Capítulo 3 - Parte 1
E assim se offertava, magnifica, com os seus grandes membros de marmore, a sua mitra fulva, lembrando os ritos de Astarté e d'Adonis, lasciva e pontifical...
Toquei no braço de Topsius, murmurei, pallido: --Caramba! Vou aos banhos!
Sêcco, impertigado na sua capa branca, elle volveu asperamente: --Espera-nos Gamaliel, filho de Simeon. E a sabedoria dos Rabbis lá disse que a mulher é o caminho da iniquidade!
E bruscamente penetrou n'uma lobrega viella, toda abobadada: as patas das egoas, ferindo as lages, acirraram contra nós uivos de cães, maldições de mendigos, amontoados juntos no escuro. Depois saltámos por uma brecha da antiga muralha de Ezekiah, passámos uma velha cisterna sêcca onde os lagartos dormiam: e trotando pela poeira solta d'uma longa rua, entre muros caiados que reluziam e portas besuntadas de alcatrão, parámos no alto diante d'uma entrada mais nobre, em arco, com uma grade baixa d'arame que a defendia dos escorpiões. Era a casa de Gamaliel.
No meio d'um vasto pateo ladrilhado, escaldando ao sol, um limoeiro toldava a agua clara d'um tanque. Em volta, sobre pilastras de marmore verde, corria uma varanda, silenciosa e fresca, d'onde pendia aqui e além um tapete da Assyria com flôres bordadas. Um puro azul brilhava no alto;--e ao canto, sob um alpendre, um negro atrellado por cordas como uma alimaria a uma barra de pau, calçado de ferraduras, vincado de cicatrizes, ia fazendo gemer e girar lentamente a grande mó de pedra do moinho domestico.
No escuro d'uma porta appareceu um homem obeso, sem barba, quasi tão amarello como a tunica lassa que o envolvia todo: tinha na mão uma vara de marfim e mal podia erguer as palpebras molles.
--Teu amo? gritou-lhe Topsius, desmontando.
--Entra, disse o homem n'uma voz fugidia e fina como um silvo de cobra.
Por uma escadaria rica de granito negro chegámos a um patamar--onde pousavam dois candelabros, espigados como os arbustos de que reproduziam, em bronze, o tronco sem folhas: e entre elles estava de pé, diante de nós, Gamaliel, filho de Simeon. Era muito alto, muito magro; e a barba solta, lustrosa, perfumada, enchia-lhe o peito, onde brilhava um sinete de coral pendurado d'uma fita escarlate. O seu turbante branco, entremeado de fios de perolas, descobria uma tira de pergaminho collada sobre a testa e cheia de textos sagrados: sob aquella alvura, os seus olhos encovados tinham um fulgor frio e duro. Uma longa tunica azul cobria-o até ás sandalias, orlada de compridas franjas que arrastavam: e cosidas ás mangas, enroladas nos pulsos, tinha ainda outras tiras de pergaminho onde negrejavam outras escripturas rituaes.
Topsius saudou-o á moda do Egypto, deixando cahir lentamente a mão até á joelheira da sua calça de lustrina. Gamaliel alargou os braços e murmurou, como psalmodiando: --Entrai, sêde bem vindos, comei e regosijai-vos...
E atraz de Gamaliel, pisando um chão sonoro de mosaico, penetrámos n'uma sala onde se achavam tres homens. Um, que se afastou da janella para nos acolher, era magnificamente bello, com longos cabellos castanhos, pendendo em anneis dôces em torno d'um pescoço forte, macio e branco como um marmore corinthio: na faxa negra que lhe apertava a tunica brilhava, com pedrarias, o punho d'ouro d'uma espada curta. O outro, calvo, gordo, com uma face balofa sem sobrancelhas, e tão livida que parecia coberta de farinha, ficára encruzado, embrulhado no seu manto côr de vinho, sobre um divan feito de correias--tendo uma almofada de purpura debaixo de cada braço; e o seu gesto d'acolhida foi mais distrahido e desdenhoso, do que a esmola que se atira ao estrangeiro.
Mas Topsius quasi se prostrára, a beijar os seus sapatos redondos de couro amarello, atados por fios de ouro--porque aquelle era o venerando
Osanias, da familia pontifical de Beothos, ainda do sangue real de
Aristobolus! O outro homem não o saudámos, nem elle tambem nos viu; estava agachado a um canto, com a face sumida no capuz d'uma tunica de linho mais alvo que a neve fresca, como mergulhado n'uma oração: e só de vez em quando se movia, para limpar as mãos lentamente a uma toalha da fina brancura da tunica, que lhe pendia d'uma corda, apertada á cintura, grossa e cheia de nós, como as que cingem os monges.
