Capítulo 3 - Parte 1
Estendidos no chão, junto á balaustrada do claustro, negros dormitavam com a barriga ao sol. Uma velha contava moedas de cobre, acocorada diante do seu gigo de fruta. Em andaimes, postos contra uma columna, havia trabalhadores compondo o telhado. E crianças, a um canto, jogavam com discos de ferro que tiniam de leve nas lages.
Subitamente, alguem familiar tocou no hombro do historiador dos Herodes.
Era o formoso Manassés; e com elle vinha um velho magnifico, d'uma nobreza de Pontifice, a quem Topsius beijou filialmente a manga da simarra branca, bordada de verdes folhas de parra. Uma barba de neve, lustrosa d'oleo, cahia-lhe até á faxa que o cingia; e os hombros largos desappareciam sob a esparsa abundancia dos cabellos alvos, sahindo do turbante como uma pura romeira de arminhos reaes. Uma das mãos, cheia de anneis, apoiava-se a um forte bastão de marfim; e a outra conduzia uma criança pallida, que tinha os olhos mais bellos que estrellas, e semelhava junto ao ancião um lirio á sombra d'um cedro.
--Subi á galeria, disse-nos Manassés. Tereis lá repouso e frescura...
Seguimos o Patriota; e eu perguntei cautelosamente a Topsius quem era o outro tão velho, tão augusto.
--Rabbi Robam, murmurou com veneração o meu douto amigo. Uma luz do
Sanhedrin, facundo e subtil entre todos, e confidente de Kaipha...
Reverente, saudei tres vezes Rabbi Robam--que se sentára n'um banco de marmore, pensativo, aconchegando sobre o seu vasto peito ancestral a cabeça da criança mais loura que os milhos de Joppé. Depois continuámos devagar pela galeria sonora e clara: na sua extremidade brilhava uma porta sumptuosa de cedro com chapas de prata lavradas: um Pretoriano de
Cesarêa guardava-a, somnolento, encostado ao seu alto escudo de vime.
Ahi, commovido, caminhei para o parapeito: e logo meus olhos mortaes encontraram lá em baixo--a fórma encarnada do meu Deus!
Mas, oh rara surpreza da alma variavel, não senti extasis nem terror!
Era como se de repente me tivessem fugido da memoria longos, laboriosos seculos de Historia e de Religião. Nem pensei que aquelle homem sêcco e moreno fosse o Remidor da Humanidade... Achei-me inexplicavelmente anterior nos tempos. Eu já não era Theodorico Raposo, christão e bacharel: a minha individualidade como que a perdera, á maneira d'um manto que escorrega, n'essa carreira anciosa desde a casa de Gamaliel.
Toda a antiguidade das coisas ambientes me penetrára, me refizera um sêr; eu era tambem um antigo. Era Theodoricus, um Lusitano, que viera n'uma galera das praias resoantes do Promontorio Magno, e viajava, sendo
Tiberio imperador, em terras tributarias de Roma. E aquelle homem não era Jesus, nem Christo, nem Messias,--mas apenas um moço de Galilêa que, cheio d'um grande sonho, desce da sua verde aldeia para transfigurar todo um mundo e renovar todo um céo, e encontra a uma esquina um
Nethenim do Templo que o amarra e o traz ao Pretor, n'uma manhã d'audiencia, entre um ladrão que roubára na estrada de Sichem e outro que atirára facadas n'uma rixa em Emath!
N'um espaço ladrilhado de mosaico, em face do sólio onde se erguia o assento curul do Pretor sob a Loba Romana--Jesus estava de pé, com as mãos cruzadas e frouxamente ligadas por uma corda que rojava no chão. Um largo albornoz de lã grossa, em riscas pardas, orlado de franjas azues, cobria-o até aos pés, calçados de sandalias já gastas pelos caminhos do deserto e atadas com correias. Não lhe ensanguentava a cabeça essa corôa inhumana de espinhos, de que eu lêra nos Evangelhos; tinha um turbante branco, feito d'uma longa faxa de linho enrolada, cujas pontas lhe pendiam de cada lado sobre os hombros; um cordel amarrava-lh'o por baixo da barba encaracolada e aguda. Os cabellos sêccos, passados por traz das orelhas, cahiam-lhe em anneis pelas costas; e no rosto magro, requeimado, sob sobrancelhas densas, unidas n'um só traço, negrejava com uma profundidade infinita o resplendor dos seus olhos. Não se movia, forte e sereno diante do Pretor. Só algum estremecimento das mãos presas trahia o tumulto do seu coração; e ás vezes respirava longamente, como se o seu peito, acostumado aos livres e claros ares dos montes e dos lagos de Galilêa, suffocasse entre aquelles marmores, sob o pesado velario romano, na estreiteza formalista da Lei.
