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O Guarany: romance brazileiro, Vol. 1

por José Martiniano de Alencar

A ONÇA

Voltemos á casa. Loredano, depois do movimento de Pery, tinha acompanhado com os olhos a Alvaro, o qual seguio pela borda da esplanada para ver Cecilia que dirigia-se ao rio. Apenas o moço dobrou o angulo que formava o rochedo, o italiano desceu a ladeira rapidamente, e metteu-se pelo matto. Poucos instantes se tinhão passado quando Ruy Soeiro appareceu na esplanada, ganhou abaixa, e entranhou-se por sua vez na floresta. Bento Simões imitou-o com pequeno intervallo, e guiando-se por alguns talhos frescos que vio nas arvores, tomou na mesma direcção. O pateo ficou deserto. Decorreu cerca de meia hora: a casa tinha aberto todas as suas janellas para receber o ar puro da manhã, e as emanações saudaveis dos campos; um ligeiro pennacho de fumo alvadio coroava o tubo da chaminé, annunciando que os trabalhos caseiros havião começado. De repente ouvio-se um grito no interior da habitação; todas as portas e janellas do edificio fechárão-se com um estrepito e uma rapidez, como se um inimigo cahisse de assalto. Pela fresta de uma janella entre-aberta appareceu o rosto de D. Lauriana, pallida e com os cabellos sem estarem riçados, o que era uma cousa extraordinária. --Ayres Gomes!... O escudeiro!... Chamem Ayres Gomes! Que venha já! gritou a dama. A janella fechou-se de novo com o ferrolho. A personagem que já conhecemos pouco tardou, e atravessando a esplanada dirigio-se á casa, sem comprehender a razão porque áquella hora com sol alto ainda toda a habitação parecia dormir. --Fizestes-me chamar! disse elle chegando-se á janella. --Sim; estais armado? perguntou D. Lauriana por detraz da porta. --Tenho a minha espada; mas que novidade ha? A physionomia decomposta de D. Lauriana appareceu de novo na fresta da janella. --A onça! Ayres Gomes!... A onça!... O escudeiro deo um salto prodigioso julgando que o animal de que se fallava ia saltar-lhe ao cangote, e sacou da espada pondo-se em guarda. A dama vendo o movimento do escudeiro suppoz que a onça atirava-se á janella, e cahio de joelhos murmurando uma oração ao santo advogado contra as féras. Alguns minutos se passárão assim; D. Lauriana rezando; e Ayres Gomes rodando no pateo como um corropio, com receio de que a onça não o atacasse pelas costas, o que além de ser uma vergonha para um homem de armas da sua tempera, seria um pouco desagradavel para sua saude. Por fim, de pulo em pulo o escudeiro conseguio ganhar de novo a parede do edificio e encostar-se nella, o que o tranquillisou completa mente; pela frente não havia inimigo que o fizesse pestanejar. Então batendo com a folha da espada na hombreira da janella disse em voz alta: --Explicar-me-heis que onça é essa de que fallais, Sra. D. Lauriana; ou estou cego, ou não vejo aqui sombra de semelhante animal. --Estais bem certo disso, Ayres Gomes? disse a dama reerguendo-se. --Se estou certo! Assegurai-vos com os vossos proprios olhos. --É verdade! Mas em alguma parte ha de estar! --E porque quereis vós á fina força que aqui esteja uma onça, Sra. D. Lauriana? disse o escudeiro um tanto impacientado. --Pois não sabeis? exclamou a dama. --O que, senhora? --Aquelle bugre endemoninhado não se lembrou de trazer hontem uma onça viva para a casa! --Quem, o perro do cacique? --E quem mais senão aquelle cão tinhoso! --É das que elle costuma fazer! --Viu-se já uma cousa semelhante, Ayres Gomes! --Mas a culpa não tem elle! --Quero ver se o Sr. Mariz ainda teima em guardar essa boa joia. --E que é feito da féra, Sra. D. Lauriana? --Algures deve estar. Procurai-a, Ayres; corrão tudo, matem-n'a, e tragão-me aqui. --É dito e feito, respondeu o escudeiro correndo tanto quando lhe permittião as suas botas de couro de raposa. Com pouca demora, cerca de vinte aventureiros armados descêrão da esplanada. Ayres Gomes marchava na frente com um enorme chuço na mão direita, a espada na mão esquerda, e uma faca atravessada nos dentes. Depois de percorrerem quasi todo o valle e baterem o arvoredo, voltavão, quando o escudeiro estacou de repente e gritou: --Eil-a, rapazes! Fogo antes que faça o pulo! Com effeito, por entre a ramagem das arvores via-se a pelle negra e marchetada do tigre, e os olhos felinos que brilha vão com o seu reflexo pallido. Os aventureiros levarão o mosquete á face, mas no momento de puxarem o gatilho, largárão todos uma risada homerica, e abaixarão as armas. --Que é lá isso? Tem medo? E o destemido escudeiro sem se importar com os outros mergulhou por sob as arvores e apresentou-se arrogante em face do tigre. Ahi porém cahio-lhe o queixo de pasmo e de sorpreza. A onça embalava-se a um galho suspensa pelo pescoço e enforcada pelo laço que apertando-se com o seu proprio peso, a estrangulára. Emquanto viva, um só homem bastára para trazê-la desde o Parayba até á floresta, onde tinha sido caçada; e da floresta até áquelle lugar onde havia expirado. Era depois de morta que fazia todo aquelle espalhafato; que punha em armas vinte homens valentes e corajosos; e produzia uma revolução na casa de D. Lauriana. Passado