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O Cortiço

por Aluizio Azevedo

15

O Garnizé tinha bastante gente essa noite. Em volta de umas doze mezinhas toscas, de páo, com uma coberta de folha de Flandres pintada de branco fingindo marmore, viam-se grupos de tres e quatro homens, quasi todos em mangas de camisa, fumando e bebendo no meio de grande algazarra. Fazia-se largo consumo de cerveja nacional, vinho virgem, paraty e laranginha. No chão coberto de areia havia cascas de queijo de Minas, restos de iscas de figado, espinhas de peixe, dando idéa de que ali não só se enxugava como tambem se comia. Com effeito, mais para dentro, n'um engordurado bufete, junto ao balcão e entre as prateleiras de garrafas cheias e arrolhadas, estava um travessão de assado com batatas, um osso de presunto e varios pratos de sardinhas fritas. Dois candieiros de kerozene fumegavam, encarvoando o tecto. E de uma porta ao fundo, que escondia o interior da casa com uma cortina de chita vermelha, vinha de vez em quando uma baforada de vozes roucas, que parecia morrer em caminho, vencida por aquella densa atmosphera cor de opala.

O Pataca estacou á entrada, affectando grande bebedeira e procurando com disfarce, em todos os grupos, ver se descobria o Firmo. Não o conseguiu; mas alguem, em certa meza, lhe chamára a attenção, porque elle se dirigio para lá. Era uma mulatinha magra, mal vestida, acompanhada por uma velha quasi cega e mais um homem, inteiramente calvo, que soffria de asthma e, de quando em quando, abalava a meza com um frouxo de tosse, fazendo dansar os copos.

O Pataca bateu no hombro da rapariga.

--Como vais tu, Florinda?

Ella olhou para elle, rindo; disse que ia bem, e perguntou-lhe como passava.

--Róla-se, filha. Tu que fim levaste? Ha um par de quinze dias que te não vejo!

--É mesmo. Desde que estou com seu Bento não tenho sahido quasi.

--Ah! disse o Pataca, estas amigada? Bom!...

--Sempre estive!

E ella então, muito expansiva com a sua folga d'aquelle domingo e com o seu bocado de cerveja, contou que, no dia em que fugio da estalagem, ficou na rua e dormio n'umas obras de uma casa em construcção na travessa da Passagem, e que no seguinte, offerecendo-se de porta em porta, para alugar-se de criada ou de ama secca, encontrou um velho solteiro e agebado que a tomou ao seu serviço e metteu-se com ella.

--Bom! muito bom! annuio Pataca.

Mas o diabo do velho era um safado; dava-lhe muita coisa, dinheiro até, trazia-a sempre limpa e de barriga cheia; sim senhor! mas queria que ella se prestasse a tudo! Brigaram. E, como o vendeiro da esquina estava sempre a chamal-a para casa, um bello dia arribou, levando o que apanhára ao velho.

--Estás então agora com o da venda?

Não! O tratante, a pretexto de que desconfiava d'ella com o Bento marceneiro, pôl-a na rua, chamando a si o que a pobre de Christo trouxéra da casa do outro e deixando-a só com a roupa do corpo e ainda por cima doente por causa de um aborto que tivera logo que se mettêra com semelhante peste. O Bento tomára-a então á sua conta, e ella, graças a Deus, por em quanto não tinha razões de queixa.

O Pataca olhou em torno de si com o ar de quem procura alguem, e Florinda, suppondo que se tratava do seu homem, accrescentou:

--Não está cá, está lá dentro. Elle, quando joga, não gosta que eu fique perto; diz que encabula.

--E tua mãe?

--Coitada! foi pr'o hospicio...

E passou logo a fallar a respeito da velha Marcianna; o Pataca, porém, já lhe não prestava attenção, porque n'esse momento acabava de abrir-se a cortina vermelha, e Firmo surgia muito ebrio, a dar bordos, contando, sem conseguir, uma massagada de dinheiro, em notas pequenas, que elle afinal entrouxou n'um bolo e recolheu na algibeira das calças.

--Ó Porfiro! não vens? gritou lá para dentro, arrastando a voz.

E, depois de esperar inutilmente pela resposta, fez alguns passos na sala.

O Pataca deu á Florinda um «até logo» rapido e, fingindo-se de novo muito bebado, encaminhou-se na direcção em que vinha o mulato.

Esbarraram-se.