A um lado, Sarêas, o vogal do Sanhedrin, tendo deposto no chão o seu manto e o seu baculo dourado, ia desenrolando e lendo uma tira escura de pergaminho, n'um murmurio cantado e dormente. Sentado n'um escabello, o
Assessor romano, suffocado pelo calor já aspero do mez de Nizam, refrescava com um leque de folhas d'heras sêccas a face rapada e branca como um gesso: um escriba, velho e nedio, n'uma mesa de pedra cheia de tabularios e de regras de chumbo, aguçava miudamente os seus calamos: e entre ambos o interprete, um phenicio imberbe, sorria com a face no ar, com as mãos na cinta, arqueando o peito onde trazia pintado sobre a jaqueta de linho um papagaio vermelho. Em torno ao velario, constantemente voavam pombas. E foi assim que eu vi Jesus de Galilêa preso, diante do Pretor de Roma...
No emtanto Sarêas, tendo enrolado em torno á haste de ferro o pergaminho escuro, saudou Pilatos, beijou um sinete sobre o dedo para marcar nos seus labios o sêllo da verdade,--e immediatamente encetou uma arenga em grego, com textos, verbosa e aduladora. Fallava do Tetrarca de Galilêa, o nobre Antipas; louvava a sua prudencia; celebrava seu pai Herodes o
Grande, restaurador do Templo... A gloria d'Herodes enchia a terra; fôra terrivel, sempre fiel aos Cesares; seu filho Antipas era engenhoso e forte!... Mas reconhecendo a sua sabedoria elle estranhava que o
Tetrarca se recusasse a confirmar a sentença do Sanhedrin que condemnava
Jesus á morte... Não fôra essa sentença fundada nas Leis que dera o
Senhor? O justo Hanan interrogára o Rabbi, que emmudecera, n'um silencio ultrajante. Era essa a maneira de responder ao sabio, ao puro, ao piedoso Hanan? Por isso um zeloso, sem se conter, atirára a mão violenta á face do Rabbi... Onde estava o respeito dos antigos tempos, e a veneração do Pontificado?
A sua voz cava e larga rolava, infindavelmente. Eu, cansado, bocejava.
Por baixo de nós dois homens encruzados nas lages comiam tamaras de
Bethabara que traziam no saião, bebendo d'uma cabaça. Pilatos, com o punho sob a barba, olhava somnolentamente os seus borzeguins escarlates picados de estrellas d'ouro.
E Sarêas agora proclamava os direitos do Templo. Elle era o orgulho da nação, a morada eleita do Senhor! Cesar Augusto offertára-lhe escudos e vasos de ouro... E esse Templo, como o respeitára o Rabbi? Ameaçando destruil-o! «Eu derrocarei o templo de Jehovah e edifical-o-hei em tres dias!» Testemunhas puras ouvindo esta rude impiedade tinham coberto a cabeça de cinza para afastar a cólera do Senhor... Ora a blasphemia atirada ao santuario resaltava até ao seio de Deus!...
Sob o velario, os Phariseus, os Escribas, os Nethenins do Templo, escravos sordidos, susurravam como arbustos agrestes que um vento começa a agitar. E Jesus permanecia immovel, abstrahidamente indifferente, com os olhos cerrados, como para isolar melhor o seu sonho contínuo e formoso, longe das coisas duras e vãs que o maculavam. Então o Assessor romano ergueu-se, depôz no escabello o seu leque de folhas, traçou com arte o manto forense, orlado de azul, saudou tres vezes o Pretor,--e a sua mão delicada começou a ondear no ar, fazendo scintillar uma joia.
--Que diz elle?...
--Coisas infinitamente habeis, murmurou Topsius. É um pedante, mas tem razão. Diz que o Pretor não é um judeu; que nada sabe de Jehovah, nem lhe importam os prophetas que se erguem contra Jehovah; e que a espada de Cesar não vinga deuses que não protegem Cesar!... O romano é engenhoso!
