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A Relíquia

por Eça de Queiros

Capítulo 2 - Parte 1

Depois o Diabo disse-me as fogueiras humanas de

Molok, os Mysterios da Boa-Deusa em que os lirios se regavam com sangue, e os ardentes funeraes d'Adonis...

E parando, risonhamente: «o amigo nunca esteve no Egypto?» Eu disse-lhe que estivera e conhecera lá Maricocas. E o Diabo, cortez: «Não era

Maricocas, era Isis!» Quando a inundação chegava até Memphis, as aguas cobriam-se de barcas sagradas, Uma alegria heroica, subindo para o sol, fazia os homens iguaes aos deuses. Osiris, com os seus cornos de boi, montava Isis; e, entre o estridor das harpas de bronze, ouvia-se por todo o Nilo o rugido amoroso da Vacca divina.

Depois o Diabo contava-me como brilhavam, dôces e bellas, na Grecia as religiões da Natureza. Ahi tudo era branco, polido, puro, luminoso e sereno: uma harmonia sahia das fórmas dos marmores, da constituição das cidades, da eloquencia das academias e das destrezas dos athletas: por entre as ilhas da Ionia, fluctuando na molleza do mar mudo como cestas de flôres, as Nereidas dependuravam-se da borda dos navios, para ouvir as historias dos viajantes; as Musas, de pé, cantavam pelos valles: e a belleza de Venus era como uma condensação da belleza da Hellenia.

Mas apparecera este carpinteiro de Galilêa--e logo tudo acabára! A face humana tornava-se para sempre pallida, cheia de mortificação: uma cruz escura, esmagando a terra, seccava o esplendor das rosas, tirava o sabor aos beijos:--e era grata ao deus novo a fealdade das fórmas.

Julgando Lucifer entristecido, eu procurava consolal-o: «Deixe estar, ainda ha de haver no mundo muito orgulho, muita prostituição, muito sangue, muito furor! Não lamente as fogueiras de Molok. Ha de ter fogueiras de judeus.» E elle, espantado: «Eu? Uns ou outros, que me importa, Raposo? Elles passam, eu fico!»

Assim, despercebido, a conversar com Satanaz, achei-me no campo de

Sant'Anna. E tendo parado, emquanto elle desenvencilhava os cornos dos ramos d'uma das arvores--ouvi de repente ao meu lado um berro: «Olha o

Theodorico com o Porco-sujo!» Voltei-me. Era a titi! A titi, livida, terrivel, erguendo, para me espancar, o seu livro de missa! Coberto de suor--acordei.

Topsius gritava, á porta do beliche, alegremente: --Levante-se, Raposo! Estamos á vista da Palestina!

O Caimão parára; e no silencio eu sentia a agua roçando-lhe o costado, de leve, n'um murmurio de mansa caricia. Porque sonhára eu assim, ao avisinhar-me de Jerusalem, com os Deuses falsos, Jesus seu vencedor, e o

Demonio a todos rebelde? Que suprema revelação me preparava o Senhor?...

* * * * *

Desenrodilhei-me da manta; atordoado, sujo, sem largar o precioso embrulho da Mary, subi ao tombadilho, encolhido no meu jaquetão. Um ar fino e forte banhou-me deliciosamente, trazendo um aroma de serra e de flôr de laranjeira. O mar emmudecera, todo azul, na frescura da manhã. E ante meus olhos peccadores estendia-se a terra da Palestina, arenosa e baixa--com uma cidade escura, rodeada de pomares, toucada no alto de flechas de sol irradiando como os raios d'um resplendor de santo.

--Jaffa! gritou-me Topsius, sacudindo o seu cachimbo de louça. Ahi tem o

D. Raposo a mais antiga cidade da Asia, a velhissima Jeppo, anterior ao

Diluvio! Tire o barrete, saúde essa anciã dos tempos, cheia de lenda e d'historia... Foi aqui que o borrachissimo Noé construiu a sua Arca!

Cortejei, assombrado.

--Caramba! Ainda agora a gente chega, já lhe começam a apparecer coisas de religião!

E conservei-me descoberto--porque o Caimão, ao ancorar diante da Terra

Santa, tomára o recolhimento d'uma capella, cheia de piedosas occupações e d'unção. Um lazarista, de longa sotaina, passeava, com os olhos baixos, meditando o seu Breviario. Sumidas dentro dos capuzes negros de lustrina, duas Religiosas corriam os dedos pallidos pelas contas dos seus rosarios. Ao longo da amurada humida, peregrinos da Abyssinia, hirsutos padres gregos de Alexandria, pasmavam para o casario de Jaffa, aureolado de sol, como para a illuminação d'um sacrario. E a sineta á pôpa tilintava, na brisa salgada, com uma doçura devota de toque de missa...