No emtanto, descalçando as luvas, eu examinava o tecto da sala, todo de cedro, com lavores retocados d'escarlate. O azul liso e lustroso das paredes era como a continuação d'aquelle céo d'Oriente, quente e puro, que resplandecia através da janella, onde se destacava, pendido do muro, na plena luz, um ramo solitario de madresilva. Sobre uma tripeça, incrustada de nacar, n'um incensador de bronze, fumegava uma resina aromatica.
Mas Gamaliel aproximára-se--e depois de ter olhado duramente as minhas botas de montar disse com lentidão: --A jornada do Jordão é longa, deveis vir esfomeados...
Murmurei polidamente uma recusa... E elle, grave como se recitasse um texto: --A hora do meio dia é a mais grata ao Senhor. Joseph disse a Benjamim: «tu comerás commigo ao meio dia.» Mas a alegria do hospede é tambem doce ao Muito-Alto, ao Muito-Forte... Estaes fracos, ides comer, para que a vossa alma me abençôe.
Bateu as palmas--um servo, com os cabellos apertados n'um diadema de metal, entrou trazendo um jarro cheio d'agua tepida que cheirava a rosa, onde eu purifiquei as mãos; outro offereceu bolos de mel sobre viçosas folhas de parra; outro verteu em taças de louça brilhante um vinho forte e negro d'Emaús. E para que o hospede não comesse só, Gamaliel partiu um gomo de romã, e com as palpebras cerradas levou á beira dos labios uma malga, onde boiavam pedaços de gêlo entre flôres de laranjeira.
--Pois agora, disse eu lambendo os dedos, tenho lastro até ao meio dia...
--Que a tua alma se regosije!
Accendi um cigarro, debrucei-me na janella. A casa de Gamaliel ficava n'um alto, decerto por traz do Templo, sobre a collina d'Ophel: alli o ar era tão dôce e macio, que só o sentir a sua caricia enchia de paz o coração. Por baixo corria a muralha nova erguida por Herodes o Grande; e para além floriam jardins e pomares dando sombra ao Valle da Fonte, e subindo até á collina, em que branquejava, calada e fresca, a aldeia de
Siloé. Por uma fenda, entre o monte do Escandalo e a collina dos
Tumulos, eu via resplandecer o mar Morto como uma chapa de prata: as montanhas de Moab ondulavam depois, suaves, d'um azul apenas mais denso que o do céo: e uma fórma branca, que parecia tremer na vibração da luz, devia ser a cidadella de Makeros sobre o seu rochedo, nos confins da
Idumêa. No terraço relvoso d'uma casa, ao pé das muralhas, uma figura immovel, abrigada sob um alto guarda-sol franjado de guisos, olhava como eu para esses longes da Arabia: e ao lado uma rapariga, ligeira e delgada, com os braços nús erguidos, chamava um bando de pombas que esvoaçavam em redor. A tunica aberta descobria-lhe o seiosinho cheio de seiva: e era tão linda, morena e dourada pelo sol, que eu ia, no silencio do ar, atirar-lhe um beijo... Mas recolhi, ouvindo Gamaliel que dizia, como o homem do manto côr d'açafrão no Monte das Oliveiras: «Sim, esta noite, em Bethania, Rabbi Jeschoua foi preso...»
Depois ajuntou, lento, com os olhos semi-cerrados, erguendo por entre os dedos os longos fios da barba: --Mas Poncius teve um escrupulo... Não quiz julgar um homem de Galilêa que é subdito de Antipas Herodes... E como o Tetrarcha veio á Paschoa a
Jerusalem, Poncius mandou o Rabbi á sua morada, a Bezetha...
Os doutos oculos de Topsius rebrilharam d'espanto.
--Coisa estranha! exclamou, abrindo os braços magros. Poncius escrupuloso, Poncius formalista! E desde quando respeita Poncius a judicatura do Tetrarcha? Quantos pobres galileus não fez elle matar sem licença do Tetrarcha, quando foi da revolta do aqueducto, quando espadas romanas, por ordem de Poncius, misturaram nos pateos do Templo o sangue dos homens de Nephtali ao sangue dos bois do Sacrificio!
Gamaliel murmurou sombriamente: --O Romano é cruel, mas escravo da legalidade.