Offegando, o Assessor recahiu languidamente no escabello. E logo Sarêas volveu a arengar, sacudindo os braços para a multidão dos Phariseus, como a evocar os seus protestos, e refugiando-se na sua força. Agora, mais retumbante, accusava Jesus, não da sua revolta contra Jehovah e o
Templo, mas das suas pretenções como principe da casa de David! Toda a gente em Jerusalem o tinha visto, havia quatro dias, entrar pela Porta d'Ouro, n'um falso triumpho, entre palmas verdes, cercado d'uma multidão de galileus, que gritavam--«Hossana ao filho de David, Hossana ao rei d'Israel!...» --Elle é o filho de David, que vem para nos tornar melhores! gritou ao longe a voz de Gad, cheia de persuasão e d'amor.
Mas de repente Sarêas collou ao corpo as mangas franjadas, mudo e mais teso que um conto de lança: o escriba romano, de pé, com os punhos fincados na mesa, vergava o cachaço reverente e nedio: o Assessor sorria, attento. Era o Pretor que ia interrogar o Rabbi: e eu, tremendo, vi um Legionario empurrar Jesus que ergueu a face...
Debruçado de leve para o Rabbi, com as mãos abertas que pareciam soltar, deixar cahir todo o interesse por esse pleito ritual de sectarios arguciosos, Poncius murmurou, enfastiado e incerto: --És tu então o rei dos judeus?... Os da tua nação trazem-te aqui!...
Que fizeste tu?... Onde é o teu reino?
O interprete, enfatuado, perfilado junto ao sólio de marmore, repetiu muito alto estas coisas na antiga lingua hebraica dos Livros Santos: e, como o Rabbi permanecia silencioso, gritou-as na falla chaldaica que se usa em Galilêa.
Então Jesus deu um passo. Eu ouvi a sua voz. Era clara, segura, dominadora e serena: --O meu reino não é d'aqui! Se por vontade de meu Pai eu fosse rei de
Israel, não estaria diante de ti com esta corda nas mãos... Mas o meu reino não é d'este mundo!
Um grito estrugiu, desesperado: --Tirai-o então d'este mundo!
E logo, como lenha preparada que uma faisca inflamma, o furor dos
Phariseus e dos serventes do Templo irrompeu, crepitando, em clamores impacientes: --Crucificai-o! crucificai-o!
Pomposamente o interprete redizia em grego ao Pretor os brados tumultuosos, lançados na lingua syriaca que falla o povo em Judêa...
Poncius bateu o borzeguim sobre o marmore. Os dois lictores ergueram ao ar as varas rematadas n'uma figura d'aguia: o escriba gritou o nome de
Caio Tiberio: e logo os braços frementes se abaixaram, e foi como um terror diante da magestade do Povo Romano.
De novo Poncius fallou, lento e vago: --Dizes então que és rei... E que vens tu fazer aqui?
Jesus deu outro passo para o Pretor. A sua sandalia pousou fortemente sobre as lages como se tomasse posse suprema da terra. E o que sahiu dos seus labios tremulos pareceu-me fulgurar, vivo no ar, como o resplendor que dos seus olhos negros sahiu.
--Eu vim a este mundo testemunhar a verdade! Quem desejar a verdade, quem quizer pertencer á verdade tem de escutar a minha voz!
Pilatos considerou-o um momento, pensativo; depois encolhendo os hombros: --Mas, homem, o que é a verdade?
Jesus de Nazareth emmudeceu--e no Pretorio espalhou-se um silencio como se todos os corações tivessem parado, cheios subitamente de incerteza...
Então, apanhando devagar a sua vasta toga, Pilatos desceu os quatro degraus de bronze;--e precedido dos lictores, seguido do Assessor, penetrou no Palacio, por entre, o rumor d'armas dos legionarios que o saudavam batendo o ferro das lanças sobre o bronze dos escudos.
Immediatamente elevou-se por todo o pateo um aspero e ardente susurro como de abelhas irritadas. Sarêas perorava, brandindo o baculo, entre os
Phariseus que apertavam as mãos n'um terror. Outros, afastados, cochichavam sombriamente. Um grande velho, com um manto negro que esvoaçava, corria n'uma ancia o Pretorio, por entre os que dormiam, ao sol, por entre os vendedores de pães azymos, gritando: «Israel está perdido!» E eu vi Levitas fanaticos arrancarem as borlas das tunicas, como n'uma calamidade publica.
Gad surgiu diante de nós, erguendo os braços triumphantes: --O Pretor é justo e liberta o Rabbi!...
