Capítulo 3 - Parte 1
Umas entonteciam-me pela sua graça dolente e macerada de virgens de devoção, vivendo na penumbra constante dos quartos de cedro, com o corpo saturado de perfumes, a alma esmagada de orações. Outras deslumbravam-me pela sumptuosidade solida e succulenta da sua belleza. Que largos, escuros olhos d'idolos! Que claros, macios membros de marmore! Que sombria molleza! Que nudezes magnificas, quando á beira do leito baixo se lhes desenrolassem os cabellos pesados, e fossem dôcemente escorregando os véos e os linhos de Galacia!...
Foi necessario que Topsius me arrastasse pelo albornoz para a escadaria de Nicanor. E ainda estacava a cada degrau, alongando para traz os olhos esbrazeados, resfolgando como um touro em maio nas lezirias.
--Ai, filhinhas de Sião! Que sois de vos deixar aqui os miolos!
Ao voltar-me, puxado pelo douto Historiador, bati no focinho d'um cordeiro branco que um velho conduzia ás costas, amarrado pelas patas e enfeitado de rosas. Em frente corria uma longa balaustrada de cédro lavrado--onde uma cancella toda de prata, aberta e lassa nos seus gonzos, se movia em silencio, faiscando.
--É aqui, disse o erudito Topsius, que se dão a beber as aguas amargas ás mulheres adulteras... E agora, D. Raposo, ahi tem Israel adorando o seu Deus.
Era emfim o Adro Sacerdotal! E eu estremeci diante d'aquelle Santuario entre todos monstruoso e deslumbrante. Ao meio do vasto e claro terrado erguia-se, feito de enormes pedras negras, o altar dos Holocaustos: aos seus cantos enristavam-se quatro cornos de bronze; d'um pendiam grinaldas de lirios; d'outros fios de coraes; o outro pingava sangue. Da immensa grelha do altar subia uma fumaça avermelhada e lenta: e em redor apinhavam-se os Sacrificadores, descalços, todos de branco--com forquilhas de bronze nas mãos pallidas, espetos de prata, facas passadas nos cintos côr de céo... No afanoso, severo rumôr do ceremonial sacrosanto confundia-se o balar de cordeiros, o som argentino de pratos, o crepitar das lenhas, as pancadas surdas de malho, o cantar lento da agua em bacias de marmore, e o estridor das bozinas. Apesar dos aromaticos que ardiam em caçoulas, das longas ventarolas de folhas de palmeira com que os serventes agitavam o ar, eu puz o lenço na face, enjoado com esse cheiro molle de carne crua, de sangue, de gordura frita e de açafrão, que o Senhor reclamou a Moysés como o dom melhor a receber da Terra...
Ao fundo, bois enfeitados de flôres, vitellas brancas com os cornos dourados, sacudiam, mugindo e marrando, as cordas que os prendiam a fortes argolas de bronze: mais longe, sobre mesas de marmore, entre pedaços de gêlo, pousavam, vermelhas e sangrentas, grossas peças de carne, sobre que os levitas balançavam leques de pennas para afugentar os moscardos. De columnas rematadas por faiscantes globos de crystal, pendiam cordeiros mortos, que os Netenins, resguardados por aventaes de couro cobertos de textos sagrados, esfolavam com cutelos de prata: emquanto os victimarios de saião azul, retesando os braços, conduziam baldes d'onde trasbordavam e iam arrastando entranhas. Coroados por uma mitra redonda de metal, escravos idumeos constantemente limpavam as lages com esponjas: alguns vergavam sob mólhos de lenha; outros, agachados, sopravam fogareiros de pedra.
A cada momento algum velho Sacrificador, descalço, marchava para o altar, trazendo ao collo um anho tenro que não balava, contente e quente entre os dois braços nús: um tocador de lyra precedia-o: levitas atraz transportavam os jarros d'oleos aromaticos. Em frente á ara, rodeado de
Acolytos, o Sacrificador lançava sobre o cordeiro um punhado de sal; depois, psalmodiando, cortava-lhe uma pouca de lã entre os cornos. As bozinas resoavam; um grito d'animal ferido perdia-se no tumulto sacro; por cima das tiáras brancas duas mãos vermelhas erguiam-se ao ar sacudindo sangue; da grelha do altar resaltava, avivada pelos oleos e pela gordura, uma chamma d'alegria e de offerta; e o fumo avermelhado e lento ascendia serenamente ao azul, levando nos seus rolos o cheiro que deleita o Eterno.
