Capítulo 1 - Parte 2
Desafiei-o para as latrinas, ensanguentei-lhe lá a face toda, com um murro bestial. Fui temido. Fumei cigarros. O Chrispim sahira dos
Isidoros; eu ambicionava saber jogar a espada. E o meu alto amor pela
Vicencia desappareceu um dia, insensivelmente, como uma flôr que se perde na rua.
E os annos assim foram passando: pelas vesperas de Natal accendia-se um brazeiro no refeitorio, eu envergava o meu casacão forrado de baeta e ornado d'uma gola d'astrakan; depois chegavam as andorinhas aos beiraes do nosso telhado, e no oratorio da titi, em lugar de camelias, vinham braçadas dos primeiros cravos vermelhos perfumar os pés d'ouro de Jesus; depois era o tempo dos banhos de mar, e o padre Casimiro mandava á titi um gigo d'uvas da sua quinta de Torres... Eu comecei a estudar rhetorica.
* * * * *
Um dia o nosso bom procurador disse-me que eu não voltaria mais para os
Isidoros, indo acabar os meus preparatorios em Coimbra, na casa do dr.
Rôxo, lente de Theologia. Fizeram-me roupa branca. A titi deu-me n'um papel a oração que eu diariamente devia rezar a S. Luiz Gonzaga, padroeiro da mocidade estudiosa, para que elle conservasse em meu corpo a frescura da castidade, e na minha alma o medo do Senhor. O padre
Casimiro foi-me levar á cidade graciosa onde dormita Minerva.
Detestei logo o dr. Rôxo. Em sua casa soffri vida dura e claustral; e foi um ineffavel gosto quando, no meu primeiro anno de Direito, o desagradavel ecclesiastico morreu miseravelmente d'um anthraz. Passei então para a divertida hospedagem das Pimentas--e conheci logo, sem moderação, todas as independencias, e as fortes delicias da vida. Nunca mais rosnei a delambida oração a S. Luiz Gonzaga, nem dobrei o meu joelho viril diante de imagem benta que usasse aureola na nuca; embebedei-me com alarido nas Camellas; affirmei a minha robustez esmurrando sanguinolentamente um marcador do Trony; fartei a carne com saborosos amores no Terreiro da Herva; vadiei ao luar, ganindo fados; usava moca; e como a barba me vinha, basta e negra, aceitei com orgulho a alcunha de Raposão. Todos os quinze dias porém escrevia á titi, na minha boa letra, uma carta humilde e piedosa, onde lhe contava a severidade dos meus estudos, o recato dos meus habitos, as copiosas rezas e os rigidos jejuns, os sermões de que me nutria, os dôces desaggravos ao Coração de Jesus á tarde, na Sé, e as novenas com que consolava a minha alma em Santa-Cruz no remanso dos dias feriados...
Os mezes de verão em Lisboa eram depois dolorosos. Não podia sahir, mesmo a espontar o cabello, sem implorar da titi uma licença servil. Não ousava fumar ao café. Devia recolher virginalmente á noitinha: e antes de me deitar tinha de rezar com a velha um longo terço no oratorio. Eu proprio me condemnára a esta detestavel devoção!
--Tu lá nos estudos costumas fazer o teu terço? perguntára-me, com seccura, a titi.
E eu, sorrindo abjectamente: --Ora essa! É que nem posso adormecer sem ter rezado o meu rico terço!...
Aos domingos continuavam as partidas. O padre Pinheiro, mais triste, queixava-se agora do coração, e um pouco tambem da bexiga. E havia outro commensal, velho amigo do commendador Godinho, fiel visita das Neves, o
Margaride, o que fôra delegado em Vianna, depois juiz em Mangualde. Rico por morte de seu mano Abel, secretario da Camara Patriarchal, o doutor aposentára-se, farto dos autos, e vivia em ocio, lendo os periodicos, n'um predio seu na Praça da Figueira. Como conhecêra o papá, e muitas vezes o acompanhará ao Mosteiro, tratou-me logo com authoridade e por você.