E, com a face cheia de brilho, revelava-nos a doçura da sua esperança! O
Rabbi, apenas solto, deixaria Jerusalem--onde as pedras eram menos duras que os corações. Os seus amigos armados esperavam-no em Bethania: e partiriam ao romper da lua para o oasis d'Engaddi! Lá estavam aquelles que o amavam. Não era Jesus o irmão dos Essenios? Como elles o Rabbi prégava o desprezo dos bens terrestres, a ternura pelos que são pobres, a incomparavel belleza do reino de Deus...
Eu, credulo, regosijava-me--quando um tumulto invadiu a galeria que um escravo viera regar. Era o bando escuro dos Phariseus, em marcha para o banco de pedra, onde Rabbi Robam conversava com Manassés, enrolando dôcemente nos dedos os cabellos da criança, mais louros que os minhos.
Topsius e eu corremos para a turba intolerante. Já Sarêas, no meio, curvado, mas com a firmeza de quem intíma, dizia: --Rabbi Robam, é necessário que vás fallar ao Pretor e salvar a nossa lei!
E logo, de todos os lados, foi um supplicar ancioso: --Rabbi, falla ao Pretor! Rabbi, salva Israel!
Lentamente o velho erguia-se, magestoso como um grande Moysés. E diante d'elle um Levita, muito pallido, vergava os joelhos, murmurava a tremer: --Rabbi, tu és justo, sabio, perfeito e forte diante do Senhor!
Rabbi Robam levantou as duas mãos abertas para o céo: e todos se curvaram como se o espirito de Jehovah, obedecendo á muda invocação, tivesse descido para encher aquelle coração justo. Depois, com a mão da criança na sua, poz-se a caminhar em silencio; atraz a turba fazia um rumor de sandalias lassas sobre as lages de marmore.
Parámos, amontoados, diante da porta de cedro--onde o pretoriano cruzára a lança, depois de bater as argolas de prata. Os pesados gonzos rangeram; um tribuno do Palacio acudiu tendo na mão um longo galho de vide. Dentro era uma fria sala, mal alumiada, severa, com os muros forrados de estuques escuros. Ao centro erguia-se pallidamente uma estatua de Augusto, com o pedestal juncado de corôas de louro e de ramos votivos: dois grandes tocheiros de bronze dourado reluziam aos cantos, na sombra.
Nenhum dos judeus entrou--porque pisar em dia paschal um sólo pagão era coisa impura diante do Senhor. Sarêas annunciou altivamente ao Tribuno que «alguns da nação d'Israel, á porta do Palacio de seus paes, estavam esperando o Pretor.» Depois pesou um silencio, cheio d'anciedade...
Mas dois lictores avançaram: e logo atraz, caminhando a passos largos, com a vasta toga apanhada contra o peito, Pilatos appareceu.
Todos os turbantes se curvaram, saudando o Procurador da Judêa. Elle parára junto á estatua de Augusto. E, como repetindo o gesto nobre da figura de marmore, estendeu a mão que segurava um pergaminho enrolado, e disse: --Que a paz seja comvosco e com as vossas palavras... Fallai!
Sarêas, vogal do Sanhedrin, adiantando-se, declarou que os seus corações vinham em verdade cheios de paz... Mas, tendo o Pretor deixado o
Pretorio sem confirmar nem annullar a sentença do Sanhedrin que condemnava Jesus-ben-José--elles se achavam como o homem que vê a uva na vinha, suspensa, sem seccar e sem amadurecer!
Poncius pareceu-me penetrado d'equidade e clemencia.
--Eu interroguei o vosso preso, disse elle; e não lhe achei culpa que deva punir o Procurador da Judêa... Antipas Herodes, que é prudente e forte, que pratíca a vossa Lei e ora no vosso Templo, interrogou-o tambem e nenhuma culpa n'elle encontrou... Esse homem diz apenas coisas incoherentes como os que fallam em sonhos... Mas as suas mãos estão puras de sangue; nem ouvi que elle escalasse o muro do seu visinho...
Cesar não é um amo inexoravel... Esse homem é apenas um visionario.
Então, com um sombrio murmurio, todos recuaram, deixando Rabbi Robam só no limiar da sala romana. Um brilho de joia tremia na ponta da sua tiára: as suas cans cahindo sobre os vastos hombros coroavam-no de magestade como a neve faz aos montes: as franjas azues do seu manto solto rojavam nas lages, em redor. Devagar, sereno, como se explicasse a
Lei aos seus discipulos, ergueu a mão e disse: --Official de Cesar, Poncius, muito justo e muito sabio! O homem que tu chamas visionario, ha annos que offende todas as nossas leis e blasphema o nosso Deus. Mas quando o prendemos nós, quando t'o trouxemos nós?