--Oh! Oh! exclamou o Pataca. Desculpe!

Firmo levantou a cabeça e encarou-o com arrogancia; mas desfranzio o rosto logo que o reconheceu.

--Ah! és tu, seu gallego? Como vai isso? A ladroeira corre?

--Ladroeira tinha a avó na cuia! Anda a tomar alguma coisa. Queres?

--Que ha de ser?

--Cerveja. Vai?

--Vá lá.

Chegaram-se para o balcão.

--Uma Guarda velha, ó pequeno! gritou o Pataca.

Firmo puxou logo dinheiro para pagar.

--Deixa! disse o outro. A lembrança foi minha!

Mas, como o Firmo insistisse, consentio-lhe que fizesse a despeza.

E os nikeis do troco rolaram no chão, fugindo por entre os dedos do mulato, que os tinha duros na tensão muscular da sua embriaguez.

--Que horas são? perguntou Pataca, olhando quasi de olhos fechados o relogio da parede. Oito e meia. Vamos a outra garrafa, mas agora pago eu!

Beberam de novo, e o coadjutor de Jeronymo, observou depois: Você hoje ferrou-a devéras! Estás que te não podes lamber!

--Desgostos ... resmungou o capoeira, sem conseguir lançar da bocca a saliva que se lhe grudava á lingua.

--Limpa o queixo que estás cuspido. Desgostos de que? Negocio de mulher, aposto!

--A Rita não me appareceu hoje, sabes? Não foi, e eu bem calculo porque!

--Porque?

--Porque a peste do Jeronymo voltou hoje á estalagem!

--Ah! Não sabia!... A Rita está então com elle?...

--Não está, nem nunca ha de estar, que eu d'aqui mesmo vou á procura d'aquelle gallego ordinario e ferro-lhe a sardinha no pandulho!

--Vieste armado?

Firmo saccou da camisa uma navalha.

--Esconde! não deves mostrar isso aqui! Aquella gente ali da outra meza já não nos tira os olhos de cima!

--Estou me ninando pr'a elles! E que não olhem muito, que lhes dou uma de amostra!

--Entrou um urbano! Passa-me a navalha!

O capadocio fitou o companheiro, estranhando o pedido.

--E que, explicou aquelle, se te prenderem não te encontram ferro...

--Prender a quem? a mim? Ora, vai-te calar!

--E ella é boa? Deixa ver!

--Isto não é coisa que se deixe ver!

--Bem sabes que não me entendo com armas de barbeiro!

--Não sei! Esta é que não me sae das unhas, nem para meu pai, que a pedisse!

--É porque não tens confiança em mim!

--Confio nos meus dentes, e esses mesmos me mordem a lingoa!

--Sabes quem vi ainda ha pouco? Não és capaz de adivinhar!...

--Quem?

--A Rita.

--Onde?

--Ali na praia da Saudade.

--Com quem?

--Com um typo que não conheço...

Firmo levantou-se de improviso e cambaleou para o lado da sahida.

--Espera! rosnou o outro, detendo-o. Se queres vou comtigo; mas é preciso ir com geito, porque, se ella nos bispa, foge!

O mulato não fez caso d'esta observação e sabio a esbarrar-se por todas as mezas. Pataca alcançou-o já na rua e passou-lhe o braço na cintura, amigavelmente.

--Vamos de vagar... disse; senão o passaro se arisca!

A praia estava deserta. Cahia um chuvisco. Ventos frios sopravam do mar.

O ceu era um fundo negro, de uma só tinta; do lado opposto da bahia os lampeões pareciam surgir d'agoa, como algas de fogo, mergulhando bem fundo as suas tremulas raizes luminosas.

--Onde está ella? perguntou o Firmo, sem se aguentar nas pernas.

--Ali mais adiante, perto da pedreira. Caminha, que has de ver!

E continuaram a andar para as bandas do hospicio. Mas dois vultos surgiram da treva; o Pataca reconheceu-os e abraçou-se de improviso ao mulato.

--Segurem-lhe as pernas! gritou para os outros.

Os dois vultos, pondo o cacete entre os dentes, apoderaram-se de Firmo, que bracejava seguro pelo tronco.

Deixára-se agarrar--estava perdido.

Quando Pataca o vio preso pelos sovacos e pela dobra dos joelhos, sacou-lhe fóra a navalha.

--Prompto! Está desarmado!