Então Osanias, filho de Beothos, disse com um sorriso molle e sem dentes, agitando de leve, sobre a purpura das almofadas, as mãos resplandecentes de anneis: --Ou talvez seja que a mulher de Poncius proteja o Rabbi.
Gamaliel, surdamente, amaldiçoou o impudor da Romana. E como os oculos de Topsius interrogavam o venerando Osanias elle admirou-se que o Doutor ignorasse coisas tão conversadas no Templo, até pelos pastores que vem da Idumêa vender os cordeiros da Offrenda. Sempre que o Rabbi prégava no
Portico de Salomão, do lado da porta de Suza, Claudia vinha vêl-o do alto do terraço da Torre Antonia, só, envolta n'um véo negro... Menahem, que guardava no mez de Tebeth a escadaria dos Gentis, vira a mulher de
Poncius acenar com o véo ao Rabbi. E talvez Claudia, saciada de Capreia, de todos os cocheiros do Circo, de todos os histriões de Suburra, e dos brinquedos d'Atalanta que fizeram perder a voz ao cantor Accius, quizesse provar, vindo á Syria, a que sabiam os beijos d'um propheta de
Galilêa...
O homem vestido de linho alvo ergueu bruscamente a face, sacudindo o capuz de sobre os cabellos revoltos: o seu largo olhar azul fulgurou por toda a sala, n'um relampago, e apagou-se logo, sob a humildade grave das pestanas que se baixaram... Depois murmurou, lento e severo: --Osanias, o Rabbi é casto!
O velho riu, pesadamente. Casto, o Rabbi! E então essa galilêa de
Magdala, que vivera no bairro de Bezetha, e nas festas do Prurim se misturava com as prostitutas gregas ás portas do theatro d'Herodes?... E
Joanna, a mulher de Khosna, um dos cozinheiros d'Antipas? E outra d'Ephrain, Suzanna, que uma noite, a um gesto do Rabbi, a um aceno do seu desejo, deixára o tear, deixára os filhos, e com o peculio domestico, escondido na ponta do manto, o seguira até Cesarêa...?
--Oh Osanias! gritou, batendo palmas folgazãs, o homem formoso que tinha uma espada com pedrarias. Oh filho de Beothos, como tu conheces, uma a uma, as incontinencias d'um Rabbi galileu, filho das hervas do chão e mais miseravel que ellas! Nem que se tratasse d'Elius Lamma, nosso
Legado Imperial, que o Senhor cubra de males!
Os olhos d'Osanias, miudinhos como duas contas de vidro negro, reluziram d'agudeza e malicia.
--Oh Manassés! É para que vós outros, os patriotas, os puros herdeiros de Judas de Galaunitida, não nos accuseis sempre, a nós sadduceus, de saber só o que se passa no Atrio dos Sacerdotes e nos eirados da casa d'Hannan...
Uma tosse rouca reteve-o um espaço, suffocando, sob a ponta do manto em que vivamente se embuçára. Depois, mais quebrado, com laivos rôxos na face farinhenta: --Que em verdade foi justamente na casa d'Hannan que ouvimos isto a
Menahem, passeando todos debaixo da vinha... E mesmo nos contou elle que esse Rabbi de Galilêa chegava, no seu impudor, a tocar fêmeas pagãs, e outras mais impuras que o porco... Um levita viu-o, na estrada de
Sichem, erguer-se afogueado, de traz da borda d'um poço, com uma mulher da Samaria!
O homem coberto d'alvo linho ergueu-se d'um salto, todo direito e tremulo; e no grito que lhe escapou havia o horror de quem surprehende a profanação d'um altar!
Mas Gamaliel, com uma sêcca authoridade, cravou n'elle os olhos duros: --Oh Gad, aos trinta annos o Rabbi não é casado! Qual é o seu trabalho?
Onde está o campo que lavra? Alguem jámais conheceu a sua vinha?
Vagabundeia pelos caminhos, e vive do que lhe offertam essas mulheres dissolutas! E que outra coisa fazem esses moços sem barba de Sybaris e de Lesbos, que passeiam todo o dia na via Judiciaria, e que vós outros,
Essenios, abominaes de tal sorte, que correis a lavar as vestes n'uma cisterna se um d'elles roça por vós?... Tu ouviste Osanias, filho de
Beothos... Só Jehovah é grande! e em verdade te digo que quando Rabbi
Jeschoua, desprezando a Lei, dá á mulher adultera um perdão que tanto captiva os simples, cede á frouxidão da sua moral e não á abundancia da sua misericordia!
