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A Relíquia

por Eça de Queiros

Capítulo 5 - Parte 2

Rinchão ia desposar uma menina Nogueira, filha da snr.^a Nogueira, rica beata de Beja e rica proprietaria de porcos: e elle «queria dar um presente catita á carola da velha, tudo coisinhas da Cartilha e do Santo

Sepulchro.» Arranjei-lhe um lindo cofre de reliquias (ahi colloquei o meu septuagesimo sexto prégo) ornado das minhas graciosas flôres seccas de Galilêa. Com a generosa pecunia que me deu o Rinchão paguei á

Pomba d'Ouro; e tomei prudentemente um quarto na casa d'hospedes do

Pitta, á travessa da Palha.

Assim, diminuia a minha prosperidade. O meu quarto agora era nos altos, no quinto andar, com um catre de ferro, e uma poltrona vetusta cujo miôlo de estopa fetida rompia entre a chita esgaçada. Como unico ornato pendia sobre a commoda, n'um caixilho enfeitado de borlas, uma lithographia de Christo crucificado, a côres; nuvens negras de tormenta rolavam-lhe aos pés; e os seus olhos claros, arregalados, seguiam e miravam todos os meus actos, os mais intimos, mesmo o delicado aparar dos callos.

Havia uma semana que, assim installado, farejava Lisboa á busca do pão incerto, com botas a que se começava a romper a sola, quando uma manhã o

André da Pomba d'Ouro me trouxe uma carta que lá fôra deixada na vespera, com a marca «urgente». O papel tinha tarja preta: o sinete era de lacre negro. Abri, tremendo. E vi a assignatura do Justino.

«Meu querido amigo. É meu penoso dever, que cumpro com lagrimas, participar-lhe que sua respeitavel tia e minha senhora inesperadamente succumbiu...»

Caramba! A velha rebentára!

Anciosamente saltei através das linhas tropeçando sobre os detalhes--«congestão dos pulmões... Sacramentos recebidos... Todos a chorar... O nosso Negrão!...» E empallidecendo, n'um suor que me alagava, avistei, ao fim da lauda, a nova medonha:--«do testamento da virtuosa senhora, consta que deixa a seu sobrinho Theodorico o oculo que se acha pendurado na sala de jantar...»

Desherdado!

Agarrei o chapéo, corri aos encontrões pelas ruas até ao cartorio do

Justino, a S. Paulo. Achei-o á banca, com uma gravata de lucto e a penna atraz da orelha, comendo fatias de vitella sobre um velho Diario de

Noticias.

--Com que, o oculo...?--balbuciei, esfalfado, arrimado á esquina d'uma estante.

--É verdade. O oculo!--murmurou elle, com a bôca atulhada.

Fui tombar, quasi desmaiado, sobre o canapé de couro. Elle offereceu-me vinho de Bucellas. Bebi um calice. E passando a mão tremula sobre a face livida: --Então dize lá, conta lá tudo, Justininho...

O Justino suspirou. A santa senhora, coitadinha, deixára-lhe duas inscripções de conto... E de resto dispersára no seu testamento as riquezas de G. Godinho do modo mais incoherente e mais perverso. O predio do campo de Sant'Anna e quarenta contos de inscripções para o

Senhor dos Passos da Graça. As acções da Companhia do Gaz, as melhores pratas, a casa de Linda-a-Pastora para o Casimiro, que já se não mexia, moribundo. Padre Pinheiro recebia um predio na rua do Arsenal. A deliciosa quinta do Mosteiro, com o seu pittoresco portão d'entrada onde se viam ainda as armas dos condes de Landoso, as inscripções de

Credito Publico, a mobilia do campo de Sant'Anna, o Christo d'ouro--para o padre Negrão. Tres contos de reis e o relogio para o Margaride. A

Vicencia tivera as roupas de cama. Eu--o oculo!

--Para vêr o resto de longe! considerou philosophicamente o Justino, dando estalinhos nos dedos.