E tomou tambem o seu páo.

Soltaram-no então. O capoeira, mal tocou com os pés em terra, desferio um golpe com a cabeça, ao mesmo tempo que a primeira cacetada lhe abria a nuca. Deu um grito e voltou-se cambaleando. Uma nova páulada cantou-lhe nos hombros, e outra em seguida nos rins, e outra nas coxas, outra mais violenta quebrou-lhe a clavicula, emquanto outra logo lhe rachava a testa e outra lhe apanhava a espinha, e outras, cada vez mais rapidas, batiam de novo nos pontos já espancados, até que se converteram n'uma carga continua de porretadas, a que o infeliz não resistio, rolando no chão, a gottejar sangue de todo o corpo.

A chuva engrossava. Elle agora, assim, debaixo d'aquelle bate-bate sem tregoas, parecia muito menor, mingoava como se estivesse ao fogo. Lembrava um rato morrendo a páo. Um ligeiro tremor convulsivo era apenas o que ainda lhe denunciava um resto de vida. Os outros tres não diziam palavra, arfavam, a bater sempre, tomados de uma irresistivel vertigem de pizar bem a cacete aquella trouxa de carne molle e ensanguentada, que grunhia frouxamente a seus pés. Afinal, quando de todo já não tinham forças para bater ainda, arrastaram a trouxa até a ribanceira da praia e lançaram-na ao mar. Depois, arquejantes, deitaram a fugir, á tôa, para os lados da cidade.

Chovia agora muito forte. Só pararam no Cattete, ao pé de um kiosque; estavam encharcados; pediram paraty e beberam como quem bebe agoa. Passava já de onze horas. Desceram pela praia da Lapa; ao chegarem debaixo de um lampeão, Jeronymo parou, suando apezar do agoaceiro que cahia.

--Aqui têm vocês, disse, tirando do bolso as quatro notas de vinte mil reis. Duas para cada um! E agora vamos tomar qualquer coisa quente em logar secco.

--Ali ha um botequim, indicou o Pataca, apontando a rua da Gloria.

Subiram por uma das escadinhas que ligam essa rua á praia, e d'ahi a pouco installavam-se em volta de uma meza de ferro. Pediram de comer e de beber e puzeram-se a conversar em voz soturna, muito cansados.

A uma hora da madrugada o dono do café pôl-os fóra. Felizmente chovia menos. Os tres tomaram de novo a direcção de Botafogo; em caminho Jeronymo perguntou ao Pataca se ainda tinha comsigo a navalha do Firmo e pedio-lh'a, ao que o companheiro cedeu sem objecção.

--É para conservar uma lembrança d'aquelle bisborria! explicou o cavouqueiro, guardando a arma.

Separaram-se defronte da estalagem. Jeronymo entrou sem ruido; foi até á casa, espiou pelo buraco da fechadura; havia luz no quarto de dormir; comprehendeu que a mulher estava á sua espera, acordada talvez; pensou sentir, vindo lá de dentro, o bodum azedo que ella punha de si, fez uma careta de nojo e encaminhou-se resolutamente para a casa da mulata, em cuja porta bateu devagarinho.

Rita, essa noite, recolhêra-se afflicta e assustada. Deixára de ir ter com o amante e mais tarde admirava-se como fizera semelhante imprudencia; como tivera coragem de pôr em pratica, justamente no momento mais perigoso, uma coisa que ella, até ahi, não se sentira com animo de praticar. No intimo respeitava o capoeira; tinha-lhe medo. Amára-o a principio por affinidade de temperamento, pela irresistivel connexão do instincto luxurioso e canalha que predominava em ambos, depois continuou a estar com elle por habito, por uma especie de vicio que amaldiçoamos sem poder largal-o; mas desde que Jeronymo propendeu para ella, fascinando-a com a sua tranquilla seriedade de animal bom e forte, o sangue da mestiça reclamou os seus direitos de apuração, e Rita preferio no europeu o macho de raça superior. O cavouqueiro, pelo seu lado, cedendo ás imposições mesologicas, enfarava a esposa, sua congenere, e queria a mulata, porque a mulata era o prazer, era a volupia, era o fructo doirado e acre d'estes sertões americanos, onde a alma de Jeronymo aprendeu lascivias de macaco e onde seu corpo porejou o cheiro sensual dos bodes.

