Capítulo 1 - Parte 2
Nossa Senhora do Patrocinio; contei-lhe as angustias do meu coração. Por traz do limpido vidro do seu caixilho, com os olhos baixos e magoados, ella foi a confidente do tormento da minha carne; e todas as noites, em ceroulas, antes de me deitar, eu lhe segredava, com ardor: --Ó minha querida Senhora do Patrocinio, faze que a Adelinha goste outra vez de mim!
Depois utilisei o valimento da titi com os santos seus amigos--o amorosissimo e perdoador S. José, S. Luiz Gonzaga, tão benevolo para a juventude. Pedia-lhe que fizesse uma Petição por certa necessidade minha, secreta e toda pura. Ella accedia, com alacridade; e eu, espreitando pelo reposteiro do oratorio, regalava-me de vêr a rigida senhora, de joelhos, de contas na mão, em supplicas aos Patriarchas castissimos para que a Adelia me désse outra vez a beijoquinha na orelha.
Uma noite, cedo, foi experimentar se o céo escutára tão valiosas preces.
Cheguei á porta da Adelia; e bati, tremendo todo, uma argoladinha humilde. O snr. Adelino assomou á janella, em mangas de camisa.
--Sou eu, snr. Adelino, murmurei abjectamente e tirando o chapéo. Queria fallar á Adeliasinha.
Elle rosnou para dentro, para a alcova, o meu nome. Creio mesmo que disse o carola. E lá do fundo, d'entre os cortinados, onde eu a presentia toda desalinhada e formosa, a minha Adelia gritou com furor: --Atira-lhe para cima dos lombos o balde da agua suja!
Fugi.
* * * * *
No fim de setembro, o Rinchão chegou de Paris: e um domingo, á noitinha, á volta da Novena de S. Caetano, entrando no Martinho, encontrei-o, rodeado de rapazes, contando ruidosamente os seus feitos d'amor e de gentil audacia em Paris. Tristonho, puxei um banco e fiquei a ouvir o Rinchão. Com uma ferradura de rubis na gravata, o monoculo pendente d'uma fita larga, uma rosa amarella no peito, o Rinchão impressionava, quando por entre o fumo do charuto esboçava traços do seu prestigio: «Uma noite no Caffé de la Paix, estando eu a cear com a Cora, com a Valtesse, e com um rapaz muito chic, um principe...» O que o
Rinchão tinha visto! o que o Rinchão tinha gozado! Uma condessa italiana, delirante, parenta do Papa, e chamada Popotte, amára-o, levára-o aos Campos-Elyseos na sua victoria--cujo velho brazão eram dois chavelhos encruzados. Jantára em restaurantes onde a luz vinha de serpentinas d'ouro, e os criados, macilentos e graves, lhe chamavam respeitosamente Mr. le Comte. E o Acazar, com festões de gaz entre as arvores, e a Paulina cantando, de braços nús, o Chouriço de
Marselha--revelára-lhe a verdade, a grandeza da civilisação.
--Viste Victor Hugo? perguntou um rapaz de lunetas pretas, que roía as unhas.
--Não, nunca andava cá na roda chic!
Toda essa semana, então, a idéa de vêr Paris brilhou incessantemente no meu espirito, tentadora e cheia de suaves promessas... E era menos o appetite d'esses gozos do Orgulho e da Carne com que se abarrotára o
Rinchão, que a anciedade de deixar Lisboa, onde igrejas e lojas, claro rio e claro céo, só me lembravam a Adelia, o homem amargo de capa á hespanhola, o beijo na orelha perdido para sempre... Ah! se a titi abrisse a sua bolsa de sêda verde, me deixasse mergulhar dentro as mãos, colher ouro, e partir para Paris!...