Mas, vendo uma barcaça escura remar para o Caimão,--baixei depressa ao beliche a pôr o meu capacete de cortiça, calçar luvas pretas, para pisar decorosamente a terra do meu Salvador. Ao voltar, bem escovado, bem perfumado, achei a lancha atulhada. E descia, com alvoroço, atraz d'um franciscano barbudo--quando o amado embrulhinho da Mary escapou dos meus braços carinhosos, rolou em saltos pela escada como uma pella, raspou a borda do bote... Ia sumir-se nas aguas amargas! Dei um berro! Uma das

Religiosas apanhou-o, ligeira e cheia de misericordia.

--Agradecido, minha senhora! gritei, enfiado. É um pacotesinho de roupa!

Seja pelo sagrado amor de Maria!

Ella refugiou-se modestamente na sombra do seu capuz; e como eu me accommodára, mais longe, entre Topsius e o franciscano barbudo que cheirava a alho--a santa creatura guardou o embrulho sobre o seu puro regaço, deitou-lhe mesmo por cima as contas do seu rosario.

O arraes, empunhando o leme, bradou: «Allah é grande, larga!» Os arabes remaram cantando. O sol surgiu por traz de Jaffa. E eu, encostado ao meu guardachuva, contemplava a pudica religiosa que assim levava, ao collo, para a terra de castidade, a camisinha da Mary.

Era nova: e entre o bioco triste de lustrina preta parecia de marfim o seu rosto oval, onde as pestanas longas punham a sombra d'uma dolente melancolia. Os beiços tinham perdido toda a côr e todo o calor, para sempre inuteis, destinados sómente a beijar os pés arroxeados do cadaver d'um Deus. Comparada com Mary, rosa d'York aberta e sensual, perfumando

Alexandria--esta pendia como um lirio ainda fechado e já murcho na humidade d'uma capella. Ia certamente para algum hospicio da Terra

Santa. A vida para ella devia ser uma successão de chagas a cobrir de fios e de lençoes a estender por cima de faces mortas. E era decerto o medo do Senhor que a tornava assim tão pallida.

--Bem tola! murmurei eu.

Pobre e esteril creatura! Percebeu ella por acaso o que continha aquelle embrulho pardo? Sentiu ella subir de lá, e espalhar-se no escuro do seu capuz, um perfume estranho e enlanguecedor de baunilha e de pelle amorosa? A quentura do leito revolto, que ficára nas rendas da camisa, atravessou por acaso o papel e veio aquecer-lhe brandamente os joelhos?

Quem sabe! Durante um momento pareceu-me que uma gota de sangue novo lhe roseou a face desmaiada, e que debaixo do habito, onde brilhava uma cruz, o seu seio arfou, perturbado: mesmo julguei vêr lampejar, por entre as suas pestanas, um raio fugitivo e assustado procurando as minhas barbas cerradas e pretas... Mas foi só um relance. Outra vez, sob o capuz, o rosto recahiu na sua frialdade de marmore santo; e sobre o seio submettido a cruz pesou, ciumenta e de ferro. Ao seu lado, a outra religiosa, rochonchuda e de lunetas, sorria para o verde mar, sorria para o sabio Topsius--com um sorriso claro que sahia da paz do seu coração e lhe punha uma covinha no queixo.

Apenas saltámos na arêa da Palestina, corri a agradecer, de capacete na mão, garboso e palaciano.

--Minha irmã, estou muito penhorado... Grande desgosto se se perdesse o pacotesinho!... É de minha tia, uma encommenda para Jerusalem... Lá lhe contarei... A titi é muito respeitadora de coisas santas, pella-se pela caridade...

Muda, no refolho do seu capuz, ella estendeu-me o embrulhinho com a ponta dos dedos, debeis e mais transparentes que os d'uma Senhora da

Agonia. E os dois habitos negros sumiram-se, entre muros faiscantes de cal nova, n'uma viella em escadas onde apodrecia o cadaver d'um cão sob o vôo dos moscardos. Eu murmurei ainda: «Bem tola!»

Quando me voltei, Topsius, á sombra do seu guardasol, conversava com o homem prestante--que foi nosso Guia através das terras da Escriptura.

