Capítulo 2
«Se entendes que mereço alguma coisa pelo que tenho feito por ti, traze-me então d'esses santos lugares uma santa reliquia...»
Assim dissera a snr.^a D. Patrocinio das Neves na vespera da minha jornada piedosa, enthronada nos seus damascos vermelhos, diante da
Magistratura e da Igreja, deixando escapar uma baga de pranto sob seus oculos austeros. Que lhe podia eu offerecer mais sagrado, mais enternecedor, mais efficaz, que um ramo da Arvore d'Espinhos, colhido no valle do Jordão, n'uma clara, rosada manhã de missa?
Mas de repente assaltou-me uma aspera inquietação... E se realmente uma virtude transcendente circulasse nas fibras d'aquelle tronco? E se a titi começasse a melhorar do figado, a reverdecer, mal eu installasse no seu oratorio, entre lumes e flôres, um d'esses galhos erriçados de espinhos? Ó miserrimo logro! Era eu pois que lhe levava nesciamente o principio milagroso da Saude, e a tornava rija, indestructivel, ininterravel, com os contos de G. Godinho firmes na mão avara! Eu! Eu que só começaria a viver--quando ella começasse a morrer!
Rondando então em torno á Arvore d'Espinhos, interroguei-a, sombrio e rouco: «Anda, monstro, dize! És tu uma reliquia divina com poderes sobrenaturaes? ou és apenas um arbusto grutesco com um nome latino nas classificações de Linneu? Falla! Tens tu, como aquelle cuja cabeça coroaste por escarneo, o dom de sarar? Vê lá... Se te levo commigo para um lindo Oratorio portuguez, livrando-te do tormento da solidão e das melancolias da obscuridade, e dando-te lá os regalos de um altar, o incenso vivo das rosas, a chamma louvadora das velas, o respeito das mãos postas, todas as caricias da oração--não é para que tu, prolongando indulgentemente uma existencia estorvadora, me prives da rapida herança e dos gozos a que a minha carne moça tem direito! Vê lá! Se, por teres atravessado o Evangelho, te embebeste de idéas pueris de Caridade e
Misericordia, e vaes com tenção de curar a titi--então fica-te ahi, entre essas penedias, fustigado pelo pó do deserto, recebendo o excremento das aves de rapina, enfastiado no silencio eterno!... Mas se promettes permanecer surdo ás preces da titi, comportar-te como um pobre galho secco e sem influencia, e não interromperes a appetecida decomposição dos seus tecidos--então vaes ter em Lisboa o macio agasalho d'uma capella afofada de damascos, o calor dos beijos devotos, todas as satisfações de um idolo, e eu hei de cercar-te de tanta adoração que não has de invejar o Deus que os teus espinhos feriram... Falla, monstro!»
O monstro não fallou. Mas logo senti perpassar-me na alma, aquietadoramente, com uma consolante fresquidão de brisa d'estio, o presentimento de que breve a titi ia morrer e apodrecer na sua cova. A
Arvore d'Espinhos mandava, pela communicação esparsa da Natureza, da sua seiva ao meu sangue, aquelle palpite suave da morte da snr.^a D.
Patrocinio--como uma promessa sufficiente de que, transportado para o oratorio, nenhum dos seus galhos impediria que o figado d'essa hedionda senhora inchasse e se desfizesse... E isto foi, entre nós, n'esse ermo, como um pacto taciturno, profundo e mortal.
Mas era esta realmente a Arvore d'Espinhos? A rapidez da sua condescendencia fazia-me suspeitar a excellencia da sua divindade.
Resolvi consultar o solido, sapientissimo Topsius.
Corri á fonte de Elyseo, onde elle rebuscava pedras, lascas, lixos, restos da orgulhosa Cidade das Palmeiras. Avistei logo o luminoso historiographo acocorado junto a uma poça d'agua, com os oculos sôfregos, esgarafunhando um pedaço de pilastra negra, meia enterrada no lodo. Ao lado um burro, esquecido da herva tenra, contemplava philosophicamente e com melancolia o afan, a paixão d'aquelle sabio, de rastos no chão, á procura das Thermas de Herodes.
