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A Relíquia

por Eça de Queiros

Capítulo 2 - Parte 2

Eu balbuciei, com uma lagrima a amollentar-me a palpebra: --E Herodes mandou então degolar o nosso bom S. João!

--Não! Antipas Herodes era um frouxo, um tibio... Muito lubrico, D.

Raposo, infinitamente lubrico, D. Raposo! Mas que indecisão!... Além d'isso, como todos os galileus, tinha uma secreta fraqueza, uma irremediavel sympathia por prophetas. E depois arreceava a vingança de

Elias, o patrono, o amigo d'Iokanan... Porque Elias não morreu, D.

Raposo. Habita o céo, vivo, em carne, ainda coberto de farrapos, implacavel, vociferador e medonho...

--Safa! murmurei, arripiado.

--Pois ahi está... Iokanan ia vivendo, ia rugindo. Mas sinuoso e subtil é o odio da mulher, D. Raposo. Chega, no mez de Schebat, o dia dos annos de Herodes. Ha um vasto festim em Makeros, a que assistia Vitellius, então viajando na Syria. D. Raposo lembra-se do crasso Vitellius que depois foi senhor do mundo... Pois á hora em que pelo ceremonial das

Provincias Tributarias se bebia á saude de Cesar e de Roma, entra subitamente na sala, ao som dos tamborinos e dançando á maneira de

Babylonia, uma virgem maravilhosa. Era Salomé, a filha de Herodiade e de seu marido Filippe, que ella educára secretamente em Cesarea, n'um bosque, junto do Templo d'Hercules. Salomé dançou, núa e deslumbrante.

Antipas Herodes, inflammado, estonteado de desejo, promette dar tudo o que ella pedisse pelo beijo dos seus labios... Ella toma um prato d'ouro, e tendo olhado a mãi, pede a cabeça do Baptista. Antipas, aterrado, offerece-lhe a cidade de Tiberiade, thesouros, as cem aldeias de Genesareth... Ella sorriu, olhou a mãi: e outra vez, incerta e gaguejando pediu a cabeça de Iokanan... Então todos os convivas,

Saducceus, Escribas, homens ricos da Decapola, mesmo Vitellius e os romanos, gritaram alegremente: «Tu prometteste, tetrarca, tu juraste, tetrarca!» Momentos depois, D. Raposo, um negro da Idumea entrou, trazendo n'uma das mãos um alfange, na outra presa pelos cabellos a cabeça do propheta. E assim acabou S. João, por quem se canta e se queimam fogueiras n'uma dôce noite de junho...

Escutando, embevecidos e a passo, estas coisas tão antigas--avistámos ao longe, na areia fulva, uma sebe de verdura triste e da côr do bronze.

Potte gritou: «o Jordão! o Jordão!» E arrebatadamente galopámos para o rio da Escriptura.

O festivo Potte conhecia, á beira da corrente baptismal, um sitio deleitosissimo para uma sesta christã: e ahi passamos as horas quentes, recostados n'um tapete, languidos, e bebendo cerveja, depois de bem esfriada nas aguas do rio santo. Elle faz alli um claro, suave remanso, a repousar da lenta, abrazada jornada que traz, através do deserto, desde o lago de Galilêa: e antes de mergulhar para sempre no amargor do

Mar Morto--alli preguiça, espraiado sobre a areia fina; canta baixo e cheio de transparencia, rolando os seixos lustrosos do seu leito; e dorme nos sitios mais frescos, immovel e verde, á sombra dos tamarindos... Por sobre nós rumorejavam as folhas dos altos choupos da

Persia: entre as hervas balançavam-se flôres desconhecidas, das que toucavam outr'ora as tranças das virgens de Canaan em manhãs de vindima; e na escuridão fofa das ramagens, onde já as não vinha assustar a voz terrivel de Jehovah, gorgeavam pacificamente as toutinegras. Defronte elevavam-se azues e sem mancha, como feitas d'um só bloco de pedra preciosa, as montanhas de Moab. O céo branco, mudo, recolhido, parecia descançar deliciosamente do duro tumulto que o agitou quando alli vivia, entre preces e mortandades, o sombrio Povo de Deus: e onde constantemente batiam as azas dos Seraphins, e fluctuavam as roupagens dos prophetas arrebatados pelo Altissimo, era calmante vêr agora passar apenas uma revoada de pombos bravos, voando para os pomares d'Engaddi.

Obedecendo á recommendação da titi, despi-me, e banhei-me nas aguas do

Baptista. Ao principio, enleado de emoção beata, pisei a areia reverentemente como se fosse o tapete d'um altar-mór: e de braços cruzados, nú, com a corrente lenta a bater-me os joelhos, pensei em S.

Joãosinho, susurrei um padre-nosso. Depois ri, aproveitei aquella bucolica banheira entre arvores; Potte atirou-me a minha esponja; e ensaboei-me nas aguas sagradas, trauteando o fado da Adelia.

Ao refrescar, quando montavamos a cavallo, uma tribu de beduinos, descendo das collinas de Galgalá, trouxe os seus rebanhos de camêlos a beber ao Jordão; as crias brancas e felpudas corriam, balando; os pastores, de lança alta, soltando gritos de batalha, galopavam, n'um amplo esvoaçar d'albornozes; e era como se resurgisse em todo o valle, no esplendor da tarde, uma pastoral da idade biblica, quando Agar era moça! Teso na sella, com as redeas bem colhidas, eu senti um curto arrepio de heroismo; ambicionava uma espada, uma Lei, um Deus por quem combater... Lentamente alargara-se pela planicie sacra um silencio enlevado. E o mais alto cerro de Moab cobriu-se de um fulgor raro, côr de rosa e côr d'ouro, como se n'elle de novo, fugitivamente, ao passar, se reflectisse a face do Senhor! Topsius alçou a mão sapiente: --Aquelle cimo illuminado, D. Raposo, é o Moriah, onde morreu Moysés!

