OS TRES
Loredano que nessa mesma manhã sahira de casa tão cedo, apenas se entranhou na matta esperou. Um quarto de hora depois vierão ter com elle Bento Simões e Ruy Soeiro. Os tres seguîrão juntos sem dar uma palavra; o italiano caminhava adiante, e os dous aventureiros o acompanhavão trocando de vez em quando um olhar significativo. Por fim Ruy Soeiro rompeu o silencio: --Não foi de certo para espairecer pelos mattos ao romper da alva, que nos fizestes vir aqui, misser Loredano? --Não, respondeu o italiano laconicamente. --Mas então desembuchai de uma vez, e não percamos tempo. --Esperai! --Que espereis, vos digo eu; atalhou Bento Simões, ides n'uma batida... Onde nos pretendeis levar nesta marcha? --Vereis. --Já que não ha meio de vos sacar mais palavra, segui com Deus, misser Loredano. --Sim, acudio Ruy Soeiro, segui; que nós tornamos por onde viemos. --Quando estiverdes de vez para fallar, nos avisareis. E os dous aventureiros pararão dispostos a retroceder; o italiano voltou-se com um gesto de desprezo. --Parvos que sois! disse elle. Se vos parece, revoltai-vos agora que estais em meu poder, e que não tendes outro remedio senão seguir a minha fortuna! Voltai!... tambem eu voltarei; mas para denunciar-nos a todos. Os dous aventureiros empallidecêrão. --Não me façais lembrar, Loredano, disse Ruy Soeiro abaixando um olhar rapido para o punhal, que ha um meio de fechar para sempre as boccas que se obstinão a fallar. --Isto quer dizer, replicou o italiano desdenhosamente, que me matarieis no caso de que eu vos quizesse denunciar? --A fé que sim! respondeu Ruy Soeiro com um tom que mostrava a sua resolução. --E eu pela minha parte faria o mesmo! Primeiro está a nossa vida que as vossas venetas, misser italiano. --E que ganharieis vós em matar-me? perguntou Loredano sorrindo. --Essa é melhor! Que ganharíamos? Achais que é cousa de pequena valia assegurar a sua existencia e o seu descanço? --Néscios!... disse o italiano cobrindo-os com um olhar de desprezo e de piedade ao mesmo tempo. Não vedes que quando um homem traz um segredo como o meu, a menos que esse homem não seja um truão da vossa laia, elle deve ter tomado as suas precauções contra estes pequenos incidentes! --Bem vejo que estais armado, e mais vale assim, respondeu Ruy Soeiro; será morte antes que homizio. --Direis melhor execução, Ruy Soeiro! retrucou Bento Simões. O italiano continuou: --Não são essas armas que me servirão contra vós; outras tenho eu que mais podem; sabei unicamente que vivo ou morto, a minha voz virá de longe, até mesmo da campa, denunciar-vos e vingar-me. --Quereis gracejar, misser italiano? A occasião não é asada. --A seu tempo vereis se gracejo. Tenho na mão de D. Antonio de Mariz o meu testamento, que elle deve abrir quando me saiba ou me julgue morto. Nesse testamento conto as relações que existem entre nós, e o fim para que trabalhamos. Os dous aventureiros tornárão-se lividos como espectros. --Comprehendeis agora, disse Loredano sorrindo, que se me assassinardes, se um accidente qualquer me privar da vida, se me der na cabeça mesmo fugir e fazer suppor que morri, estais perdidos irremediavelmente. Bento Simões ficou paralysado como se uma catalepsia o tivesse fulminado. Ruy Soeiro, apezar do violento abalo que sentia, conseguio com um esforço recobrar a palavra. --É impossivel!... gritou elle. Isso que dizeis é falso. Não ha homem que o fizesse. --Ponde á prova! respondeu o italiano calmo e impassivel. --Elle o fez... estou certo... balbuciou Bento Simões em voz sumida. --Não, retrucou Ruy Soeiro; Satanaz não o faria. Vamos, Loredano; confessai que nos enganastes, que quizestes atemorisar-nos? --Disse a verdade. --Mentes! gritou o aventureiro desesperado. O italiano sorrio: tirando a sua espada, estendeu a mão sobre a cruz do punho, e disse lentamente deixando cahir as palavras uma a uma: --Por esta cruz e pelo Christo que nella soffreu; por minha honra neste mundo, e minha alma no outro, juro. Bento Simões cahio de joelhos esmagado por este juramento, que não deixava de ter alguma solemnidade no meio da floresta sombria e silenciosa. Ruy Soeiro pallido, com os olhos a saltarem-lhe das orbitas, os labios tremulos, os cabellos eriçados e os dedos hirtos, parecia a mumia do desespero. Estendeu os braços para Loredano, e exclamou com a voz tremula e suffocada: --Pois vós, Loredano, confiastes a D. Antonio de Mariz um papel onde existe a machinação infernal que tramastes contra sua familia? --Confiei-o! --E nesse papel escrevestes que o pretendeis assassinar a elle e a sua mulher, e lançar fogo á casa se preciso