A BANDEIRA
Era meio dia. Um troço de cavalleiros, que constaria quando muito de quinze pessoas, costeava a margem direita do Parahyba. Estavão todos armados da cabeça até aos pés; além da grande espada de guerra que batia as ancas do animal, cada um delles trazia á cinta dous pistoletes, um punhal na ilharga do calção, e o arcabuz passado a tiracollo pelo hombro esquerdo. Pouco adiante, dous homens a pé tocavão alguns animaes carregados de caixas e outros volumes cobertos com uma sarapilheira alcatroada, que os abrigava da chuva. Quando os cavalleiros, que seguião a trote largo, vencião a pequena distancia que os separava da tropa, os dous caminheiros, para não atrazarem a marcha, montavão na garupa dos animaes e ganhavão de novo a dianteira. Naquelle tempo dava-se o nome de _bandeiras_ a essas caravanas de aventureiros que se entranhavão pelos sertões do Brasil, á busca de ouro, de brilhantes e esmeraldas, ou á descoberta de rios e terras ainda desconhecidos. A que nesse momento costeava a margem do Parahyba, era da mesma natureza; voltava do Rio de Janeiro, onde fora vender os productos de sua expedição pelos terrenos auriferos. Uma das occasiões, em que os cavalleiros se aproximarão da tropa que seguia á alguns passos, um moço de vinte e oito annos, bem parecido, e que marchava á frente do troço, governando o seu cavallo com muito garbo e gentileza, quebrou o silencio geral. --Vamos, rapazes! disse elle alegremente aos caminheiros; um pouco de diligencia, e chegaremos com cedo. Restão-nos apenas umas quatro leguas! Um dos bandeiristas, ao ouvir estas palavras, chegou as esporas á cavalgadura e avançando algumas braças collocou-se ao lado do moço. --Ao que parece, tendes pressa de chegar, Sr. Alvaro de Sá? disse elle com um ligeiro accenio italiano, e um meio sorriso cuja expressão de ironia era disfarçada por uma benevolencia suspeita. --De certo, Sr. Loredano; nada é mais natural a quem viaja, do que o desejo de chegar. --Não digo o contrario; mas confessareis que nada tambem é mais natural a quem viaja, do que poupar os seus animaes. --Que quereis dizer com isto, Sr. Loredano? perguntou Alvaro com um movimento de enfado. --Quero dizer, Sr. cavalheiro, respondeo o italiano em tom de mofa e medindo com os olhos a altura do sol, que chegaremos hoje pouco antes das seis horas. Alvaro corou. --Não vejo em que isto vos causa reparo; á alguma hora haviamos chegar; e melhor é que seja de dia, do que de noite. --Assim como melhor é que seja em um sabbado do que em outro qualquer dia! replicou o italiano no mesmo tom. Um novo rubor assomou ás faces de Alvaro, que não pôde disfarçar o seu enleio: mas, recobrando o desembaraço, soltou uma risada, e respondeo: --Ora, Deus, Sr. Loredano: estais ahi a fallar-me na ponta dos beiços e com meias palavras; á fé de cavalheiro que não vos entendo. --Assim deve ser. Diz a escriptura que não ha peior surdo do que aquelle que não quer ouvir. --Oh! temos anexim! Aposto que aprendestes isto agora em S. Sebastião: foi alguma velha beata, ou algum licenciado em cânones que vol-o ensinou? disse o cavalheiro gracejando. --Nem um nem outro, Sr. cavalheiro; foi um fanqueiro da rua dos Mercadores, que por signal tambem me mostrou custosos brocados e lindas arrecadas de perolas, bem proprias para o mimo de um gentil cavalheiro á sua dama. Alvaro enrubeceo pela terceira vez. Decididamente o sarcastico italiano, com o seu espirito mordaz, achava meio de ligar a todas as perguntas do moço uma allusão que o incommodava; e isto no tom o mais natural do mundo. Alvaro quiz cortar a conversação neste ponto; mas o seu companheiro proseguio com extrema amabilidade: --Não entrastes por acaso na loja desse fanqueiro de que vos fallei, Sr. cavalheiro? --Não me lembro; é de crer que não, pois apenas tive tempo de arranjar os nossos negocios, e nem um me restou para vêr essas galantarias de damas e fidalgas; disse o