Com a face abrazada, e atirando os braços ao ar, Gad bradou: --Mas o Rabbi faz milagres!
E foi o formoso Manassés, com um sereno desdem, que respondeu ao
Essenio: --Socega, Gad, outros têm feito milagres! Simão de Samaria fez milagres.
Fêl-os Apollonius, e fêl-os Gabienus... E que são os prodigios do teu galileu comparados aos das filhas do Grão Sacerdote Anius, e aos do sabio Rabbi Chekiná?
E Osanias escarnecia a simplez de Gad: --Em verdade, que aprendeis vós outros, Essenios, no vosso oasis d'Engaddi? Milagres! Milagres até os pagãos os fazem! Vai a Alexandria, ao porto do Eunotos, para a direita, onde estão as fabricas de papyros, e vês lá Magos fazendo milagres por um drachma, que é o preço d'um dia de trabalho. Se o milagre prova a divindade, então é divino o peixe
Oannes, que tem barbatanas de nacar e préga nas margens do Euphrates, em noites de lua cheia!
Gad sorria com altivez e doçura. A sua indignação expirára sob a immensidão do seu desdem. Deu um passo vagaroso, depois outro,--e considerando, apiedadamente, aquelles homens enfatuados, endurecidos e cheios d'irrisão: --Vós dizeis, vós dizeis, vãos á maneira de moscardos que zumbem! Vós dizeis, e vós não o ouvistes! Em Galilêa, que é bem fertil, bem verde, quando elle fallava era como se corresse uma fonte de leite em terra de fome e seccura: até a luz parecia um bem maior! As aguas, no lago de
Tiberiade, amansavam para o escutar; e aos olhos das crianças que o rodeavam subia a gravidade d'uma fé já madura... Elle fallava: e como pombas que desdobram as azas e vôam da porta d'um santuario, nós viamos desprender-se dos seus labios, irem voar por sobre as nações do mundo toda a sorte de cousas nobres e santas, a Caridade, a Fraternidade, a
Justiça, a Misericordia, e as fórmas novas, bellas, divinamente bellas, do Amor!
A sua face resplandecia, enlevada para os céos, como seguindo o vôo d'essas novas divinas. Mas já do lado, Gamaliel, Doutor da Lei, o rebatia com uma dura auctoridade: --Que ha d'original e d'individual em todas essas idéas, homem? Pensas que o Rabbi as tirou da abundancia do seu coração? Está cheia d'ellas a nossa doutrina!... Queres ouvir fallar de Amor, de Caridade, de
Igualdade? Lê o livro de Jesus, filho de Sidrah... Tudo isso o prégou
Hillel, tudo isso o disse Schemaia! Cousas tão justas se encontram nos livros pagãos, que são, ao pé dos nossos, como o lôdo ao pé da agua pura de Siloeh!... Vós mesmos os Essenios tendes preceitos melhores!... Os
Rabbis de Babylonia, d'Alexandria, ensinaram sempre leis puras de
Justiça e de Igualdade! E ensinou-as o teu amigo Iokanan, a quem chamaes o Baptista, que lá acabou tão miseravelmente n'um ergastulo de
Makeros...
--Iokanan! exclamou Gad, estremecendo, como rudemente acordado da suavidade d'um sonho.
Os seus olhos brilhantes humedeceram. Tres vezes, curvado para o chão, com os braços abertos, repetiu o nome de Iokanan, como chamando alguem d'entre os mortos. Depois, com duas lagrimas rolando pela barba, murmurou muito baixo, n'uma confidencia que o enchia de terror e de fé: --Fui eu que subi a Makeros a buscar a cabeça do Baptista! E quando descia o caminho, com ella embrulhada no meu manto, ainda a outra,
Herodiade, estirada por sobre a muralha como a femea lasciva do tigre, rugia e me gritava injurias!... Tres dias e tres noites segui pelas estradas de Galilêa, levando a cabeça do justo pendurada pelos cabellos... Ás vezes, detraz d'um rochedo, um anjo surgia todo coberto de negro, abria as azas e punha-se a caminhar ao meu lado...
De novo a cabeça lhe pendeu, os seus duros joelhos resoaram nas lages: e ficou prostrado, orando anciosamente, com os braços estendidos em cruz.