--É um talho! murmurei eu, aturdido. É um talho! Topsius, doutor, vamos outra vez lá baixo ás mulherinhas...
O sabio olhou para o sol. Depois, gravemente, pousando-me no hombro a mão amiga: --É quasi a nona hora, D. Raposo!... E temos de ir fóra da Porta
Judiciaria, para além do Gareb, a um sitio agreste que se chama o
Calvario.
Empallideci. E pareceu-me que nenhuma vantagem espiritual obteria minha alma, nenhuma inesperada acquisição enriqueceria o saber de Topsius--por irmos contemplar no alto d'um morro, entre urzes, Jesus atado a um madeiro e soffrendo: era apenas um tormento para a nossa sensibilidade!
Mas, submisso, segui o meu sapiente amigo pela escadaria das Aguas, que leva ao largo lageado de basalto onde começam as primeiras casas d'Acra.
Visinhas do Santuario, habitadas por Sacerdotes, ellas ostentavam uma profusa devoção Paschal, em palmas, lampadas, alcatifas penduradas dos eirados: e algumas tinham os hombraes salpicados com o sangue fresco d'um anho.
Antes de penetrar n'uma sordida, andrajosa rua que se ia torcendo sob velhos toldes de esparto, voltei-me para o Templo: agora só via a immensa muralha de granito, com bastiões no alto, sombria e inderrubavel: e a arrogancia da sua força e da sua eternidade encheu de cólera o meu coração. Emquanto sobre uma collina de morte, destinada aos escravos, o homem de Galilêa, incomparavel amigo dos homens, arrefecia na sua cruz, e para sempre se apagava aquella pura voz de amor e d'espiritualidade--alli ficava o Templo que o matava, rutilante e triumphal, com o balar dos seus gados, o estridor dos seus sophismas, a usura sob os Porticos, o sangue sobre as Aras, a iniquidade do seu duro orgulho, a importunidade do seu perenne incenso... Então, com os dentes cerrados, mostrei o punho a Jehovah e á sua cidadella, e bradei: --Arrasados sejaes!
* * * * *
Não descerrei mais os labios sêccos até chegarmos á estreita porta nas muralhas de Ezekiah, que os Romanos denominavam a Judiciaria. E logo ahi estremeci, vendo collado n'um pilar de pedra um pergaminho com três sentenças transcriptas--«a d'um ladrão de Bettebara, a d'um assassino de
Emath, e a de Jesus de Galilêa!» O escriba do Sanhedrin, que conforme á
Lei alli vigiára para recolher, até que os condemnados passassem, algum inesperado testemunho d'inculpabilidade, ia partir, com os seus tabularios debaixo do braço, depois de traçar sobre cada sentença um grosso risco vermelho. E aquelle córte final, côr de sangue, passado á pressa por um escripturario que recolhia contente á sua morada, a comer o seu anho, commoveu-me mais que a melancolia dos Livros Santos.
Sebes de cactos em flôr bordavam a estrada; e para além eram verdes outeiros onde os muros baixos de pedra solta, vestidos de rosas bravas, delimitavam os hortos. Tudo alli resplandecia, festivo e pacifico. Á sombra das figueiras, debaixo dos pilares das parreiras, as mulheres, encruzadas em tapetes, fiavam o linho ou atavam os ramos d'alfazema e manjerona que se offerecem na Paschoa: e crianças em redor, com o pescoço carregado d'amuletos de coral, balouçavam-se em cordas, atiravam á setta... Pela estrada descia uma fila de lentos dromedarios levando mercadorias para Joppé: dois homens robustos recolhiam da caça, com altos coturnos vermelhos cobertos de pó, a aljava batendo-lhe a côxa, uma rede atirada para as costas, e os braços carregados de perdizes e d'abutres amarrados pelas patas: e diante de nós caminhava devagar, apoiado ao hombro d'uma criança que o conduzia, um velho pobre, de longas barbas, trazendo presa ao cinto como um bardo a lyra grega de cinco cordas, e sobre a fronte uma corôa de louro...
Ao fundo d'um muro, coberto de ramos de amendoeiras, diante d'uma cancella pintada de vermelho, dois servos esperavam, sentados n'um tronco cahido, com os olhos baixos e as mãos sobre os joelhos. Topsius parou, puxou-me o albornoz: --É este o horto de José de Ramatha, um amigo de Jesus, membro do
Sanhedrin, homem d'espirito inquieto, que se inclina para os Essenios...
