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A Relíquia

por Eça de Queiros

Capítulo 1 - Parte 2

Carne--para os vituperar, com odio: atirava então o novello de linha para cima da mesa, espetando-lhe raivosamente as agulhas de meia--como se trespassasse alli, tornando-o para sempre frio, o vasto e inquieto coração dos homens. E quasi todos os dias, com os dentes rilhados, repetia (referindo-se a mim) que se uma pessoa do seu sangue, e que comesse o seu pão, andasse atraz de saias, ou se désse a relaxações, havia d'ir para a rua, escorraçado a vassoura, como um cão.

Por isso agora as minhas precauções eram tão apuradas que, para evitar me ficasse na roupa ou na pelle o delicioso cheiro da Adelia, eu trazia na algibeira bocados soltos d'incenso. Antes de galgar a triste escadaria de casa, penetrava subtilmente na cavalhariça deserta, ao fundo do pateo; queimava no tampo d'uma barrica vazia um pedaço da devota resina; e alli me demorava, expondo ao aroma purificador as abas do jaquetão e as minhas barbas viris... Depois subia; e tinha a satisfação de vêr logo a titi farejar, regalada: --Jesus, que rico cheirinho a igreja!

Modesto, e com um suspiro, eu murmurava: --Sou eu, titi...

Além d'isso, para melhor a persuadir «da minha indifferença por saias,» colloquei um dia, no soalho do corredor, como perdida, uma carta com sêllo--certo que a religiosa D. Patrocinio, minha senhora e tia, a abriria logo, vorazmente. E abriu, e gostou. Era escripta por mim a um condiscipulo d'Arrayollos; e dizia, em letra nobre, estas cousas edificantes: «Saberás que fiquei de mal com o Simões, o de philosophia, por elle me ter convidado a ir a uma casa deshonesta. Não admitto d'estas offensas. Tu lembras-te bem como já em Coimbra eu detestava taes relaxações. E parece-me ser uma grandissima cavalgadura aquelle que, por causa d'uma distracção que é fogo-viste-linguiça, se arrisca a penar, por todos os seculos e seculos, amen, nas fogueiras de Satanaz, salvo seja! Ora n'uma d'essas refinadissimas asneiras não é capaz de cahir o teu do C.--Raposo.»

A titi leu, a titi gostou. E agora eu vestia a minha casaca, dizia-lhe que ia ouvir a Norma, beijava com unção os ossos dos seus dedos;--e corria, ao largo dos Caldas, á alcova da Adelia, a afundar-me perdidamente nas beatitudes do Peccado. Alli, á meia luz que dava através da porta envidraçada o candieiro de petroline da sala, os cortinados de cambraia e as saias dependuradas tomavam brancuras celestes de nuvem; o cheiro dos pós d'arroz excedia em doçura o olor dos junquilhos mysticos; eu estava no céo, eu era S. Theodorico; e sobre os hombros nús da minha amada desenrolavam-se as madeixas do seu cabello negro, forte e duro como a cauda d'um corcel de guerra.

N'uma d'essas noites, eu sahia d'uma confeitaria do Rocio, de comprar trouxas d'ovos para levar á minha Adelia--quando encontrei o dr.

Margaride que me annunciou, depois do seu abraço paternal, que ia a S.

Carlos vêr o Propheta.

--E você, vejo-o de casaca, naturalmente tambem vem...

Fiquei varado. Com effeito vestira a casaca, dissera á titi que ia gozar o Propheta, opera de tanta virtude como uma santa instrumental d'igreja... E agora tinha de soffrer o Propheta, deveras, entalado n'uma cadeira da Geral, roçando o joelho do douto magistrado--em vez de preguiçar n'um colchão amoroso, vendo a minha deusa, em camisa, comer o seu docinho d'ovos.

--Sim, com effeito, tambem eu ia d'aqui para o Propheta, murmurei aniquilado. Diz que é uma musicasinha de muita virtude... A titi gostou muito que eu viesse.

Com o meu inutil cartucho de trouxas d'ovos, lá fui subindo, melancolicamente, ao lado do dr. Margaride, a rua Nova do Carmo.