moço com frieza. --É verdade! acudio Loredano com uma ingenuidade simulada; isto me faz lembrar que só nos demorámos no Rio de Janeiro cinco dias, quando das outras vezes erão nunca menos de dez e quinze. --Tive ordem para haver-me com toda a rapidez; e creio, continuou fitando no italiano um olhar severo, que não devo contas de minhas acções senão áquelles a quem dei o direito de pedi-las. --_Per Bacco_, cavalheiro! Tomais as cousas ao revez. Ninguem vos pergunta por que motivo fazeis aquillo que vos praz: mas tambem achareis justo que cada um pense á sua maneira. --Pensai o que quizerdes! disse Alvaro levantando os hombros e avançando o passo da sua cavalgadura. A conversa interrompeo-se. Os dous cavalleiros, um pouco adiantados ao resto do troço, caminhavão silenciosos uma par do outro. Alvaro ás vezes enfiava o olhar pelo caminho como para medir a distancia que ainda tinhão de percorrer, e outras vezes parecia pensativo e preoccupado. Nestas occasiões, o italiano lançava sobre elle um olhar á furto, cheio de malicia e ironia; depois continuava a assobiar entre dentes uma cansoneta de _condottiere_, de quem elle apresentava o verdadeiro typo. Um rosto moreno, coberto por uma longa barba negra, entre a qual o sorriso desdenhoso fazia brilhara alvura de seus dentes; olhos vivos, a fronte larga, descoberta pelo chapéo desabado que cahia sobre o hombro; alta estatura, e uma constituição forte, agil e musculosa; erão os principaes traços deste aventureiro. A pequena cavalgata tinha deixado a margem do rio, que não offerecia mais caminho, e tomára por uma estreita picada aberta na matta. Apezar de ser pouco mais de duas horas, o crepusculo reinava nas profundas e sombrias abobadas de verdura: a luz, coando entre a espessa folhagem, se decompunha inteiramente; nem uma restea de sol penetrava nesse templo da creação, ao qual servião de columnas os troncos seculares dos acaris e araribás. O silencio da noite, com os seus rumores vagos e indecisos e os seus échos amortecidos, dormia no fundo dessa solidão, e era apenas interrompido um momento pelo passo dos animaes, que fazião estalar as folhas seccas. Parecia que devião ser seis horas da tarde, e que o dia cahindo envolvia a terra nas sombras pardacentas do occaso. Alvaro de Sá, embora habituado a esta illusão, não pôde deixar de sobresaltar-se um instante, em que, sahindo da sua meditação, vio-se de repente nomeio do _claro-escuro_ da floresta. Involuntariamente ergueo a cabeça para vêr se atravez da cupola de verdura descobria o sol, ou pelo menos alguma scentelha de luz que lhe indicasse a hora. Loredano não pôde reprimir a risada sardonica que lhe veio aos labios. --Não vos dê cuidado, Sr. cavalheiro, antes de seis horas lá estaremos; sou eu que vo-lo digo. O moço voltou-se para o italiano, rugando o sobrolho. --Sr. Loredano, é a segunda vez que dizeis esta palavra em um tom que me desagrada; pareceis querer dar a entender alguma cousa, mas falta-vos o animo de a proferir. Uma vez por todas, fallai abertamente, e Deus vos guarde de tocar em objectos que são sagrados. Os olhos do italiano lançárão uma faisca; mas o seu rosto conservou-se calmo e sereno. --Bem sabeis que vos devo obediência, Sr. cavalheiro, e não faltarei della. Desejais que falle claramente; e a mim me parece que nada do que tenho dito póde ser mais claro do que é. --Para vós, não duvido; mas isto não é razão de que o seja para outros. Ora dizei-me, Sr. cavalheiro, não vos parece claro, á vista do que me ouvistes, que adevinhei o vosso desejo de chegar o mais depressa possivel? --Quanto a isto, já vos confessei eu; não ha pois grande merito em adevinhar. --Não vos parece claro tambem que observei haverdes feito esta expedição com a maior rapidez, de modo que em menos de vinte dias eis-nos ao cabo della? --Já vos disse que tive ordem, e creio que nada tendes a oppôr. --Não de certo; uma ordem é um dever, e um dever