meio da rua olhava as janellas negras, e murmurava: «ai, que eu rebento!»
Outra vez a camisa da Adelia alvejou na varanda.
--Não posso abrir, que ceei tarde e estou com somno!
--Abre! gritei erguendo os braços desesperados. Abre ou nunca mais cá volto!...
--Pois á fava, e recados á tia.
--Fica-te, bebeda!
Tendo-lhe atirado, como uma pedrada, este urro severo, desci a rua muito teso, muito digno. Mas á esquina aluí de dôr, para cima d'um portal, a soluçar, escoado em pranto, delido.
Pesada foi então ao meu coração a lenta melancolia dos dias d'estio...
Tendo contado á titi que andava a escrever dois artigos, piamente destinados ao Almanach da Immaculada Conceição para 1878, encerrava-me no quarto, toda a manhã, emquanto faiscavam ao sol as pedras da minha varanda. Ahi, arrastando as chinelas sobre o soalho regado, remoía, entre suspiros, recordações da Adelia; ou diante do espelho contemplava o lugar macio da orelha em que ella costumava dar-me o beijo... Depois sentia um ruido de vidraça--e o seu perfido, o seu affrontoso brado «á fava!» Então, perdido, esguedelhado, machucava o travesseiro com os murros que não podia vibrar ao peito magro do snr. Adelino.
Á tardinha, quando refrescava, ia espalhar para a Baixa. Mas cada janella aberta ás aragens da tarde, cada cortina de cassa engommada me lembrava a intimidade da alcovinha da Adelia; n'um simples par de meias, esticado na vitrina de uma loja, eu revia com saudade a perfeição da sua perna; tudo o que era luminoso me suggeria o seu olhar; e até o sorvete de morango, no Martinho, me fazia repassar nos labios o adocicado e gostoso sabor dos seus beijos.
Á noite, depois do chá, refugiava-me no oratorio, como n'uma fortaleza de santidade, embebia os meus olhos no corpo de ouro de Jesus, pregado na sua linda cruz de pau preto. Mas então o brilho fulvo do metal precioso ia, pouco a pouco, embaciando, tomava uma alva côr de carne, quente e tenra; a magreza de Messias triste, mostrando os ossos, arredondava-se em fórmas divinamente cheias e bellas; por entre a corôa d'espinhos, desenrolavam-se lascivos anneis de cabellos crespos e negros; no peito, sobre as duas chagas, levantavam-se, rijos, direitos, dois esplendidos seios de mulher, com um botãosinho de rosa na ponta;--e era ella, a minha Adelia, que assim estava no alto da cruz, núa, soberba, risonha, victoriosa, profanando o altar, com os braços abertos para mim!
Eu não via n'isto uma tentação do Demonio--antes me parecia uma graça do
Senhor. Comecei mesmo a misturar aos textos das minhas rezas as queixas do meu amor. O céo é talvez grato: e esses innumeraveis santos, a quem eu prodigalisára Novenas e Coroinhas, desejariam talvez recompensar a minha amabilidade restituindo-me as caricias que me roubára o homem cruel da capa á hespanhola. Puz mais flôres sobre a commoda diante de