E justamente, ahi vem Gad!
Do fundo do horto, com effeito, por uma rua de murta e rosas, Gad descia correndo com uma trouxa de linho e um cabaz de vime enfiados n'um pau.
Parámos.
--O Rabbi? gritou-lhe o alto Historiador, transpondo a cancella.
O Essenio entregou a um dos escravos a trouxa, e o cesto que estava cheio de myrrha e d'hervas aromaticas; e ficou diante de nós um momento, tremulo, suffocado, com a mão fortemente pousada sobre o coração para lhe serenar a anciedade.
--Soffreu muito! murmurou, por fim. Soffreu quando lhe trespassaram as mãos... Mais ainda ao erguer da cruz... E repelliu primeiro o vinho de
Misericordia, que lhe daria a inconsciencia... O Rabbi queria entrar com a alma clara na morte por que chamára!... Mas José de Ramatha,
Nicodemus, estavam lá vigiando. Ambos lhe lembraram as coisas promettidas uma noite em Bethania... O Rabbi então tomou a malga das mãos da mulher de Rosmophin, e bebeu.
E o Essenio, pregados em Topsius os olhos reluzentes, como para cravar bem seguramente na sua alma uma recommendação suprema, recuou um passo e disse com uma grave lentidão: --Á noite, depois da ceia, no eirado de Gamaliel...
E outra vez desappareceu na rua fresca do horto, entre a murta e as roseiras. Topsius deixou logo a estrada de Joppé: e estugando o passo por um atalho agreste, onde o meu largo albornoz se prendia aos espinhos das piteiras, explicava-me que a bebida de Misericordia--era um vinho forte de Tharses, com succo de papoulas e especiarias, fornecido por uma confraria de mulheres devotas para insensibilizar os suppliciados... Mas eu mal escutava aquelle copioso espirito. No alto d'um aspero outeiro, todo de rocha e urze, avistára, destacando duramente no claro azul do céo liso, um montão de gente parada: e em meio d'ella sobrelevavam-se tres pontas grossas de madeiros e moviam-se, faiscando ao sol, elmos polidos de Legionarios. Turbado, encostei-me á beira do caminho, n'um penedo branco que escaldava. Mas vendo Topsius marchar, com a sabia serenidade de quem considera a Morte uma purificadora libertação das fórmas imperfeitas--não quiz ser menos forte, nem menos espiritual: arranquei o albornoz que me abafava, galguei intrepidamente a collina temerosa.
D'um lado cavava-se o Valle de Hinom, abrazado e livido, sem uma herva, sem uma sombra, juncado d'ossos, de carcassas, de cinzas. E diante de nós o môrro ascendia, com manchas leprosas de tojo negro, e a espaços furado por uma ponta de rocha polida e branca como um osso. O corrego, onde os nossos passos espantavam os lagartos, ia perder-se entre as ruinas d'um casebre de adobe: duas amendoeiras, mais tristes que plantas crescidas na fenda d'um sepulchro, erguiam ao lado a sua rama rala e sem flôr, onde cantavam asperamente cigarras. E na sombra tenue, quatro mulheres descalças, desgrenhadas, com rasgões de luto nas tunicas pobres, choravam como n'um funeral.
Uma, sem se mover, hirta contra um tronco, gemia surdamente sob a ponta do manto negro: outra, exhausta de lagrimas, jazia n'uma pedra, com a cabeça cahida nos joelhos, e os esplendidos cabellos louros desmanchados, alastrados até ao chão. Mas as outras duas deliravam, arranhadas, ensanguentadas, batendo desesperadamente nos peitos, cobrindo a face de terra; depois, lançando ao céo os braços nús, abalavam o môrro com gritos--«oh meu encanto, oh meu thesouro, oh meu sol!» E um cão, que farejava entre as ruinas, abria a guela, uivava tambem, sinistramente.
Espavorido, puxei a capa do douto Topsius--e cortámos pelas urzes até ao alto, onde se apinhavam, olhando e galrando, obreiros das officinas de
Gareb, serventes do Templo, vendilhões, e alguns d'esses sacerdotes miseraveis e em farrapos, que vivem de negromancia e d'esmolas. Diante da branca capa em que Topsius se togava, dois cambistas, com moedas d'ouro pendentes das orelhas, arredaram-se, murmurando bençãos servis.