Recolhi á travessa da Palha. E durante horas, em chinelas, com os olhos chammejantes, revolvi o desejo desesperado de ultrajar o cadaver da titi--cuspindo-lhe sobre o carão livido, esfuracando com uma bengala a podridão do seu ventre. Chamei contra ella todas as cóleras da Natureza.

Pedi ás arvores que recusassem sombra á sua sepultura! Pedi aos ventos que sobre ella soprassem todos os lixos da terra! Invoquei o Demonio: «Dou-te a minha alma se torturares incansavelmente a velha!» Gritei com os braços para as alturas: «Deus, se tens um céo, escorraça-a de lá!»

Planeei quebrar a pedradas o mausoleu que lhe erguessem... E decidi escrever communicados nos jornaes contando que ella se prostituia a um gallego, todas as tardes, no sótão, d'oculos negros e em fralda!

Esfalfado de a odiar--adormeci densamente.

Foi o Pitta que me acordou, ao anoitecer, entrando com um longo embrulho. Era o oculo. Mandava-m'o o Justino, com estas palavras amigas: «Ahi vai a modesta herança!»

Accendi uma vela. Com aspera amargura tomei o oculo, abri a vidraça--e olhei por elle, como da borda d'uma nau que vai perdida nas aguas.

Sim, muito sagazmente o affirmára Justino, a asquerosa Patrocinio deixava-me o oculo com rancoroso sarcasmo--para eu vêr através d'elle o resto da herança! E eu via, apesar da escura noite, nitidamente via o Senhor dos Passos sumindo os maços de inscripções dentro da sua tunica rôxa; o Casimiro tocando com as mãos moribundas os lavores das pratas, espalhadas sobre o seu leito; e o vilissimo Negrão, de casaco de cotim e galochas, passeando regalado á beira d'agua, sob os olmos do Mosteiro!

E eu alli, com o oculo!

Eu alli para sempre, na travessa da Palha, possuindo na algibeira d'umas calças com fundilhos setecentos e vinte--para me debater através da cidade e da vida! Com um urro atirei o oculo, que foi rolando até junto da chapeleira onde eu guardava o capacete de cortiça da minha jornada em

Terra Santa. Alli estavam, esse capacete e esse oculo, emblemas das minhas duas existencias--a de esplendor e a de penuria! Havia mezes, com aquelle capacete na nuca, eu era o triumphante Raposo, herdeiro da snr.^a D. Patrocinio das Neves, remexendo ouro nas algibeiras, e sentindo em torno, perfumadas e á espera de que eu as colhesse, todas as flôres da Civilisação! E agora, com o oculo, eu era o pelintrissimo

Raposo de botas cambadas, sentindo em roda, negros e promptos a ferirem-me, todos os cardos da Vida... E tudo isto, porque? Porque um dia, na estalagem d'uma cidade da Asia, se tinham trocado dois embrulhos de papel pardo!

Não houvera jámais zombaria igual da Sorte! A uma tia beata, que odiava o amor como coisa suja e só esperava, para me deixar predios e pratas, que eu, desdenhando saias, lhe rebuscasse em Jerusalem uma reliquia--trazia a camisa de dormir d'uma luveira! E n'um impulso de caridade, destinado a captivar o céo, atirava como pingue esmola a uma pobre em farrapos, com o filho faminto chorando ao collo--um galho cheio d'espinhos!... Oh Deus, dize-me tu! Dize-me tu, oh Demonio! como se fez, como se fez esta troca de embrulhos--que é a tragedia da minha vida?

Elles eram semelhantes no papel, no formato, no nastro!... O da camisa jazia no fundo escuro do guarda-fato; o da reliquia campeava sobre a commoda, glorioso, entre dois castiçaes. E ninguem lhes tocára: nem o jocundo Potte; nem o erudito Topsius; nem eu! Ninguém com mãos humanas, mãos mortaes, ousára mover os dois embrulhos. Quem os movera então? Só alguem, com mãos invisiveis!