Contei a Topsius o meu achado, a minha incerteza... Elle ergueu-se logo, serviçal, zeloso, presto ás lides do Saber.
--Um arbusto d'espinhos? murmurava, estancando o suor. Ha de ser o
Nabka... Banalissimo em toda a Syria! Hasselquist, o botanico, pretende que d'ahi se fez a Corôa d'Espinhos... Tem umas folhinhas verdes, muito tocantes, em fórma de coração, como as da hera... Ah, não tem? Perfeitamente, então é o Lycium Spinosum. Foi o que serviu, segundo a tradição latina, para a Corôa d'Injuria... Que quanto a mim a tradição é futil; e Hasselquist ignaro, infinitamente ignaro... Mas eu vou já aclarar isso, D. Raposo. Aclarar irrefutavelmente e para sempre!
Abalámos. No ermo, ante a arvore medonha, Topsius, alçando cathedraticamente o bico, recolheu um momento aos depositos interiores do seu saber--e depois declarou que eu não podia levar a minha tia devotissima nada mais precioso. E a sua demonstração foi faiscante.
Todos os instrumentos da Crucificação (disse elle, floreando o guardasol), os Pregos, a Esponja, a Cana Verde, um momento divinisados como materiaes da Divina Tragedia, reentraram pouco a pouco, pelas urgencias da civilisação, nos usos grosseiros da vida... Assim, o Prego não ficou per eternum na ociosidade dos altares, memorando as Chagas
Sacratissimas: a humanidade, catholica e commerciante, foi gradualmente levada a utilisar o prego como uma valiosa ferragem: e tendo trespassado as mãos do Messias, elle hoje segura, laborioso e modesto, as tampas de caixões impurissimos... Os mais reverentes irmãos do Senhor dos Passos empregam a Cana para pescar; ella entra na folgante composição do foguete; e o Estado mesmo (tão escrupuloso em materia religiosa) assim a usa em noites alegres de nova Constituição ou em festivos delirios pelas bodas de Principes... A Esponja, outr'ora embebida no vinagre de sarcasmo e offerecida n'uma lança, é hoje aproveitada n'esses irreligiosos ceremoniaes da limpeza--que a Igreja sempre reprovou com odio... Até a Cruz, a Fórma suprema, tem perdido entre os homens a sua divina significação. A christandade, depois de a ter usado como lábaro, usa-a como enfeite. A cruz é broche, a cruz é breloque; pende nos collares, tilinta nas pulseiras; é gravada em sinetes de lacre, é incrustada em botões de punho;--e a Cruz realmente n'este soberbo seculo pertence mais á Ourivesaria do que pertence á Religião...
--Mas a Corôa d'Espinhos, D. Raposo, essa não tornou a servir para mais nada!
Sim, para mais nada! A Igreja recebeu-a das mãos de um proconsul romano--e ella ficou isoladamente e para toda a eternidade na Igreja, commemorando o Grande Ultraje. Em todo este vario Universo ella só encontra um lugar congenere na penumbra das capellas; o seu unico prestimo é persuadir á contrição. Nenhum joalheiro jámais a imitou em ouro, cravejada de rubis, para ornar um penteado loiro; ella é só
Instrumento de Martyrio; e com salpicos de sangue, sobre os caracoes frisados das imagens, inspira infinitamente as lagrimas... O mais astuto
Industrial, depois de a retorcer pensativamente nas mãos, restituil-a-hia aos altares como coisa inutil na Vida, no Commercio, na
Civilisação; ella é só attributo da Paixão, recurso de tristes, enternecedora de fracos. Só ella, entre os accessorios da Escriptura, provoca sinceramente a oração. Quem, por mais adorabundo, se prostraria, a borbulhar de Padre-Nossos, diante d'uma esponja cahida n'uma tina, ou d'uma cana á beira d'um regato?... Mas para a Corôa d'Espinhos erguem-se sempre as mãos crentes; e a sensação da sua deshumanidade passa ainda na melancolia dos Misereres!
Que maior maravilha podia eu levar á titi?...