Era moço, moreno, espigado, com longos bigodes esvoaçando ao vento; usava jaqueta de velludilho e botas brancas de montar; as coronhas prateadas de duas pistolas, emergindo d'uma facha de lã negra, armavam-lhe heroicamente o peito forte: e trazia amarrado na cabeça, com as pontas e as franjas atiradas para traz, um lenço rutilante de sêda amarella. O seu nome era Paulo Potte, a sua patria o Montenegro: e toda a costa da Syria o conhecia pelo alegre Potte. Jesus, que alegre matalote! A alegria faiscava-lhe na pupilla azul-clara; a alegria cantava-lhe nos dentes incomparaveis; a alegria estremecia-lhe nas mãos buliçosas; a alegria resoava-lhe no bater dos tacões. Desde Ascalon até aos bazares de Damasco, desde o Carmelo até aos pomares d'Engadi--elle era o alegre Potte. Estendeu-me rasgadamente a bolsa de tabaco perfumado. Topsius maravilhou-se do seu saber biblico. Eu, com palmadas pelo ventre, gritei-lhe logo--meu gajo! E, depois de valentes apertos de mão, fomos para o Hotel de Josaphat firmar o nosso contracto, bebendo vasta cerveja.

O alegrissimo Potte depressa organisou a nossa caravana para a cidade do

Senhor. Um macho levava as bagagens; o arrieiro arabe, embrulhado n'um farrapo azul, era tão airoso e lindo que eu, irresistivelmente e sem cessar, procurava o negro afago do seu olhar de velludo; e, por luxo oriental, como escolta, seguia-nos um beduino, velho, catarrhoso, com o albornós de lã de camêlo listrado de cinzento, e uma forte lança ferrugenta toda enfeitada de borlas.

Guardei n'um alforge, desveladamente, o embrulhinho mimoso da camisinha da Mary: depois, já na sella, alongados os lóros do pernudo Topsius, o festivo Potte, floreando o chicote, lançou o antigo grito das Cruzadas e de Ricardo-Coração-de-Leão--Avante, a Jerusalem, Deus o quer! E a trote, com os charutos em brasa, sahimos de Jaffa pela porta do

Mercado--á hora em que suavemente tocava a vesperas no Hospicio dos

Padres Latinos.

Na luminosa meiguice da tarde, a estrada alongava-se através de jardins, hortas, pomares, laranjaes, palmeiraes, terra de Promissão, resplandecente e amavel. Por entre as sebes de myrtos perdia-se o fugidio cantar das aguas. O ar todo, d'uma doçura ineffavel, como para n'elle respirar melhor o povo eleito de Deus, era um derramado perfume de jasmins e limoeiros. O grave e pacifico chiar das noras ia adormecendo, ao fim do dia de rega, entre as romanzeiras em flôr. Alta e serena no azul, voava uma grande aguia.

Consolados, parámos n'uma fonte de marmore vermelho e negro, abrigada á sombra de sycomoros onde arrulhavam rôlas: ao lado erguia-se uma tenda, com um tapete na relva coberto d'uvas e de malgas de leite; e o velho de barbas brancas que a occupava saudou-nos em nome de Allah, com a nobreza de um patriarcha. A cerveja tinha-me feito sêde: foi uma rapariga bella como a antiga Rachel, que me deu a beber do seu cantaro de fórma biblica, sorrindo, com o seio descoberto, duas longas argolas d'ouro batendo-lhe a face morena--e um cordeirinho branco e familiar preso da ponta da tunica.

A tarde descia, muda e dourada, quando penetrámos na planicie de Saron, que a Biblia outr'ora encheu de rosas. No silencio tilintavam os chocalhos d'um rebanho de cabras negras, que um arabe ia pastoreando, nú como um S. João. Lá ao fundo, os montes sinistros da Judêa, tocados pelo sol obliquo que se afundava sobre o mar de Tyro, pareciam ainda formosos, azues e cheios de doçura de longe, como as illusões do peccado. Depois tudo escureceu. Duas estrellas de um resplendor infinito appareceram:--e começaram a caminhar adiante de nós para os lados de

Jerusalem.

* * * * *

O nosso quarto, no Hotel do Mediterraneo, em Jerusalem, com a sua abobada caiada de branco, o chão de tijolo, semelhava uma rigida cella de rude mosteiro. Mas, fronteiro á janella, um tabique delgado, revestido de papel de ramagens azues, dividia-o d'outro quarto, onde nós sentiamos uma voz fresca cantarolar a Ballada do rei de Thule: e ahi, exhalando conforto e civilisação, brilhava um guarda-roupa de mogno, que eu abri, como se abre um relicario, para encerrar o meu embrulhinho bemdito.