Era um homem corpulento e solemne, já calvo, com um carão livido, onde destacavam as sobrancelhas cerradas, densas e negras como carvão. Raras vezes penetrava na sala da titi sem atirar, logo da porta, uma noticia pavorosa. «Então, não sabem? Um incendio medonho, na Baixa!» Apenas uma fumaraça n'uma chaminé. Mas o bom Margaride, em novo, n'um sombrio accesso d'imaginação, compuzera duas tragedias; e d'ahi lhe ficára este gosto morbido d'exagerar e d'impressionar. «Ninguem como eu, dizia elle, saborêa o grandioso...»
E, sempre que aterrava a titi e os sacerdotes, sorvia gravemente uma pitada.
Eu gostava do dr. Margaride. Camarada do papá em Vianna, muitas vezes lhe ouvira cantar, ao violão, a xacara do conde Ordonho. Tardes inteiras vagueára com elle poeticamente, pela beira da agua, no Mosteiro, quando a mamã fazia raminhos silvestres á sombra dos amieiros. E mandou-me as amendoas mal eu nasci, á noitinha, em sexta-feira de
Paixão. Além d'isso, mesmo na minha presença, elle gabava francamente á titi o meu intellecto, e a circumspecção dos meus modos.
--O nosso Theodorico, D. Patrocinio, é moço para deleitar uma tia... V.
exc.^a, minha rica senhora, tem aqui um Telemaco!
Eu córava, modesto.
Ora foi justamente passeando com elle no Rocio, n'um dia d'agosto, que eu conheci um parente nosso, afastado, primo do commendador G. Godinho.
O dr. Margaride apresentou-m'o, dizendo apenas:--«o Xavier, teu primo, moço de grandes dotes.» Era um homem enxovalhado, de bigode louro, que fôra galante e desbaratára furiosamente trinta contos, herdados de seu pai, dono d'uma cordoaria em Alcantara. O commendador G. Godinho, mezes antes de morrer da sua pneumonia, tinha-o recolhido por caridade á secretaria da Justiça, com vinte mil reis por mez. E o Xavier agora vivia com uma hespanhola chamada Carmen, e tres filhos d'ella, n'um casebre da rua da Fé.
Eu fui lá n'um domingo. Quasi não havia moveis; a bacia da cara, a unica, estava entalada no fundo rôto da palhinha d'uma cadeira. O Xavier toda a manhã deitára escarros de sangue pela bocca. E a Carmen, despenteada, em chinelas, arrastando uma bata de fustão manchada de vinho, embalava sorumbaticamente pelo quarto uma criança embrulhada n'um trapo e com a cabecinha coberta de feridas.
Immediatamente o Xavier, tratando-me por tu, fallou-me da tia
Patrocinio... Era a sua esperança, n'aquella sombria miseria, a tia
Patrocinio! Serva de Jesus, proprietaria de tantos predios, ella não podia deixar um parente, um Godinho, definhar-se alli n'aquelle casebre, sem lençoes, sem tabaco, com os filhos em redor, esfarrapados, a chorar por pão. Que custava á tia Patrocinio estabelecer-lhe, como já fizera o
Estado, uma mesadinha de vinte mil reis?
--Tu é que lhe devias fallar, Theodorico! Tu é que lhe devias dizer...
Olha essas crianças. Nem meias teem... Anda cá, Rodrigo, dize aqui ao tio Theodorico. Que comeste hoje ao almoço?... Um bocado de pão d'hontem! E sem manteiga, sem mais nada! E aqui está a nossa vida,
Theodorico! Olha que é duro, menino!
Enternecido, prometti fallar á titi.
Fallar á titi! Eu nem ousaria contar á titi que conhecia o Xavier, e que entrava n'esse casebre impuro onde havia uma hespanhola, emmagrecida no peccado.
E para que elles não percebessem o meu ignobil terror da titi, não voltei á rua da Fé.