Mas, para a snr.^a D. Patrocinio, Paris era uma região ascorosa, cheia de mentira, cheia de gula--onde um povo sem santos, com as mãos maculadas do sangue dos seus arcebispos, está perpetuamente, ou brilhe o sol, ou luza o gaz, commettendo uma relaxação. Como ousaria eu mostrar á titi o desejo immodesto de visitar esse lugar de sujidade e de treva moral?...
Logo no domingo porém, jantando no Campo de Sant'Anna os amigos dilectos, aconteceu fallar-se, ao cozido, d'um sabio condiscipulo do padre Casimiro que recentemente deixára a quietação da sua cella no
Varatojo, para ir esposar, entre foguetes, a trabalhosa Sé de Lamego. O nosso modesto Casimiro não comprehendia esta cubiça d'uma mitra, cravejada de pedras vãs: para elle a plenitude d'uma vida ecclesiastica era estar assim aos sessenta annos, são e sereno, sem saudades e sem temores, comendo o arrozinho do forno da snr.^a D. Patrocinio das
Neves...
--Porque deixe-me dizer-lhe, minha respeitavel senhora, que este seu arroz está um primor!... E a ambição de ter sempre um arroz d'estes, e amigos que o apreciem, parece-me a mais legitima e a melhor para uma alma justa...
E assim se veio a discursar das acertadas ambições que, sem aggravo do
Senhor, cada um podia nutrir no seu coração. A do tabellião Justino era uma quintasinha no Minho, com roseiras e com parreiras, onde elle pudesse acabar a velhice, em mangas de camisa, e quietinho.
--Olhe, Justino, disse a titi, uma coisa que lhe havia de fazer falta era a sua missa na Conceição Velha... Quando a gente se acostuma a uma missinha, não ha outra que console... A mim, se me tirassem a de
Sant'Anna, parece-me que começava a definhar...
Era o padre Pinheiro que a celebrava; a titi, enternecida, collocou-lhe no prato outra aza de gallinha;--e padre Pinheiro revelou tambem a ambição que o pungia. Era elevada e santa. Queria vêr o Papa restaurado n'esse throno forte e fecundo em que resplandecera Leão X...
--Se ao menos houvesse mais caridade com elle! exclamou a titi. Mas o
Santissimo Padre, o vigariosinho de Nosso Senhor, assim n'uma masmorra, em farrapos, sobre palha... É de Caipházes, é de judeus!
Bebeu um gole da sua agua morna, e recolheu-se ao retiro da sua alma--a rezar a Ave-Maria que sempre offertava pela saude do Pontifice e pelo termo do seu captiveiro.
O dr. Margaride consolou-a. Não acreditava que o Pontifice dormisse sobre palhas. Viajantes esclarecidos afiançavam-lhe até que o Santo
Padre, querendo, podia ter carruagem.
--Não é tudo; está longe de ser tudo o que compete a quem usa a tiára; mas uma carruagem, minha senhora, é uma grandissima commodidade...
Então o nosso Casimiro, risonho, desejou saber (já que todos patenteavam as suas ambições) qual era a do douto, do eminente dr. Margaride.
--Diga lá a sua, dr. Margaride, diga lá a sua! clamaram todos, com affecto.
Elle sorria, grave.
--Deixe-me v. exc.^a primeiro, D. Patrocinio, minha senhora, servir-me d'essa lingua guizada, que marcha para nós e que me parece preciosa.
Depois de fornecido, o veneravel magistrado confessou que appetecia ser
Par do Reino. Não por alarde de honras, nem pelo luxo da farda; mas para defender o principio sacro da authoridade...
--Só por isto, acrescentou com energia. Porque desejava tambem, antes de morrer, poder dar, se v. exc.^a, D. Patrocinio, me permitte a expressão, uma cacheirada mortal no atheismo e na anarchia. E dava-lh'a!
Todos declararam fervorosamente o dr. Margaride digno d'esses fastigios sociaes. Elle agradeceu, seriissimo. Depois volveu para mim a face magestosa e livida: --E o nosso Theodorico? O nosso Theodorico ainda não nos disse qual era a sua ambição.