Uma corda d'esparto deteve-nos, presa a postes cravados no chão para isolar o alto do môrro, e, no sitio em que ficáramos, enrolada a uma velha oliveira que tinha pendurados dos ramos escudos de Legionarios e um manto vermelho.
Então, ancioso, ergui os olhos... Ergui os olhos para a cruz mais alta, cravada com cunhas n'uma fenda de rocha. O Rabbi agonisava. E aquelle corpo que não era de marfim nem de prata, e que arquejava, vivo, quente, atado e pregado a um madeiro, com um pano velho na cinta, um travessão passado entre as pernas--encheu-me de terror e d'espanto... O sangue que manchára a madeira nova, ennegrecia-lhe as mãos, coalhado em torno aos cravos: os pés quasi tocavam o chão, amarrados n'uma grossa corda, rôxos e torcidos de dôr. A cabeça, ora escurecida por uma onda de sangue, ora mais livida que um marmore, rolava d'um hombro a outro dôcemente; e por entre os cabellos emmaranhados, que o suor empastára, os olhos esmoreciam, sumidos, apagados--parecendo levar com a sua luz para sempre toda a luz e toda a esperança da terra...
O centurião, sem manto, com os braços cruzados sobre a couraça de escamas, rondava gravemente junto á cruz do Rabbi, cravando por vezes os olhos duros na gente do Templo, cheia de rumores e de risos. E Topsius mostrou-me defronte, rente á corda, um homem cuja face amarella e triste quasi desapparecia entre as duas longas mechas negras de cabello que lhe desciam sobre o peito--e que abria e enrolava com impaciencia um pergaminho, ora espiando a marcha lenta do sol, ora fallando baixo a um escravo ao seu lado.
--É Joseph de Ramatha, segredou-me o douto Historiador. Vamos ter com elle, ouvir as coisas que convém saber...
Mas n'esse instante, d'entre o bando sordido dos servos do Templo e dos sacerdotes miseraveis que são nutridos pelos sobejos dos holocaustos, rompeu um ruido mais forte como o grasnar de corvos n'um alto. E um d'elles, colossal, esqualido, com costuras de facadas através da barba rala, atirou os braços para a cruz do Rabbi, e gritou n'uma baforada de vinho: --Tu que és forte, e querias destruir o Templo e as suas muralhas, porque não quebras ao menos o pau d'essa cruz?
Em torno estalaram risadas alvares. E outro, espalmando as mãos sobre o peito, curvado com infinito escarneo, saudava o Rabbi: --Herdeiro de David, oh meu principe, que te parece esse throno?
--Filho de Deus! Chama teu pai, vê se teu pai te vem salvar! rouquejava a meu lado um magro velho, que tremia e sacudia a barba, apoiado ao seu bordão.
Alguns vendilhões bestiaes apanhavam torrões seccos a que misturavam cuspo, para arremessar ao Rabbi: uma pedra por fim passou, resoou cavamente no madeiro. Então o Centurião correu, indignado; a folha da sua larga espada lampejou no ar; e o bando recuou blasphemando--emquanto alguns embrulhavam na ponta do saião os dedos que escorriam sangue.
Nós acercámo-nos de José de Ramatha. Mas o sombrio homem abalou bruscamente, esquivando a importunidade do sabio Topsius. E, magoados com a sua rudeza alli ficámos junto d'um tronco de oliveira secca, defronte das outras cruzes.
Os dois condemnados tinham acordado do primeiro desmaio, sob a frescura da aragem da tarde. Um, grosso, pelludo, com os olhos esbugalhados, o peito atirado para diante e as costellas a estalar, como se n'um esforço desesperado quizesse arrancar-se do madeiro--urrava sem descontinuar, medonhamente: o sangue pingava-lhe em gottas lentas dos pés negros, das mãos esgaçadas: e abandonado, sem affeição ou piedade que o assistissem, era como um lobo ferido que uiva e morre n'um brejo. O outro, delgado e louro, pendia sem um gemido, como uma haste de planta meio quebrada.
Defronte d'elle uma mulher macilenta e em farrapos, passando a cada instante o joelho sobre a corda, estendia-lhe nos braços uma criancinha núa, e gritava, já rouca: «Olha ainda, olha ainda!» As palpebras lividas não se moviam: um negro, que entrouxava as ferramentas da crucificação, ia empurral-a com brandura: ella emmudecia, apertava desesperadamente o filho para que lh'o não levassem tambem, batendo os dentes, tremendo toda: e a criancinha entre os farrapos procurava o seio magro.