Os dois leitosinhos de ferro desappareciam sob as pregas virginaes dos cortinados de cambraia branca; e ao meio havia uma mesa de pinho, onde

Topsius estudava o mappa da Palestina, emquanto eu, de chinelos, passeava, limando as unhas. Era a devota sexta-feira em que a christandade commemora, enternecida, os SS. Martyres d'Evora. Nós tinhamos chegado n'essa tarde, sob uma chuva triste e miuda, á cidade do

Senhor: e de vez em quando Topsius, erguendo os oculos de cima das estradas de Galilêa, contemplava-me de braços cruzados e murmurava com amizade: --Ora está o amigo Raposo em Jerusalem!

Eu, parando ao espelho, dava um olhar ás barbas crescidas, á face crestada, e murmurava tambem, agradado: --É verdade, cá está o bello Raposo em Jerusalem!

E voltava, insaciado, a admirar através dos vidros baços a divina Sião.

Sob a chuva melancolica erguiam-se defronte as paredes brancas d'um convento silencioso, com as persianas verdes corridas, e duas enormes goteiras de zinco a cada esquina, uma escoando-se ruidosamente sobre uma viella deserta--a outra cahindo no chão molle d'uma horta plantada de couves, onde orneava um jumento. D'esse lado, era uma vastidão infindavel de telhados em terraço, lugubres e côr de lodo, com uma cupulasinha de tijolo em fórma de forno, e longas varas para seccar farrapos; e quasi todos decrepitos, desmantelados, miserrimos, pareciam desfazer-se na agua lenta que os alagava. Do outro elevava-se uma encosta atulhada de casebres sordidos, com verduras de quintal, esfumadas, arripiadas na nevoa humida: por entre elles, torcia-se uma viella esgalgada, em escadinhas, onde constantemente se cruzavam frades de alpercatas sob os seus guardachuvas, sombrios judeus de melenas cahidas, ou algum vagoroso beduino arregaçando o seu albornós... Por cima pesava o céo pardacento. E assim da minha janella me apparecia a velha Sião, a bem-edificada, brilhante de claridade, alegria da terra, e formosa entre as cidades.

--Isto é um horror, Topsius! Bem dizia o Alpedrinha! Isto é peor que

Braga, Topsius! E nem um passeio, nem um bilhar, nem um theatro! nada!

Olha que cidade para viver Nosso Senhor!

--Sim! No tempo d'elle era mais divertida, resmungou o meu sapiente amigo.

E logo me propôz que no domingo partissemos para as margens do

Jordão--onde o reclamavam os seus estudos sobre os Herodes. Ahi eu poderia ter deleites campestres--banhando-me nas aguas santas, atirando ás perdizes, entre as palmeiras de Jerichó. Accedi com gosto. E descemos a comer, chamados por uma sineta de convento, funeraria e badalando na sombra do corredor.

O refeitorio era tambem abobadado, com uma esteira d'esparto sobre o chão de ladrilho: e estavamos sós, o erudito investigador dos Herodes e eu, na mesa tristonha, adornada com flôres de papel em vasinhos rachados. Remexendo o macarrão de uma sopa dissaborida, murmurei, succumbido: «Jesus, Topsius, que grande massada!» Mas uma porta de vidraça ao fundo abriu-se de leve; e logo exclamei, arrebatado: «Caramba, Topsius, que grande mulher!»

Grande, em verdade! Solida e saudavel como eu; branca, da alvura do linho muito lavado, e picada de sardas; coroada por uma massa ardente de cabello ondeado e castanho; presa n'um vestido de sarja azul que os seios rijos quasi faziam estalar--ella entrou, derramando um fresco cheiro de sabão Windsor e d'agua de Colonia, e logo alumiou todo o refeitorio com o esplendor da sua carne e da sua mocidade... O fecundo

Topsius comparou-a á fortissima deusa Cybele.

Cybele sentou-se no topo da mesa, serena e soberba. Ao lado, fazendo ranger a cadeira com o peso dos seus amplos membros, accommodou-se um

Hercules tranquillo, calvo, de espessas barbas grisalhas--que, no mero gesto de desdobrar o guardanapo, revelou a omnipotencia do dinheiro e o envelhecido habito de mandar. Por um yes que ella murmurou comprehendi que era da terra de Maricocas. E lembrava-me a ingleza do senhor barão.