Córei: e Paris logo rebrilhou ao fundo do meu desejo, com as suas serpentinas de ouro, as suas condessas primas dos Papas, as espumas do seu champagne--fascinante, embriagante, e adormentando toda a dôr... Mas baixei os olhos; e affirmei que só aspirava a rezar as minhas corôas, ao lado da titi, com proveito e com descanso...
O dr. Margaride porém pousára o talher, insistia. Não lhe parecia um desapego de Deus, nem uma ingratidão com a titi, que eu, intelligente, saudavel, bom cavalleiro e bacharel, nutrisse uma honesta cubiça...
--Nutro! exclamei então decidido como aquelle que arremessa um dardo.
Nutro, dr. Margaride. Gostava muito de vêr Paris.
--Cruzes! gritou a snr.^a D. Patrocinio, horrorisada. Ir a Paris!...
--Para vêr as igrejas, titi!
--Não é necessario ir tão longe para vêr bonitas igrejas, replicou ella, rispidamente. E lá em festas com orgão, e um Santissimo armado com luxo, e uma rica procissão na rua, e boas vozes, e respeito, e imagens de dar gosto, ninguem bate cá os nossos portuguezes!...
Calei-me, esmagado. E o esclarecido dr. Margaride applaudiu o patriotismo ecclesiastico da titi. Decerto, não era n'uma republica sem
Deus, que se deviam procurar as magnificencias do culto...
--Não, minha senhora, lá para saborear coisas grandiosas da nossa santa religião, se eu tivesse vagares, não era a Paris que ia... Sabe v.
exc.^a onde eu ia, snr.^a D. Maria do Patrocinio?
--O nosso doutor, lembrou o padre Pinheiro, corria direito a Roma...
--Upa, padre Pinheiro! Upa, minha cara senhora!
Upa? Nem o bom Pinheiro, nem a titi comprehendiam o que houvesse de superior a Roma pontifical! O dr. Margaride então ergueu solemnemente as sobrancelhas, densas e negras como ebano.
--Ia á Terra Santa, D. Patrocinio! Ia á Palestina, minha senhora! Ia vêr
Jerusalem e o Jordão! Queria eu tambem estar um momento, de pé, sobre o
Golgotha, como Chateaubriand, com o meu chapéo na mão, a meditar, a embeber-me, a dizer «salvè!» E havia de trazer apontamentos, minha senhora, havia de publicar impressões historicas. Ora ahi tem v. exc.^a onde eu ia... Ia a Sião!
Servira-se o lombo assado; e houve, por sobre os pratos, um recolhimento reverente a esta evocação da terra sagrada onde padeceu o Senhor. Eu parecia-me vêr lá muito longe, na Arabia, ao fim de arquejantes dias de jornada sobre o dorso d'um camêlo, um montão de ruinas em torno d'uma cruz; um rio sinistro corre ao lado entre oliveiras; o céo arqueia-se mudo e triste como a abobada d'um tumulo. Assim devia ser Jerusalem.
--Linda viagem! murmurou o nosso Casimiro, pensativo.
--Sem contar, rosnou padre Pinheiro, baixo e como ciciando uma oração, que Nosso Senhor Jesus Christo vê com grande apreço, e muito agradece, essas visitas ao seu Santo Sepulchro.
--Até quem lá vai, disse o Justino, tem perdão de peccados. Não é verdade, Pinheiro? Eu assim li no Panorama... Vem-se de lá limpinho de tudo!
Padre Pinheiro (tendo recusado, com mágoa, a couve-flôr, que considerava indigesta) deu esclarecimentos. Quem ia á Terra Santa, n'uma devota peregrinação, recebia sobre o marmore do Santo Sepulchro, das mãos do
Patriarcha de Jerusalem, e pagando os rituaes emolumentos, as suas
Indulgencias Plenarias...