fôr para a realisação de vossos intentos? --Escrevi tudo! --Tivestes o arrojo de confessar que tencionais roubar sua filha e fazer della, nobre moça, a barregã de um aventureiro e reprobo como vós? --Sim! --E dissestes tambem, continuou Ruy no auge da desesperação, que a outra sua filha nos pertencerá, a nós que jogaremos á sorte para decidir a qual deverá tocar? --Não me esqueci de nada, e menos desse ponto importante, respondeu o italiano com um sorriso; tudo isto está escripto em um pergaminho, nas mãos de D. Antonio de Mariz. Para sabê-lo, basta que o fidalgo rompa os pingos de cera preta com que mestre Garcia Ferreira, tabellião do Rio de Janeiro, o cerrou na minha penultima viagem. Loredano pronunciou essas palavras com a maior calma, contemplando os dous aventureiros pallidos e humilhados diante delle. Passou-se algum tempo em silencio. --Já vedes, disse o italiano, que estais na minha mão; sirva-vos isto de exemplo. Quando uma vez se pôz o pé sobre o precipicio, amigos, é preciso caminhar por cima delle, para não rolar e ir ao fundo. Caminhemos pois. Só de uma cousa vos advirto; de hoje em diante--obediência cega e passiva! Os dous aventureiros não dissêrão palavra; porém a sua attitude respondia melhor do que mil protestos. --Agora deixai essa cara triste e consternada. Estou vivo: e D. Antonio é um verdadeiro fidalgo incapaz de abrir um testamento. Creai esperança, confiai em mim, que breve alcançaremos a meta. A physionomia de Bento Simões reanimou-se. --Fallai claro uma vez ao menos, retrucou Ruy Soeiro. --Não aqui; segui-me, que vos levarei a um lugar onde conversaremos á vontade. --Esperai, acudio Bento Simões; antes de tudo, reparação vos é devida. Ha pouco vos ameaçámos; aqui tendes as nossas armas. --Sim, depois do que se passou, é justo que desconfieis de nós; tomai. Os dous tirárão os punhaes e as espadas. --Guardai as vossas armas, disse Loredano encarnecendo, servirão para me defenderdes. Eu sei quanto vos é preciosa e cara a minha existencia! Ambos os aventureiros empallidecêrão, e seguirão o italiano, que depois de uma meia hora de caminho chegou á touca de cardos que já descrevêmos. Á um signal de Loredano, os seus companheiros subirão á arvore, e descêrão pelo cipó ao centro dessa área cercada de espinhos, que tinha quando muito tres braças de comprimento sobre duas de largura. De um lado, na quebrada que fazia o terreno, via-se uma especie de gruta ou abobada, restos desses grandes formigueiros que se encontrão pelos nossos campos, já meio aluidos pela chuva. Neste lugar, á sombra de um pequeno arbusto que nascêra entre os cardos, sentárão-se os tres aventureiros. --Oh! disse o italiano immediatamente; ha algum tempo já que não venho dessas bandas; mas parece-me que ainda deve haver aqui o quer que seja que vos dará no gôto. Reclinou-se, e estendendo o braço pela cava retirou uma botija que alli estava deitada, e que collocou no meio do grupo. --É de Caparica, mas do bom. Deste cá não vem! --Diabo! tendes uma adega exclamou Bento Simões a quem avista da botija tinha restituido todo o bom humor. --A fallar a verdade, disse Ruy, esperaria tudo, menos ver sahir deste buraco uma botija de vinho. --É para vêrdes! como costumo vir a este lugar, onde ás vezes passo bem boas soalheiras, precisava ter um companheiro com quem espairecesse. --E não podieis achar melhor! disse Bento Simões dando uma empinadella á botija e estalando a lingua. Já lhe tinha saudades! Cada um dos tres tomou a sua vez de vinho e a botija voltou ao seu lugar. --Bom, disse o italiano, agora tratemos do que serve. Prometti, quando vos convidei a seguir-me, que vos faria ricos, muito ricos. Os dous inclinárão a cabeça. --A promessa que vos fiz vai-se realisar: a riqueza está aqui perto de nós, podemos toca-la. --Onde? perguntárão os aventureiros lançando um olhar avido em roda. --Não vai assim tambem, falla-se figuradamente. Digo que a riqueza está diante de nós, mas para nos apoderarmos della é preciso... --O que? Dizei! --A seu tempo: agora quero contar-vos uma historia. --Uma historia! replicou Ruy Soeiro. --Da carocha? perguntou Bento Simões. --Não, uma historia veridica como uma bulla do nosso santo padre. Ouvistes fallar algum dia, em um certo Roberio Dias? --Roberio Dias... Ah! sei! um tal de S. Salvador? disse Ruy Soeiro. --O mesmo, sem tirar nem pôr. --Vi-o ha cousa de oito annos em S. Sebastião, donde se passou ás Hespanhas. --E sabeis o que ia fazer ás Hespanhas esse digno descendente do Caramurú, amigo Bento Simões? perguntou o italiano. --Ouvi rosnar que se tratava de um thesouro fabuloso, que