Ella collocára junto ao prato um livro aberto que me pareceu ser de versos: o barbaças, mastigando com o vagar magestoso d'um leão, folheava tambem, em silencio o seu Guia do Oriente. E eu esquecia o meu carneiro guisado, para contemplar devoradoramente cada uma das suas perfeições. De vez em quando ella erguia a franja cerrada das suas pestanas: eu esperava com ancia o dom d'esse claro e suave olhar; mas ella derramava-o pelos muros caiados, pelas flôres de papel, e deixava-o recahir, desinteressado e frio, sobre as paginas do seu poema.

Depois do café beijou a mão cabelluda do barbaças; e desappareceu pela porta envidraçada, levando comsigo o aroma, a luz, e a alegria de

Jerusalem. O Hercules accendeu morosamente o cachimbo; disse ao moço «que lhe mandasse o Ibrahim, o guia»; levantou-se, pesado e membrudo.

Junto á porta derrubou o guardachuva de Topsius, do venerabilissimo

Topsius, gloria da Allemanha, membro do Instituto imperial de

Excavações historicas; e passou--sem o erguer, nem sequer baixar o olho altivo.

--Irra, bruto! rosnei, a borbulhar de furor.

O meu douto amigo, com a sua cobardia social d'allemão disciplinado, apanhou o seu guardachuva e escovou-lhe o paninho, murmurando, já tremulo, que talvez «o barbaças fosse um duque...» --Qual duque! Para mim não ha duques! Eu sou Raposo, dos Raposos do

Alemtejo... Rachava-o!

Mas a tarde descia--e deviamos fazer a nossa visita reverente ao sepulchro do nosso Deus. Corri ao quarto, a ornar-me com o meu chapéo alto, como promettera á titi; e penetrava no corredor quando vi Cybele abrir a porta, junto da nossa porta, e sahir envolta n'uma capa cinzenta, com uma gorra onde alvejavam duas pennas de gaivota. O coração bateu-me no delirio de uma grande esperança. Assim, era ella que cantarolava a Ballada do rei de Thule! Assim, os nossos leitos estavam apenas separados pelo fino, fragil tabique coberto de ramarias azues!

Nem procurei as luvas pretas: desci n'um alvoroço, certo de que a ia encontrar no sepulchro de Jesus: e planeava já verrumar no tabique um buraco, por onde o meu olho namorado pudesse ir saciar-se nas bellezas do seu desalinho.

Ainda chovia, lugubremente. Apenas começámos a atolar-nos no enxurro da

Via-Dolorosa, entalada entre muros côr de lodo--chamei Potte para debaixo do meu guardachuva, perguntei-lhe se vira no hotel a minha forte e sardenta Cybele. O jucundo Potte já a admirára. E pelo Ibrahim, seu compadre dilecto, sabia que o barbaças era um escossez, negociante de cortumes...

--Ahi está, Topsius! gritei eu. Negociante de cortumes... Qual duque! É uma besta! Eu rachava-o! Em coisas de dignidade sou uma fera. Rachava-o!

A filha, a das bastas tranças, dizia Potte, tinha um nome radiante de pedra preciosa: chamava-se Ruby, rubim. Amava os cavallos, era arrojada; na Alta Galilêa, d'onde vinham, matára uma aguia negra...

--Ora aqui têm os cavalheiros a casa de Pilatos...

--Deixa lá a casa de Pilatos, homem! Importa-me bem com Pilatos! E então que diz mais o Ibrahim? Desembucha, Potte!

Alli a Via-Dolorosa estreitava-se, abobadada, como um corredor de

Catacumba. Dois mendigos chaguentos roíam cascas de melões, assapados na lama e grunhindo. Um cão uivava. E o risonho Potte contava-me que o

Ibrahim vira muitas vezes Miss Ruby enlevada na belleza dos homens da

Syria: de noite, á porta da tenda, emquanto o papá cervejava, ella dizia versos baixinho, olhando para a palpitação das estrellas. Eu pensava: «Caramba! tenho mulher!» --Ora aqui estão os cavalheiros diante do Santo Sepulchro...

Fechei o meu guardachuva. Ao fundo de um adro, de lages descolladas, erguia-se a fachada d'uma igreja, caduca, triste, abatida, com duas portas em arco: uma tapada já a pedregulho e cal, como superflua; a outra timidamente, medrosamente entreaberta. E aos flancos debeis d'este templo soturno manchado de tons de ruina, collavam-se duas construcções desmanteladas, do rito latino e do rito grego--como filhas apavoradas que a Morte alcançou, e que se refugiam ao seio da mãi, meia morta tambem e já fria.

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