Estremeci. E penetrado pelas emanações divinas d'essas aguas, d'esses montes, sentia-me forte--e igual aos homens fortes do Exodo. Pareceu-me ser um d'elles, familiar de Jehovah, e tendo chegado do negro Egypto com as minhas sandalias na mão... Esse alliviado suspiro que trazia a briza vinha das tribus d'Israel, emergindo emfim do deserto! Pelas encostas além, seguida d'uma escolta d'anjos, a Arca dourada descia balançada sobre os hombros dos levitas vestidos de linho e cantando. Outra vez nas seccas areias reverdecia a terra da Promissão. Jericó branquejava entre as seáras: e através dos palmares cerrados já resoavam em marcha os clarins de Josué!

Não me contive, arranquei o capacete, soltei por sobre Canaan este urro piedoso: --Viva Nosso Senhor Jesus Christo! Viva toda a Côrte do Céo!

* * * * *

Cedo, ao outro dia, domingo, o incansavel Topsius partiu, bem enlapisado e bem enguardasolado, a estudar as ruinas de Jericó, essa velha Cidade das Palmeiras que Herodes cobrira de thermas, de templos, de jardins, d'estatuas, e onde passaram os seus tortuosos amores com Cleopatra... E eu, á porta da tenda, escarranchado n'um caixote, fiquei a tomar o meu café, olhando os pacificos aspectos do nosso acampamento. O cozinheiro depennava frangos; o beduino triste areava á beira d'agua o seu pacato alfange; o nosso lindo arrieiro esquecia a ração ás egoas para seguir no céo, d'um brilho de saphira, a branca passagem das cegonhas voando aos pares para a Samaria.

Depois puz o capacete, fui vadiar na doçura da manhã, de mãos nos bolsos, cantarolando um fado meigo. E ia pensando na Adelia e no snr.

Adelino... Enroscados na alcova, beijando-se furiosamente, estavam-me talvez chamando carola, emquanto eu passeava alli, nos retiros da

Escriptura! Áquella hora a titi, de mantelete preto, com o seu ripanço, sahia para a missa de Sant'Anna: os creados do Montanha, esguedelhados, assobiando, escovavam o pano dos bilhares: e o dr. Margaride, á janella, na praça da Figueira, pondo os oculos, abria o Diario de Noticias. Ó minha dôce Lisboa!... Mas ainda mais perto, para além do deserto de

Gaza, no verde Egypto, a minha Maricoquinhas n'esse instante estava enchendo o vaso do balcão com magnolias e rosas; o seu gato dormia no velludo da cadeira; ella suspirava pelo «seu portuguezinho valente...»

Suspirei tambem: mais triste nos labios se me fez o fado triste.

E de repente, olhando, achei-me, como perdido, n'um sitio de grande solidão e de grande melancolia. Era longe do regato e dos aromaticos arbustos de flôr amarella; já não via as nossas tendas brancas; e diante de mim arredondava-se um ermo árido, livido, de areia, fechado todo por penedos lisos, direitos como os muros d'um poço--tão lugubres que a luz loura da quente manhã do Oriente desmaiava alli, mortalmente, desbotada e magoada. Eu lembrava-me de gravuras, assim desoladas, onde um eremita de longas barbas medita um in-folio junto de uma caveira. Mas nenhum solitario aniquilava alli a carne em heroica penitencia. Sómente, ao meio do fero recinto, isolada, orgulhosa, com um ar de raridade e de reliquia, como se as penedias se tivessem amontoado para lhe arranjarem um resguardo de Sacrario--erguia-se uma arvore tão repellente, que logo me fez morrer nos labios o resto do fado triste...

Era um tronco grosso, curto, atochado e sem nós de raizes, semelhante a uma enorme moca bruscamente cravada na areia: a casca corredia tinha o lustre oleoso de uma pelle negra: e da sua cabeça entumecida, de um tom de tição apagado--rompiam, como longas pernas d'aranha, oito galhos que contei, pretos, molles, lanugentos, viscosos, e armados de espinhos...

Depois de olhar em silencio para aquelle monstro, tirei devagar o meu capacete e murmurei: --Para que viva!

É que me encontrava certamente diante d'uma arvore illustre! Fôra um galho igual (o nono talvez) que, arranjado outr'ora em fórma de corôa por um centurião romano da guarnição de Jerusalem, ornára sarcastimente, no dia do suplicio, a cabeça de um carpinteiro de Galilêa, condemnado...

Sim, condemnado por andar, entre quietas aldeias e nos santos pateos do

Templo, dizendo-se filho de David e dizendo-se filho de Deus, a prégar contra a velha Religião, contra as velhas Instituições, contra a velha

Ordem, contra as velhas Fórmas! E eis que esse galho por ter tocado os cabellos incultos do rebelde torna-se divino, sobe aos altares, e do alto enfeitado dos andores faz prostrar no lagedo, á sua passagem, as multidões enternecidas...

No collegio dos Isidoros, ás terças e sabbados, o sebento padre Soares dizia esfuracando os dentes--«que havia, meninos, lá n'um sitio da

Judêa...» Era alli! «...uma arvore que segundo dizem os authores é mesmo d'arripiar...» Era aquella! Eu tinha ante meus frivolos olhos de

Bacharel a sacratissima Arvore d'Espinhos!

E logo uma idéa sulcou-me o espirito com um brilho de visitação celeste... Levar á titi um d'esses galhos, o mais pennugento, o mais espinhoso, como sendo a reliquia fecunda em milagres a que ella poderia consagrar seus ardores de devota e confiadamente pedir as mercês celestiaes!

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