Soldados, sentados no chão, desdobravam as tunicas dos suppliciados: outros, com o elmo enfiado no braço, limpavam o suor--ou por uma malga de ferro, a goles lentos, bebiam a posca. E em baixo, na poeira da estrada, sob o sol mais dôce, passava gente recolhendo pacificamente dos campos e dos hortos. Um velho picava as suas vaccas para o lado da porta de Genath: mulheres, cantando, carregavam lenha: um cavalleiro trotava, embrulhado n'um manto branco. Ás vezes os que atravessavam o caminho ou voltavam dos pomares de Gareb avistavam as tres cruzes erguidas: arregaçavam a tunica, subiam a collina devagar através das urzes. O rotulo da cruz do Rabbi, escripto em grego e em latim, causava logo assombro. «Rei dos Judeus»! Quem era esse? Dois moços, patricios e sadduceus, com brincos de perolas nas orelhas e bordaduras d'ouro nos borzeguins, interpellaram o Centurião, escandalisados. Porque escrevera o Pretor--«Rei dos Judeus»? Era aquelle, alli pregado na cruz, Caio
Tiberio? Só Tiberio era rei da Judêa! O Pretor quizera offender Israel!
Mas em verdade só ultrajava Cesar!...
Impassivel, o Centurião fallava a dois Legionarios que remexiam no chão em grossas barras de ferro. E a mulher que acompanhava os sadduceus, uma romana miudinha e morena, com fitas de purpura nos cabellos empoados d'azul, contemplava suavemente o Rabbi e aspirava o seu frasco de essencias--lamentando decerto aquelle moço, rei vencido, rei barbaro, que morria no poste dos escravos.
Cansado, fui sentar-me com Topsius n'uma pedra. Era perto da oitava hora judaica: o sol, sereno como um heroe que envelhece, descia para o mar por sobre as palmeiras de Bethania. Diante de nós o Gareb verdejava, coberto de jardins. Junto ás muralhas, no bairro novo de Bezetha, grandes panos vermelhos e azues seccavam em cordas ás portas das tinturarias; um lume vermelhejava no fundo d'uma forja; crianças corriam, brincando sobre a borda d'uma piscina. Adiante, no alto da torre Hippica, que estendia já a sua sombra sobre o valle de Hinom, soldados de pé na amurada apontavam a setta aos abutres voando no azul.
E para além, entre arvoredos, surgiam, frescos e rosados pela tarde, os eirados do palacio de Herodes.
Triste, com o espirito disperso, eu pensava no Egypto, nas nossas tendas, na vela que lá me esquecera ardendo, fumarenta e vermelha--quando avistei, subindo a collina devagar, apoiado ao hombro da criança que o conduzia, o velho que já cruzáramos na estrada de
Joppé, com uma lyra presa á cintura. Os seus passos arrastavam-se mais incertos, na fadiga d'uma jornada penosa; uma tristeza abatia-lhe sobre o peito a clara barba ondeante; e debaixo do manto côr de vinho, que lhe cobria a cabeça, as folhas da corôa de louro pendiam raras e murchas.
Topsius gritou-lhe: «Eh, Rapsodo!» E quando elle, tenteando as urzes do caminho, se acercou--o douto Historiador perguntou-lhe se das dôces
Ilhas do mar trazia algum canto novo. O velho ergueu a face entristecida; e muito nobremente murmurou que uma mocidade imperecivel sorri nos mais antigos cantos da Hellenia. Depois, tendo assentado a sandalia sobre uma pedra, tomou a lyra entre as mãos vagarosas; a criança, direita, com as pestanas baixas, pôz á bôca uma flauta de cana; e, no resplandor da tarde que envolvia e dourava Sião, o Rapsodo soltou um canto já tremulo, mas glorioso e repassado de adoração, como ante a ara d'um templo, n'uma praia da Ionia... E eu percebi que elle cantava os Deuses, a sua belleza, a sua actividade heroica. Dizia o Delphico, imberbe e côr d'ouro, afinando os pensamentos humanos pelo rythmo da sua cythara; Atheneia, armada e industriosa, guiando as mãos dos homens sobre os teares; Zeus, ancestral e sereno, dando a belleza ás raças, a ordem ás cidades; e acima de todos, sem fórma e esparso, o Fado, mais forte que todos!