Sim, havia alguem, incorporeo, todo poderoso--que por odio trocára miraculosamente os espinhos em rendas, para que a titi me desherdasse e eu fosse precipitado para sempre nas Profundas Sociaes!

E quando assim esbravejava, esguedelhado--encontrei frigidamente cravados em mim e mais abertos, como gozando a derrota da minha vida, os olhos claros do Christo crucificado, dentro do seu caixilho com borlas...

--Foste tu! gritei, de repente illuminado e comprehendendo o prodigio.

Foste tu! Foste tu!

E, com os punhos fechados para elle, desafoguei fartamente os queixumes, os aggravos do meu coração: --Sim, foste tu, que transformaste ante os olhos devotos da titi a corôa de dôr da tua Lenda--na camisa suja da Mary!... E porque? Que te fiz eu?

Deus ingrato e variavel! Onde, quando, gozaste tu devoção mais perfeita?

Não acudia eu todos os domingos, vestido de preto, a ouvir as missas melhores que te offerta Lisboa? Não me atochava eu todas as sextas-feiras, para te agradar, de bacalhau e de azeite? Não gastava eu dias, no oratorio da titi, com os joelhos doridos, rosnando os terços da tua predilecção? Em que cartilhas houve rezas que eu não decorasse para ti? Em que jardins desabrocharam flôres com que eu não enfeitasse os teus altares?

E arrebatado, arrepiando os cabellos, repuxando as barbas, eu clamava ainda, tão perto da imagem que as baforadas da minha cólera lhe embaciavam o vidro: --Olha bem para mim!... Não te recordas de ter visto este rosto, estes pêllos, ha seculos, n'um atrio de marmore, sob um velario, onde julgava um Pretor de Roma? Talvez te não lembres! Tanto dista d'um Deus victorioso sobre o seu andor a um Rabbi de provincia amarrado com cordas!... Pois bem! N'esse dia de Nizam, em que não tinhas ainda confortaveis lugares no céo e na bemaventurança a distribuir aos teus fieis; n'esse dia, em que ainda te não tornáras para ninguem fonte de riqueza e esteio de poder; n'esse dia, em que a titi, e todos os que hoje se prostram a teus pés, te teriam apupado como os vendilhões do

Templo, os Phariseus e a populaça d'Acra; n'esse dia, em que os Soldados que hoje te escoltam com charangas, os Magistrados que hoje encarceram quem te desacate ou te renegue, os Proprietarios que hoje te prodigalisam ouro e festas d'egreja--se teriam juntado com as suas armas e os seus codigos e as suas bolsas, para obterem a tua morte como revolucionario, inimigo da Ordem, terror da Propriedade: n'esse dia, em que tu eras apenas uma Intelligencia creadora e uma Bondade activa, e portanto considerado pelos homens sérios como um perigo social--houve em

Jerusalem um coração que espontaneamente, sem engodo no céo, nem terror do inferno, estremeceu por ti. Foi o meu!... E agora persegues-me.

Porque?...

Subitamente, oh maravilha! do tosco caixilho com borlas irradiaram tremulos raios, côr de neve e côr d'ouro. O vidro abriu-se ao meio com o fragor faiscante de uma porta do céo. E de dentro o Christo no seu madeiro, sem despregar os braços, deslisou para mim serenamente, crescendo até ao estuque do tecto, mais bello em magestade e brilho que o sol ao sahir dos montes.

Com um berro cahi sobre os joelhos; bati a fronte apavorada no soalho. E então senti esparsamente pelo quarto, com um rumor manso de brisa entre jasmins, uma Voz repousada e suave: --Quando tu ias ao alto da Graça beijar no pé uma imagem--era para contar servilmente á titi a piedade com que deras o beijo: porque jámais houve oração nos teus labios, humildade no teu olhar--que não fosse para que a titi ficasse agradada no seu fervor de beata.

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