--Sim, Topsius, meu catita... Os teus dizeres são d'oiro puro... Mas a outra, a verdadeira, a que serviu, teria sido tirada d'aqui, d'este tronco? Hein, amiguinho?
O erudito Topsius desdobrou lentamente o seu lenço de quadrados: e declarou (contra a futil tradição latina e contra o ignarissimo
Hasselquist) que a Corôa d'Espinhos fôra arranjada d'uma silva, fina e flexivel, que abunda nos valles de Jerusalem, com que se accende o lume, com que se erriçam as sebes, e que dá uma flôrzinha rôxa, triste e sem cheiro...
Eu murmurei, succumbido: --Que pena! A titi fazia tanto gosto que fosse d'aqui, Topsius! A titi é tão rica!...
Então este sagaz philosopho comprehendeu que ha Razões de Familia como ha Razões d'Estado--e foi sublime. Estendeu a mão por cima da arvore, cobrindo-a assim largamente com a garantia da sua sciencia--e disse estas palavras memoraveis: --D. Raposo, nós temos sido bons amigos... Póde pois afiançar á senhora sua tia da parte d'um homem que a Allemanha escuta em questões de critica archeologica, que o galho que lhe levar d'aqui, arranjado em corôa, foi...
--Foi?--berrei ancioso.
--Foi o mesmo que ensanguentou a fronte do rabbi Jeschoua Natzarieh, a quem os latinos chamam Jesus do Nazareth, e outros tambem chamam o
Christo!...
Fallára o alto saber germanico! Puxei o meu navalhão sevilhano, decepei um dos galhos. E emquanto Topsius voltava a procurar pelas hervas humidas a cidadella de Cypron e outras pedras de Herodes--eu recolhi ás tendas, em triumpho, com a minha preciosidade. O prazenteiro Potte, sentado n'um sellim, estava moendo café.
--Soberbo galho! gritou elle. Quer-se arranjadinho em corôa... Fica d'uma devoção!
E logo, com a sua rara destreza de mãos, o jocundo homem entrelaçou o galho rude em forma de corôa santa. E tão parecida! tão tocante!...
--Só lhe faltam as pinguinhas de sangue! murmurava eu, enternecido.
Jesus! o que a titi se vai babar!
Mas como levariamos para Jerusalem, através dos cerros de Judá, aquelles incommodos espinhos--que, apenas armados na sua fórma Passional, pareciam já avidos de rasgar carne innocente? Para o alegre Potte não havia difficuldades; tirou do fundo do seu provido alforge uma fofa nuvem de algodão em rama; envolveu n'ella delicadamente a Corôa d'Aggravo, como uma joia fragil; depois com uma folha de papel pardo e um nastro escarlate--fez um embrulho redondo, sólido, ligeiro e nitido... E eu, sorrindo, enrolando o cigarro, pensava n'esse outro embrulho de rendas e laços de sêda, cheirando a violeta e a amor, que ficára em Jerusalem, esperando por mim e pelo favor dos meus beijos.
--Potte, Potte! gritei, radiante. Nem tu sabes que grossa moeda me vai render esse galhinho, dentro d'esse pacotinho!
Apenas Topsius voltou da sacra fonte d'Elyseo--eu offereci, para celebrar o encontro providencial da Grande Reliquia, uma das garrafas de
Champagne, que Potte trazia nos alforges, encarapuçadas d'ouro. Topsius bebeu «á Sciencia!» Eu bebi «á Religião!» E largamente a espuma de Moet et Chandon regou a terra de Canaan.
Á noite, para maior festividade, accendemos uma fogueira: e as mulheres arabes de Jericó vieram dançar diante das nossas tendas. Recolhemos tarde, quando por sobre Moab, para os lados de Makéros, a lua apparecia, fina e recurva, como esse alfange d'ouro que decepou a cabeça ardente d'Iokanan.
O embrulho da Corôa d'Espinhos estava á beira do meu catre. O lume apagára-se, o nosso acampamento dormia no infinito silencio do Valle da
Escriptura... Tranquillo, regalado, adormeci tambem.