cumpre-se com satisfação, quando o coração nelle se interessa. --Sr. Loredano! disse o moço levando a mão ao punho da espada e colhendo as redeas. O italiano fez que não tinha visto o gesto de ameaça; continou: --Assim tudo se explica. Recebestes uma ordem? foi de D. Antonio de Mariz, sem duvida? --Não sei que nenhum outro tenha direito de dar-me; replicou o moço com arrogancia. --Naturalmente por virtude desta ordem, continuou o italiano cortezmente, partistes do _Paquequer_ em uma segunda feira, quando o dia designado era um domingo. --Ah! tambem reparastes nisto? perguntou o moço mordendo os beiços de despeito. Reparo em tudo, Sr. cavalheiro; assim, não deixei de observar ainda, que sempre em virtude da ordem, fizestes tudo para chegar justamente antes do domingo. --E não observastes mais nada? perguntou Alvaro com a voz tremula e fazendo um esforço para conter-se. --Não me escapou tambem uma pequena circumstancia de que já vos fallei. --E qual é ella, se vos praz? --Oh! não vale a pena repetir: é cousa de somenos. --Dizei sempre, Sr. Loredano: nada é perdido entre dous homens que se entendem; replicou Alvaro com um olhar de ameaça. --Já que o quereis, força é satisfazer-vos. Noto que a ordem de D. Antonio, e o italiano carregou nesta palavra, manda-vos estar no _Paquequer_ um pouco antes de seis horas, a tempo de ouvir a prece. --Tendes um dom admiravel, Sr. Loredano; o que é de lamentar, é que o empregueis em futilidades. --Em que quereis que um homem gaste seu tempo neste sertão, senão a olhar para seus semelhantes, e ver o que elles fazem? --Com effeito é uma boa distracção. --Excellente. Vede vós, tenho visto cousas que se passão diante dos outros, e que ninguem percebe, porque não se quer dar ao trabalho de olhar como eu; disse o italiano com o seu ar de simplicidade fingida. --Contai-nos isto, ha de ser curioso. --Ao contrario, é o mais natural possivel; um moço que apanha uma flor ou um homem que passeia de noite á luz das estrellas... Póde haver cousa mais simples? Alvaro empallideceo desta vez. --Sabeis uma cousa, Sr. Loredano? --Saberei, cavalheiro, se me fizerdes a honra de dizer. --Está me parecendo que a vossa habilidade de observador levou-vos muito longe, e que fazeis nem mais nem menos do que o officio de espião. O aventureiro ergueo a cabeça com um gesto altivo, levando a mão ao cabo de uma larga adaga que trazia á ilharga: no mesmo instante porém dominou este movimento, e voltou á bonhomia habitual. --Quereis gracejar, senhor cavalheiro?... --Enganais-vos, disse o moço picando o seu cavallo e encostando-se ao italiano, fallo-vos seriamente; sois um infame espião! Mas juro, por Deus, que á primeira palavra que proferirdes, esmago-vos a cabeça como a uma cobra venenosa. A physionomia de Loredano não se alterou; conservou a mesma impassibilidade; apenas o seu ar de indifferencia e sarcasmo desappareceo sob a expressão de energia e maldade que lhe accentuou os traços vigorosos. Fitando um olhar duro no cavalheiro, respondeo: --Visto que tomais a cousa neste tom, Sr. Alvaro de Sá, cumpre que vos diga que não é a vós que cabe ameaçar; entre nós dous deveis saber qual é o que tem a temer!... --Esqueceis a quem fallais? disse o moço com altivez. --Não, senhor, lembro tudo; lembro que sois meu superior, e tambem, accrescentou com voz surda, que tenho o vosso segredo. E parando o animal, o aventureiro deixou Alvaro seguir só na frente, e misturou-se com os seus companheiros. A pequena cavalgata continuou a marcha atravez da picada, e aproximou-se de uma dessas clareiras das mattas virgens, que se assemelhão a grandes zimborios de verdura. Neste momento um rugido espantoso fez estremecer a floresta, e encheo a solidão com os échos estridentes. Os caminheiros empallidecêrão e olhárão um para o outro; os cavalleiros engatilhárão os arcabuzes e seguirão lentamente, lançando um olhar cauteloso pelos ramos das arvores.