Occupamos as nossas cadeiras. E na sala resplandecente, branca e com tons d'ouro, eu pensava saudosamente na alcova sombria da Adelia, e no desalinho das suas saias--quando reparei que d'uma friza ao lado uma senhora loura e madura, uma Ceres outonal, vestida de sêda côr de palha, voltava para mim, a cada dôce arcada das rebecas, os seus olhos claros e sérios.

Perguntei logo ao dr. Margaride se conhecia aquella dama «que eu costumava encontrar ás sextas na igreja da Graça, visitando o Senhor dos

Passos, com uma devoção, um fervor...» --O sujeito que está por traz, a abrir a bocca, é o visconde de Souto

Santos. E ella ou é a mulher, a viscondessa de Souto Santos, ou a cunhada, a viscondessa de Villar-o-Velho...

Á sahida, a viscondessa (de Souto Santos ou de Villar-o-Velho) ficou um momento á porta esperando a sua carruagem, embrulhada n'uma capa branca que uma pennugem orlava, delicadamente; a sua cabeça pareceu-me mais altiva, incapaz de rolar, tonta e pallida, n'um travesseiro d'amor; a cauda côr de palha alastrava-se sobre as lages; era esplendida, era viscondessa; e outra vez me procuraram, me trespassaram os seus olhos claros e sérios.

A noite estava estrellada. E, descendo o Chiado em silencio ao lado do dr. Margaride, eu pensava que, quando todo o ouro da titi fosse meu e dourasse a minha pessoa, eu poderia então conhecer uma viscondessa de

Souto Santos ou de Villar-o-Velho, não na sua friza, mas na minha alcova, já cahida a grande capa branca, despidas já as sêdas côr de palha, alva só do brilho da sua nudez, e fazendo-se pequenina entre os meus braços... Ai, quando chegaria a hora, dôce entre todas, de morrer a titi?

--Quer você vir tomar o seu chá ao Martinho? perguntou-me o dr.

Margaride ao desembocarmos no Rocio. Não sei se você conhece a torrada do Martinho... É a melhor torrada de Lisboa.

No Martinho, já silencioso, o gaz ia adormecendo entre os espelhos baços; e havia apenas n'uma mesa do fundo um moço triste, com a cabeça enterrada entre os punhos diante d'um capilé.

O Margaride encommendou o chá--e vendo-me olhar com inquietação os ponteiros do relogio, affirmou-me que eu chegaria a casa ainda a horas de fazer a minha tocante devoção com a titi.

--A titi agora, disse eu, não se importa que eu esteja até mais tarde...

A titi agora louvado seja Deus, tem mais confiança em mim.

--E você merece-o... Faz-lhe a vontade, é sisudo... Ella pouco a pouco tem-lhe ganho amizade, segundo me diz o Casimiro...

Então lembrei-me da velha affeição que ligava o dr. Margaride ao padre

Casimiro, procurador da tia Patrocinio e seu zeloso confessor. E, arrebatando a opportunidade, dei um leve suspiro, abri o meu coração ao magistrado, largamente, como a um pai.

--É verdade, a titi tem-me amizade... Mas acredite v. exc.^a, dr.

Margaride, que o meu futuro inquieta-me ás vezes... Olhe que tenho pensado mesmo em ir a um concurso para delegado. Até já indaguei se seria difficil entrar como despachante na alfandega. Porque emfim a titi é rica, é muito rica; eu sou seu sobrinho, unico parente, unico herdeiro; mas...

E olhei anciosamente para o dr. Margaride, que, pelo loquaz padre

Casimiro, conhecia talvez o testamento da titi... O silencio grave em que elle ficou, com as mãos cruzadas sobre a mesa, pareceu-me sinistro: e n'esse instante o criado trouxe a bandeja do chá, sorrindo, e felicitando o magistrado por o vêr melhor do seu catarrho.

--Deliciosa torrada! murmurou o doutor.

--Excellente torrada! suspirei eu cortezmente.

De vez em quando o dr. Margaride esfuracava um queixal; depois limpava a face, os dedos; e recomeçava a mastigar devagar, com delicadeza e com religião.