contava offerecer a Felippe II, o qual em volta o faria marquez, e grande fidalgo de sua casa. --E o resto, não vos chegou á noticia? --Não; nunca mais ouvi fallar do tal Roberio Dias. --Pois ouvi lá; chegando a Madrid, o homem fez a sua offerta mui lampeiro, e foi recebido na palma das mãos por el-rei Felippe II que, como sabeis, tinha as unhas demasiado longas. --E cinzou-o como uma raposa que era? acudio Ruy Soeiro. --Enganais-vos; dessa vez a raposa tornara-se macaco; quiz ver o côco ante de paga-lo. --E então? --Então, disse o italiano sorrindo maliciosamente, o côco estava ouco. --Como ouco? --Sim, amigo Ruy, tinhão-lhe deixado apenas as cascas; felizmente para nós, que vamos lograr o miôlo. --Sois um homem de caixas encouradas, Loredano! --Dá-se agente a tratos, e não é possivel entender-vos. --Tenho culpa eu, que não sejais lido na historia das cousas de vossa terra? --Nem todos são mitrados como vós, dom italiano. --Bom, acabemos de uma vez; o que Roberio Dias julgava offerecer em Madrid a Felippe II, amigos, está aqui! E Loredano dizendo esta palavra assentou a mão sobre um seixo que havia ao lado. Os dous aventureiros olhárão-se sem comprehender, e duvidando da razão de seu companheiro. Quanto a este, sem se importar com o que elles pensavão, tirou a espada, e depois de desenterrar a pedra começou a cavar. Emquanto proseguia neste trabalho, os dous observando-o passavão alternadamente a botija de vinho, e fazião conjecturas e supposições. O italiano já cavava ha tempo, quando o ferro tocou num objecto duro, que o fez tinir. --_Per Dio_, exclamou, eil-a! Dahi a alguns momentos retirava do buraco um desses vasos de barro vidrado, a que os indios chamavão _camuci_; este era pequeno e fechado por todos os lados. Loredano tomando-o pelas duas mãos abalou-o e sentio o imperceptivel vascolejar que fazia dentro um objecto qualquer. --Aqui tendes, disse elle lentamente, o thesouro de Roberio Dias; pertence-nos. Um pouco de tento, e seremos mais ricos que o sultão de Bagdad, e mais poderosos que o doge de Veneza. O italiano bateu sobre a pedra com o vaso que se partio em pedaços. Os aventureiros, com os olhares incendidos de cobiça, esperando ver correr ondas de ouro, de diamantes e esmeraldas, ficárão estupefactos. Do bojo do vaso saltára apenas um pequeno rolo de pergaminho coberto por um couro avermelhado, e atado em cruz por um fio pardo. Loredano com a ponta do punhal rompeu o laço, e, abrindo rapidamente o pergaminho, mostrou aos aventureiros um rotulo escripto em grandes letras vermelhas. Ruy Soeiro soltou um grito: Bento Simões começou a tremer de prazer, de pasmo e admiração. Passado um momento, o italiano estendeu a mão para o papel collocado no meio do grupo, seus olhos tomarão uma expressão dura. --Agora, disse elle com a sua voz vibrante, agora que tendes a riqueza e o poder ao alcance da mão, jurai que o vosso braço não tremerá quando chegar a occasião; que obedecereis ao meu gesto, á minha palavra, como á lei do destino. --Juramos! --Estou cançado de esperar, e resolvido a aproveitar o primeiro ensejo. A mim como chefe, disse o italiano com um sorriso diabolico, devia pertencer D. Antonio de Mariz; eu vo-lo cedo, Ruy Soeiro. Bento Simões terá o escudeiro. Eu reclamo para mim Alvaro de Sá, o nobre cavalheiro. Ayres Gomes vai se ver n'uma dansa! disse Bento Simões com um aspecto marcial. --Os mais, se nos incommodarem, irão depois; se nos acompanharem serão bem vindos. Unicamente vos aviso que aquelle que tocar a soleira da porta da filha de D. Antonio de Mariz, é um homem morto; esta é a minha parte de presa! É a parte do leão. Neste momento ouvio-se um rumor como se as folhas se tivessem agitado. Os aventureiros não fizerão reparo, e attribuirão naturalmente ao vento. --Mais alguns dias, amigos, continuou Loredano, e seremos ricos, nobres, poderosos como um rei. Tu, Bento Simões, serás marquez do Paquequer; tu, Ruy Soeiro, duque das Minas; eu... Que serei eu, disse Loredano com um sorriso que illuminou a sua physionomia intelligente. Eu serei... Uma palavra partio do seio da terra surda e cavernosa, como se uma voz sepulcral a houvesse pronunciado. --Traidores!... Os tres aventureiros erguêrão-se de um só movimento, hirtos e lividos: parecião cadaveres surgindo da campa. Os dous persignárão-se. O italiano suspendeu-se ao ramo da arvore, e lançou um olhar rapido. Tudo estava em socego. O sol a pino derramava um oceano de luz: nenhuma folha se agitava ao sopro da brisa; nenhum insecto saltitava sobre a relva. O dia no seu esplendor dominava a natureza. FIM DA PRIMEIRA PARTE.