Amavam-se brutalmente, e ambos sabiam d'isso. Esse amor irracional e empirico carregára-se muito mais, de parte a parte, com o tragico incidente da lucta, em que o portuguez fôra victima. Jeronymo aureolou-se aos olhos d'ella com uma sympathia de martyr sacrificado á mulher que ama; cresceu com aquella navalhada; illuminou-se com o seu proprio sangue derramado; e, depois, a ausencia no hospital veio completar a crystallisação do seu prestigio, como se o cavouqueiro houvera baixado a uma sepultura, arrastando atraz de si a saudade dos que o choravam.

Entretanto, o mesmo phenomeno se operava no espirito de Jeronymo com relação á Rita: arriscar espontaneamente a vida por alguem é aceitar um compromisso de ternura, em que empenhamos alma e coração; a mulher por quem fazemos tamanho sacrificio, seja ella quem fôr, assume de um só vôo em nossa phantasia ás proporções de um ideal. O desterrado, á primeira troca de olhares com a bahiana, amou-a logo, porque sentio n'ella o resumo de todos os quentes mysterios que o enleiaram voluptuosamente n'estas terras da luxuria; amou-a muito mais quando teve occasião de jogar a existencia por esse amor, e amou-a loucamente durante a triste e dolorosa solidão da enfermaria, em que os seus gemidos e suspiros eram todos para ella.

A mulata bem que o comprehendeu, mas não teve animo de confessar-lhe que tambem morria de amores por elle; receiou prejudical-o. Agora, com aquella loucura de faltar á entrevista justamente no dia em que Jeronymo voltava á estalagem, a situação parecia-lhe muito melindrosa. Firmo, desesperado com a ausencia d'ella, embebedava-se naturalmente e vinha ao cortiço provocar o cavouqueiro; a briga rebentaria de novo, fatal para um dos dois, se é que não seria para ambos. Do que ella sentira pelo navalhista persistia agora apenas o medo, não como elle era d'antes, indeterminado e frouxo, mas ao contrario, sobresaltado, nervoso, cheio de apprehensões que a punham afflicta. Firmo já lhe não apparecia no espirito como um amante ciumento e perigoso, mas como um simples facinora, armado de uma velha navalha desleal e homicida. O seu medo transformava-se em uma mistura de asco e terror. E, sem achar só cego na cama, deixava-se atordoar pelos seus presentimentos, quando ouvio bater na porta.

--É elle! disse, com o coração a saltar.

E via já de fronte de si o Firmo, bebado, a reclamar o Jeronymo aos berros, para esfaqueal-o ali mesmo. Não respondeu ao primeiro chamado; ficou escutando.

Depois de uma pausa bateram de novo.

Ella estranhou o modo pelo qual batiam. Não era natural que o facinora procedesse com tanta prudencia. Ergueu-se, foi á janella, abrio uma das folhas e espreitou pelas rotulas.

--Quem está ahi?... perguntou á meia voz.

--Sou eu ... disse Jeronymo, chegando-se.

Reconheceu-o logo e correu a abrir.

--Como?! É você, Jeromo?

--Schit! fez elle, pondo o dedo na bocca. Falla baixo. Rita começou a tremer: no olhar do portuguez, nas suas mãos encardidas de sangue, no seu todo de homem ebrio, encharcado e sujo, havia uma terrivel expressão de crime.

--D'onde vens tu?... segredou ella.

--De cuidar da nossa vida... Ahi tens a navalha com que fui ferido!

E atirou-lhe sobre a meza a navalha de Firmo, que a mulata conhecia como as palmas da mão.

--E elle?

--Está morto.

--Quem o matou?

--Eu.

Calaram-se ambos.

--Agora ... acrescentou o cavouqueiro, no fim de um silencio arquejado por ambos; estou disposto a tudo para ficar comtigo. Sahiremos os dois d'aqui para onde melhor fôr... Que dizes tu?

--E tua mulher?...

--Deixo-lhe as minhas economias de muito tempo e continuarei a pagar o collegio á pequena. Sei que não devia abandonal-a, mas pódes ter como certo que, ainda que não queiras vir commigo, não ficarei com ella! Não sei! já não a posso supportar! Um homem enfára-se! Felizmente minha caixa de roupa está ainda na Ordem e posso ir buscal-a pela manhã.

--E para onde iremos?