o primeiro momento de admiração, Ayres Gomes cortou acorda e arrastando o animal foi apresenta-lo á dama. Depois que de fora lhe assegurarão que o tigre estava bem morto, entre-abrio-se a porta, e D. Lauriana ainda toda arripiada, olhou estremecendo o corpo da féra. --Deixe-o ahi mesmo. O Sr. D. Antonio ha da vê-lo com seus olhos! Era o corpo de delicto, sobre o qual pretendia basear o libello accusatorio que ia fulminar contra Pery. Por differentes vezes a dama tinha procurado persuadir seu marido a expulsar o indio que ella não podia soffrer, e cuja presença bastava para causar-lhe um faniquito. Mas todos os seus esforços tinhão sido baldados; o fidalgo com a sua lealdade e cavalheirismo apreciava o caracter de Pery, e via nelle embora selvagem, um homem de sentimentos nobres e de alma grande. Como pai de familia estimava o Indio pela circumstancia a que já alludimos de ter salvado sua filha, circumstancia que mais tarde se explicará. Desta vez porém D. Lauriana esperava vencer; e julgava impossivel que seu marido não punisse severamente esse crime abominavel de um homem que ia ao matto amarrar uma onça e trazê-la viva para a casa. Que importava que elle tivesse salvado a vida de uma pessoa, se punha em risco a existencia de toda a familia, e sobretudo a della? Terminava esta reflexão justamente no momento em que D. Antonio de Mariz assomava á porta. --Dir-me-heis, senhora, que rumor é este, e qual a causa? --Ahi a tendes! exclamou D. Lauriana apontando para a onça comum gesto soberbo. --Lindo animal! disse o fidalgo adiantando-se e tocando com o pé as presas do tigre. --Ah! achais lindo! Inda mais achareis quando souberdes quem o trouxe!... --Deve ter sido um habil caçador, disse D. Antonio contemplando a féra com esse prazer de monteria que era um dom dos fidalgos daquelle tempo: não tem o signal de uma só ferida! --É obra daquelle excommungado caboclo, Sr. Mariz! respondeu D. Lauriana preparando-se para o ataque. --Ah! exclamou o fidalgo rindo; é a caça que Pery hontem perseguia, e de que nos fallou Alvaro! --Sim; e que trouxe viva como se fosse alguma paca! --A trouxe viva! Mas não vêdes que é impossivel? --Como impossivel, se Ayres Gomes vem de acaba-la agora mesmo! Ayres Gomes quiz retrucar; mas a dama impoz-lhe silencio com um gesto. O fidalgo curvou-se e segurando o animal pelas orelhas ergueu-o; ao passo que examinava o corpo para ver se lhe descobria alguma bala, notou que tinha as patas e as mandibulas ligadas. --É verdade! murmurou elle; devia estar viva ha cousa de uma hora; ainda conserva o calor. D. Lauriana deixou que seu marido se fartasse de contemplar o animal, certa de que as reflexões que esta vista produziria não podião deixar de ser favoraveis ao seu plano. Quando julgou que tinha chegado o momento, deo dous passos, arranjou a cauda do seu vestido, e dando um certo descabido ao corpo, dirigio-se a D. Antonio: --Bom é que vejais, Sr. Mariz, que nunca me illudo! Que de vezes vos hei dito que fazieis mal em conservar esse bugre? Não quereis acreditar: tinheis um fraco inexplicavel pelo pagão. Pois bem... A dama tomou um tom oratorio, e accentuou a palavra com um gesto energico apontando para o animal morto: --Ahi tendes o pago. Toda a vossa familia ameaçada! Vós mesmo que podieis sahir desapercebido; vossa filha que ignorando o perigo que corria foi banhar-se, e podia a está hora estar pasto de féras. O fidalgo estremeceu á idéa do perigo que corrêra sua filha e ia precipitar-se; mas ouvio um doce murmurio de vozes que parecia um chilrear de sahis: erão as duas moças que subião a ladeira. D. Lauriana sorria-se do seu triumpho. --E se fosse só isto? continuou ella. Porém não pára aqui: amanhã vereis que nos traz algum jacaré, depois uma cascavel ou uma giboia; encher-nos-ha a casa de cobras e lacráos. Seremos aqui devorados vivos, porque a um bugre arrenegado deo-lhe na cabeça fazer as suas bruxarias! --Exagerais muito tambem, D. Lauriana. É certo que Pery fez uma selvajaria; mas não ha razão para que receiemos tanto. Merece uma reprimenda: lh'a darei e forte. Não continuará. --Se o conhecesseis como eu, Sr. Mariz! É bugre e basta! Podeis ralhar-lhe quanto quizerdes; elle o fará mesmo por pirraça! --Prevenções vossas, que não partilho. A dama conheceu que ia perdendo terreno; e resolveu dar o golpe decisivo; amaciou a voz, e tomou um tom choroso. --Fazei o que vos aprouver! Sois homem, e não tendes medo de nada! Mas eu, continuou arrepiando-se, não poderei mais dormir, só com a idéa de que uma jararaca sobe-me á cama; de dia a todo o momento julgarei que algum gato montez vai saltar-me pela janella; que a minha roupa está cheia de lagartas de fogo! Não ha forças que resistão a semelhante martyrio! D. Antonio começou a reflectir seriamente sobre o que dizia sua mulher, e a pensar no sem numero de faniquitos, desmaios e arrufos que ia produzir o terror panico justificado pelo facto do indio; comtudo conservava ainda a esperança de conseguir acalma-la e dissuadi-la. D. Lauriana espiava o effeito do seu ultimo ataque. Contava vencer.

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