Então Gamaliel adiantou-se para o sabio Topsius; e, mais direito que uma columna do Templo, com os cotovêlos collados á cinta, as mãos magras espalmadas para fóra: --Nós temos uma Lei, a nossa Lei é clara. Ella é a palavra do Senhor; e o Senhor disse: «Eu sou Jehovah, o eterno, o primeiro e o ultimo, o que não transmitte a outros nem o seu nome, nem a sua gloria: antes de mim não houve Deus algum, não existe Deus algum ao meu lado, não haverá Deus algum depois de mim...» Esta é a voz do Senhor. E o Senhor disse ainda: «Se pois entre vós apparecer um propheta, um visionario que faça milagres e queira introdizir outro Deus e chame os simples ao culto d'esse Deus,--esse propheta e visionario morrerá!» Esta é a Lei, esta é a voz do Senhor. Ora o Rabbi de Nazareth proclamou-se Deus em Galilêa, nas synagogas, nas ruas de Jerusalem, nos pateos santos do Templo... O
Rabbi deve morrer.
Mas o formoso Manassés, cujo languido olhar entenebrecia como um céo onde vai trovejar, interpoz-se entre o Doutor da Lei e o historiador dos
Herodes. E nobremente repelliu a letra cruel da Doutrina: --Não, não! Que importa que a lampada d'um sepulchro diga que é o sol?
Que importa que um homem abra os braços e grite que é um Deus? As nossas leis são suaves: por tão pouco não se vai buscar o carrasco ao seu covil a Gareb...
Eu, caridosso, ia louvar Manassés. Mas já elle bradava com violencia e fervor: --Todavia esse Rabbi de Galilêa deve decerto morrer, porque é um mau cidadão e um mau judeu! Não o ouvimos nós aconselhar que se pague o tributo a Cesar? O Rabbi estende a mão a Roma, o romano não é o seu inimigo. Ha tres annos que préga, e ninguem jámais lhe ouviu proclamar a necessidade santa de expulsar o Estrangeiro. Nós esperamos um Messias que traga uma espada e liberte Israel, e este, nescio e verboso, declara que traz só o pão da verdade! Quando ha um pretor romano em Jerusalem, quando são lanças romanas que velam ás portas do nosso Deus, a que vem esse visionario fallar do pão do céo e do vinho da verdade? A unica verdade util é que não deve haver romanos em Jerusalem!...
Osanias, inquieto, olhou a janella cheia de luz, por onde as ameaças de
Manassés se evolavam, vibrantes e livres. Gamaliel sorria friamente. E o discipulo ardente de Judas de Gamala clamava, arrebatado na sua paixão: --Oh! Em verdade vos digo, embalar as almas na esperança do reino do céo é fazer-lhes esquecer o dever forte para com o reino da terra, para esta terra d'Israel que está em ferros, e chora e não quer ser consolada! O
Rabbi é traidor á patria! O Rabbi deve morrer!
Tremulo, agarrára a espada: e o seu olhar alargava-se, com uma fulguração de revolta, como chamando avidamente os combates e a gloria dos supplicios.
Então Osanias ergueu-se apoiado a um bastão que rematava n'uma pinha d'ouro. Um penoso cuidado parecia agora anuvear a sua velhice leviana. E começou a dizer, de manso e tristemente, como quem através do
Enthusiasmo e da Doutrina aponta o mandado inilludivel da Necessidade: --Decerto, decerto, pouco importa que um visionario se diga Messias e filho de Deus, ameace destruir a Lei e destruir o Templo. O Templo e a
Lei podem bem sorrir e perdoar, certos da sua eternidade... Mas, oh
Manassés, as nossas leis são suaves; e não creio que se deva ir acordar o carrasco a Gareb, porque um Rabbi de Galilêa, que se lembra dos filhos de Judas de Gamala pregados na cruz, aconselha prudencia e malicia nas relações com o romano! Ó Manassés, robustas são as tuas mãos: mas pódes tu com ellas desviar a corrente do Jordão da terra de Canaan para a terra da Trakaunitida? Não. Nem pódes tambem impedir que as legiões de
Cesar, que cobriram as cidades da Grecia, venham cobrir o paiz de Judá!
Sabio e forte era Judas Macchabeo, e fez amizade com Roma... Porque Roma é sobre a terra como um grande vento da natureza; quando elle vem, o insensato offerece-lhe o peito e é derrubado; mas o homem prudente recolhe á sua morada e está quieto. Indomavel era a Galacia; Filippe e
Perseu tinham exercitos na planicie; Antiochus o Grande commandava cento e vinte elephantes e carros de guerra innumeraveis... Roma passou; d'elles que resta? Escravos, pagando tributos...