--O que não falta é pr'onde ir! Em qualquer parte estaremos bem. Tenho aqui sobre mim uns quinhentos mil réis, para as primeiras despezas. Posso ficar cá até ás cinco horas; são duas e meia; saio sem ser visto por Piedade; mando-te ao depois dizer o que arranjei, e tu irás ter commigo... Está dito? Queres?

Rita, em resposta, atirou-se ao pescoço d'elle e pendurou-se-lhe nos labios, devorando-o de beijos.

Aquelle novo sacrificio do portuguez; aquella dedicação extrema que o levava a arremeçar para o lado familia, dignidade, futuro, tudo, tudo por ella, enthusiasmou-a loucamente. Depois dos sobresaltos d'esse dia e d'essa noite, seus nervos estavam afiados e toda ella electrica.

Ah! não se tinha enganado! aquelle homemzarrão herculeo, de musculos de touro, era capaz de todas as meiguices do carinho.

--Então? insistio-elle.

--Sim, sim, meu captiveiro! respondeu a bahiana, fallando-lhe na bocca; eu quero ir comtigo; quero ser a tua mulata, o bem do teu coração! Tu és os meus feitiços!

E apalpando-lhe o corpo:--Mas como estás ensopado! Espera! espera! o que não falta aqui é roupa de homem pr'a mudar!... Podias ter uma recahida, cruzes! Tira tudo isso que está alagado! Eu vou accender o fogareiro e estende-se em cima o que é casimira, para te poderes vestir ás cinco horas. Tira as botas! Olha o chapéo como está! Tudo isto secca! Tudo isto secca! Mira, toma já um golle de paraty pr'atalhar a friage! Depois passa em todo o corpo. Eu vou fazer café!

Jeronymo bebeu um bom trago de paraty, mudou de roupa e deitou-se na cama de Rita.

--Vem pr'a cá ... disse, um pouco rouco.

--Espera! espera! O café está quasi prompto!

E ella só foi ter com elle, levando-lhe a chave na fumegante da perfumosa bebida que tinha sido a mensageira dos seus amores; assentou-se ao rebordo da cama e, segurando com uma das mãos o pires e com a outra a chicara, ajudava-o a beber, golle por golle, emquanto seus olhos o acarinhavam, scintillantes de impaciencia no antegoso d'aquelle primeiro enlace.

Depois, atirou fóra a saia e, só de camisa, lançou-se contra o seu amado, n'um frenezi de desejo doido.

Jeronymo, ao sentil-a inteira nos seus braços; ao sentir na sua pelle a carne quente d'aquella brasileira; ao sentir innundar-lhe o rosto e as espaduas, n'um effluvio de baunilha e cumarú, a onda negra e fria da cabelleira da mulata: ao sentir esmagarem-se no seu largo e pelludo collo de cavouqueiro os dois globos tumidos e macios, e nas suas coxas as coxas d'ella; sua alma derreteu-se, fervendo e borbolhando como um metal ao fogo, e sahio-lhe pela bocca, pelos olhos, por todos os póros do corpo, escandescente, em braza, queimando-lhe as proprias carnes e arrancando-lhe gemidos surdos, soluços irrepremiveis, que lhe sacudiam os membros, fibra por fibra, n'uma agonia extrema, sobrenatural, uma agonia de anjos violentados por diabos, entre a vermelhidão cruenta das labaredas do inferno.

E com um arranco de besta féra cahiram ambos prostados, arquejando. Ella tinha a bocca aberta, a lingoa fóra, os braços duros, os dedos inteiriçados, e o corpo todo a tremer-lhe da cabeça aos pés, continuamente, como se estivesse morrendo; ao passo que elle, de subito arremeçado longe da vida por aquella explosão inesperada dos seus sentidos, deixava-se mergulhar n'uma embriaguez deliciosa, atravez da qual o mundo inteiro e todo o seu passado fugiam como sombras fatuas. E, sem consciencia de nada que o cercava, nem memoria de si proprio, sem olhos, sem tino, sem ouvidos, apenas conservava em todo o seu ser uma impressão bem clara, viva, inextinguivel: o attrito d'aquella carne quente e palpitante, que elle em delirio apertou contra o corpo, e que elle ainda sentia latejar-lhe debaixo das mãos, e que elle continuava a comprimir machinalmente, como a criança que, já dormindo, affaga ainda as tetas em que matou ao mesmo tempo a fome e a sede com que veio ao mundo.

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