Sómente quando o vimos entrar em triumpho pela Porta d'Ouro, acclamado como rei da Judêa. Porque a Judêa não tem outro rei senão Tiberio: e apenas um sedicioso se proclama em revolta contra Cesar, apressamo-nos a castigal-o. Assim fazemos nós, que não temos mandado de Cesar, nem cobramos do seu erario: e tu, official de Cesar, não queres que seja castigado o rebelde a teu amo?...
A face larga de Poncius, que uma somnolencia amollecia, relampeou, raiada vivamente de sangue. Aquella tortuosidade de judeus que, execrando Roma, apregoavam agora um zêlo ruidoso por Cesar para poderem, em nome da sua auctoridade, saciar um odio sacerdotal--revoltou a rectidão do Romano: e a audaciosa admoestação foi intoleravel ao seu orgulho. Desabridamente exclamou, com um gesto que os sacudia: --Cessai! Os procuradores de Cesar não vêm aprender a uma colonia barbara da Asia os seus deveres para com Cesar!
Manassés que ao meu lado, já impaciente, puxava a barba, afastou-se com indignação. Eu tremi. Mas o soberbo Rabbi proseguiu, mais indifferente á ira de Poncius do que ao balar d'um anho que arrastasse ás aras: --Que faria o procurador de Cesar em Alexandria se um visionario descesse de Bubastes proclamando-se rei do Egypto? O que tu não queres fazer n'esta terra barbara da Asia! Teu amo dá-te a guardar uma vinha, e tu deixas que entrem n'ella e que a vindimem? Para que estás então na
Judêa, para que está a sexta legião na torre Antonia? Mas o nosso espirito é claro, e a nossa voz é clara e alta bastante, Poncius, para que Cesar a ouça!...
Poncius deu um passo lento para a porta. E com os olhos faiscantes, cravados n'aquelles judeus que astutamente o iam enlaçando na trama subtil dos seus rancores religiosos: --Eu não receio as vossas intrigas! murmurou surdamente. Elius Lamma é meu amigo!... E Cesar conhece-me bem!
--Tu vês o que não está nos nossos corações! disse Rabbi Robam, calmo como se conversasse á sombra do seu vergel. Mas nós vemos bem o que está no teu, Poncius! Que te importa a ti a vida ou a morte de um vagabundo de Galilêa?... Se tu não queres, como dizes, vingar deuses cuja divindade não respeitas, como pódes querer salvar um propheta cujas prophecias não crês?... A tua malicia é outra, romano! Tu queres a destruição de Judá!
Um estremecimento de cólera, de paixão devota, passou entre os
Phariseus: alguns palpavam o seio da tunica como procurando uma arma. E
Rabbi Robam continuava, denunciando o Pretor, com serenidade e lentidão: --Tu queres deixar impune o homem que prégou a insurreição, declarando-se rei n'uma provincia de Cesar, para tentar, pela impunidade, outras ambições mais fortes e levar outro Judas de Gamala a atacar as guarnições de Samaria! Assim preparas um pretexto para abater sobre nós a espada imperial, e inteiramente apagar a vida nacional da
Judêa. Tu queres uma revolta para a afogares em sangue, e apresentar-te depois a Cesar como soldado victorioso, administrador sabio, digno d'um proconsulado ou d'um governo na Italia! É a isso que chamaes a fé romana? Eu não estive em Roma, mas sei que a isso se chama lá a fé punica... Não nos supponhas porém tão simples como um pastor d'Idumêa!
Nós estamos em paz com Cesar, e cumprimos o nosso dever condemnando o homem que se revoltou contra Cesar... Tu não queres cumprir o teu, confirmando essa condemnação? Bem! Mandaremos emissarios a Roma, levando a nossa sentença e a tua recusa, e tendo salvaguardado perante Cesar a nossa responsabilidade, mostraremos a Cesar como procede na Judêa aquelle que representa a lei do Imperio!... E agora, Pretor, pódes voltar ao Pretorio.
--E lembra-te dos Escudos Votivos, gritou Sarêas. Talvez novamente vejas a quem Cesar dá razão!
Poncius baixára a face, perturbado. Decerto imaginava já vêr além, n'um claro terraço junto ao mar de Capreia, Sejanus, Cesonius, todos os seus inimigos, fallando ao ouvido de Tiberio e mostrando-lhe os emissarios do