Eu arrisquei outra palavra timida.

--A titi, é verdade, tem-me amizade...

--A titi tem-lhe amizade, atalhou com a bocca cheia o magistrado, e você é o seu unico parente... Mas a questão é outra, Theodorico. É que você tem um rival.

--Rebento-o! gritei eu, irresistivelmente, com os olhos em chammas, esmurrando o marmore da mesa.

O moço triste, lá ao fundo, ergueu a face de cima do seu capilé. E o dr.

Margaride reprovou com severidade a minha violencia.

--Essa expressão é impropria d'um cavalheiro, e d'um moço comedido. Em geral não se rebenta ninguem... E além d'isso o seu rival não é outro,

Theodorico, senão Nosso Senhor Jesus Christo!

Nosso Senhor Jesus Christo? E só comprehendi, quando o esclarecido jurisconsulto, já mais calmo, me revelou que a titi, ainda no ultimo anno da minha formatura, tencionava deixar a sua fortuna, terras e predios, a Irmandades da sua sympathia e a padres da sua devoção.

--Estou perdido! murmurei.

Os meus olhos, casualmente, encontraram, lá ao fundo, o moço triste diante do seu capilé. E pareceu-me que elle se assemelhava a mim como um irmão, que era eu proprio, Theodorico, já desherdado, sordido, com as botas cambadas, vindo alli ruminar as dôres da minha vida, á noite, diante d'um capilé.

Mas o dr. Margaride acabára a torrada. E estendendo regaladamente as pernas, consolou-me, de palito na bocca, affavel e perspicaz.

--Nem tudo está perdido, Theodorico. Não me parece que esteja tudo perdido... É possivel que a senhora sua tia tenha mudado d'idéa... Você é bem comportado, amima-a, lê-lhe o jornal, reza o terço com ella...

Tudo isto influe. Que é necessario dizel-o, o rival é forte!

Eu gemi: --É d'arromba!

--É forte. E devo acrescentar, digno de todo o respeito... Jesus Christo padeceu por nós, é religião do Estado, não ha senão curvar a cabeça...

Olhe, quer você a minha opinião? Pois ahi a tem, franca e sem rebuço, para lhe servir de guia... Você vem a herdar tudo, se D. Patrocinio, sua tia e minha senhora, se convencer que deixar-lhe a fortuna a você é como deixal-a á Santa Madre Igreja...

O magistrado pagou o chá, nobremente. Depois, na rua, já abafado no seu paletot, ainda me disse baixinho: --Com franqueza, que tal, a torrada?

--Não ha melhor torrada em Lisboa, dr. Margaride.

Elle apertou-me a mão com affecto--e separamo-nos, quando estava dando a meia noite no velho relogio do Carmo.

Estugando o passo pela rua Nova da Palma, eu sentia agora bem claramente, bem, amargamente, o erro da minha vida... Sim, o erro!

Porque até ahi, essa minha devoção complicada, com que eu procurára agradar á titi e ao seu ouro, fôra sempre regular, mas nunca fôra fervente. Que importava murmurar com correcção o terço diante de Nossa

Senhora do Rosario? Diante de Nossa Senhora em todas as suas encarnações, e bem em evidencia para commover a titi, eu devia mostrar habilmente uma alma ardendo em labaredas de amor beato, e um corpo pisado, penitente, ferido pelos picos dos cilicios... Até ahi a titi podia dizer com approvação: «É exemplar.» Era-me preciso, para herdar, que ella exclamasse um dia, babada, de mãos postas: «É santo!»

Sim! eu devia identificar-me tanto com as coisas ecclesiasticas e submergir me n'ellas de tal sorte, que a titi, pouco a pouco, não podesse distinguir-me claramente d'esse conjunto rançoso de cruzes, imagens, ripanços, opas, tochas, bentinhos, palmitos, andores, que era para ella a Religião e o Céo; e tomasse a minha voz pelo santo ciciar dos latins de missa; e a minha sobrecasaca preta lhe parecesse já salpicada d'estrellas, e diaphana como a tunica de bem-aventurança.

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