No meado de setembro, no dia da Natividade de Nossa Senhora, soube pelo dr. Barroso que o primo Xavier, quasi a morrer, me queria fallar em segredo.
Fui lá, de tarde, contrariado. Na escada cheirava a febre. A Concha, na cozinha, conversava por entre soluços com outra hespanhola, magrita, de mantilha preta e corpetesinho triste de setim côr de cereja. Os pequenos, no chão, rapavam um tacho d'açorda. E na alcova o Xavier, enrodilhado n'um cobertor, com a bacia da cara ao lado, cheia de escarros de sangue, tossia, despedaçadamente: --És tu, rapaz?
--Então que é isso, Xavier?
Elle exprimiu, n'um termo obsceno, que estava perdido. E estirando-se de costas, com um brilho secco nos olhos, fallou-me logo da titi.
Escrevera-lhe uma carta linda, de rachar o coração: a fera não respondera. E, agora, ia mandar para o Jornal de Noticias um annuncio, a pedir uma esmola, assignando «Xavier Godinho, primo do rico commendador G. Godinho.» Queria vêr se D. Patrocinio das Neves deixaria um parente, um Godinho, mendigar assim, publicamente, na pagina d'um jornal.
--Mas é necessario que tu me ajudes, rapaz, que a enterneças! Quando ella lêr o annuncio, conta-lhe esta miseria! Desperta-lhe o brio.
Dize-lhe que é uma vergonha vêr morrer ao abandono um parente, um
Godinho. Dize-lhe que já se rosna! Olha, se hoje pude tomar um caldo, é que essa rapariga, a Lolita, que está em casa da Benta Bexigosa, nos trouxe ahi quatro corôas... Vê tu a que eu cheguei!
Ergui-me, commovido.
--Conta commigo, Xavier.
--Olha, se tens ahi cinco tostões que te não façam falta, dá-os á
Concha.
Dei-lh'os a elle: e sahi, jurando-lhe que ia fallar á titi, solemnemente, em nome dos Godinhos e em nome de Jesus!
Depois do almoço, ao outro dia, a titi, de palito na bocca, e vagarosa, desdobrou o Jornal de Noticias. E decerto achou logo o annuncio do
Xavier, porque ficou longo tempo fitando o canto da terceira pagina onde elle negrejava, afflictivo, vergonhoso, medonho.
Então pareceu-me vêr, voltados para mim, lá do fundo nú do casebre, os olhos afflictos do Xavier; a face amarella da Concha, lavada de lagrimas; as pobres mãosinhas dos pequenos, magras, á espera da côdea de pão... E todos aquelles desgraçados anciavam pelas palavras que eu ia lançar á titi, fortes, tocantes, que os deviam salvar, e dar-lhes o primeiro pedaço de carne d'aquelle verão de miseria. Abri os labios. Mas já a titi, recostando-se na cadeira, rosnava com um sorrisinho feroz: --Que se aguente... É o que succede a quem não tem temor de Deus e se mette com bebedas... Não tivesse comido tudo em relaxações... Cá para mim, homem perdido com saias, homem que anda atraz de saias, acabou...
Não tem o perdão de Deus, nem tem o meu! Que padeça, que padeça, que tambem Nosso Senhor Jesus Christo padeceu!
Baixei a cabeça, murmurei: --E ainda nós não padecemos bastante... Tem a titi razão. Que se não mettesse com saias!
Ella ergueu-se, deu as graças ao Senhor. Eu fui para o meu quarto, fechei-me lá, a tremer, sentindo ainda regeladas e ameaçadoras, as palavras da titi, para quem os homens «acabavam quando se mettiam com saias.» Tambem eu me mettera com saias, em Coimbra, no Terreiro da
Herva! Alli, no meu bahú, tinha eu documentos do meu peccado, a photographia da Thereza dos Quinze, uma fita de sêda, e uma carta d'ella, a mais dôce, em que me chamava «unico affecto da sua alma» e me pedia dezoito tostões!