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O Cortiço

por Aluizio Azevedo

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Amanhecera um domingo alegre no cortiço, um bom dia de abril. Muita luz e pouco calor. As tinas estavam abandonadas; os córadoiros despidos. Taboleiros e taboleiros de roupa engommada sahiam das casinhas, carregados na maior parte pelos filhos das proprias lavadeiras que se mostravam agora quasi todas de fato limpo; os casaquinhos brancos avultavam por cima das saias de chita de côr. Desprezaram-se os grandes chapéos de palha e os aventaes de aniagem; agora as portuguezas tinham na cabeça um lenço novo de ramagens vistosas e as brazileiras haviam penteado o cabello e pregado nos cachos negros um ramalhete de dois vintens; aquellas traçavam no hombro chales de lã vermelha, e estas de crochet, de um amarello desbotado. Viam-se homens de corpo nú, jogando a placa, com grande algazarra. Um grupo de italianos, assentado debaixo de uma arvore, conversava ruidosamente, fumando cachimbo. Mulheres ensaboavam os filhos pequenos debaixo da bica, muito zangadas, a darem-lhe murros, a praguejar, e as crianças berravam, de olhos fechados, esperneando. A casa da Machona estava n'um reboliço, porque a familia ia sahir a passeio; a velha gritava, gritava Nênêm, gritava o Agostinho. De muitas outras sahiam cantos ou sons de instrumentos; ouviam-se harmonicas e ouviam-se guitarras, cuja discreta melodia era de vez em quando interrompida por um ronco forte de trombone. Os papagaios pareciam tambem mais alegres com o domingo e lançavam das gaiolas phrases inteiras, entre gargalhadas e assobios. Á porta de diversos commodos, trabalhadores descansavam, de calça limpa e camisa de meia lavada, assentados em cadeira, lendo e soletrando jornaes ou livros; um declamava em voz alta versos d'«Os Luziadas», com um empenho feroz, que o punha rouco. Transparecia n'elles o prazer da roupa mudada depois de uma semana no corpo. As casinhas fumegavam um cheiro bom de refogados de carne fresca, fervendo ao fogo. Do sobrado do Miranda só as duas ultimas janellas já estavam abertas e, pela escada que descia para o quintal, passava uma criada carregando baldes de agoas servidas. Sentia-se n'aquella quietação do dia inutil a falta do resfolegar afflicto das machinas da visinhança, com que todos estavam habituados. Para além do solitario capinzal do fundo a pedreira parecia dormir em paz o seu somno de pedra; mas, em compensação, o movimento era agora extraordinario á frente da estalagem e á entrada da venda. Muitas lavadeiras tinham ido para o portão, olhar quem passava; ao lado d'ellas o Albino, vestido de branco, com o seu lenço engommado ao pescoço, entretinha-se a chupar balas de assucar, que comprara ali mesmo ao taboleiro de um baleiro freguez do cortiço. Dentro da taverna, os martellos de vinho branco, os copos de cerveja nacional e os dois vintens de paraty ou laranginha succediam-se por cima do balcão, passando das mãos do Domingos e do Manoel para as mãos ávidas dos operarios e dos trabalhadores, que os recebiam com estrondosas exclamações de pandega. A Izaura, que fôra n'um pulo tomar o seu primeiro capilé, via-se tonta com os apalpões que lhe davam. Leonor não tinha um instante de socego, saltando de um lado para outro, com uma agilidade de mono, a fugir dos punhos callosos dos cavouqueiros que, entre risadas, tentavam agarral-a; e insistia na sua ameaça do costume: «que se queixava ao juiz de orfe!» mas não se ia embora, porque defronte da venda viera estacionar um homem que tocava cinco instrumentos ao mesmo tempo, com um acompanhamento desafinado de bombo, pratos e guizos. Eram apenas oito horas e já muita gente comia e palavreava na casa de pasto ao lado da venda. João Romão, de roupa mudada como os outros, mas sempre em mangas de camisa, apparecia de espaço a espaço, servindo os commensaes; e a Bertoleza, sempre suja e tisnada, sempre sem domingo nem dia santo, lá estava ao fogão, mexendo as panellas e enchendo os pratos. Um acontecimento, porém, veio revolucionar alegremente toda aquella confederação da estalagem. Foi a chegada da Rita Bahiana, que voltava depois de uma ausencia de mezes, durante a qual só déra noticias suas nas occasiões de pagar o aluguel do commodo. Vinha acompanhada por um moleque, que trazia na cabeça um enorme samburá carregado de compras feitas no mercado; um grande peixe espiava por entre folhas de alface com o seu olhar embaciado e triste, contrastando com as risonhas côres dos rabanetes, das cenouras e das talhadas de abobora vermelha. --Põe isso tudo ahi n'essa porta. Ahi no numero 9, pequeno! gritou ella ao moleque, indicando-lhe a sua casa, e depois pagou-lhe o carreto.--Podes ir embora, carapeta! Desde que do portão a bisparam na rua, levantou-se logo um côro de saudações. --Olha! quem ahi vem! --Olé! Bravo! É a Rita Bahiana! --Já te faziamos morta e enterrada! --E não é que o demo da mulata está cada vez mais sacudida?... --Então, coisa ruim! por onde andaste atirando esses quartos? --D'esta vez a coisa foi de esticar, hein?! Rita havia parado em meio do pateo. Cercavam-na homens, mulheres e crianças; todos queriam novas d'ella. Não vinha em trajo de domingo; trazia casaquinho branco, uma saia que lhe deixava ver o pé sem meia n'um chinello de polimento com enfeites de marroquim de diversas côres. No seu farto cabello, crespo e reluzente, puxado sobre a nuca, havia um molho de manjericão e um pedaço de baunilha espetado por um gancho. E toda ella respirava o asseio das brazileiras e um odor sensual de trevos e plantas aromaticas. Irrequieta, saracoteando o atrevido e rijo quadril bahiano, respondia para a direita e para a esquerda, pondo á mostra um fio de dentes claros e brilhantes que enriqueciam a sua physionomia com um realce fascinador. Acudio quasi todo o cortiço para recebel-a. Choveram abraços e as chufas do bom acolhimento. Por onde andara aquelle diabo, que não apparecia para mais de tres mezes? --Ora, nem me falles, coração! Sabe? pagode de roça! Que hei de fazer? é a minha cachaça velha!... --Mas onde estiveste tu enterrada tanto tempo, creatura? --Em Jacarepaguá. --Com quem? --Com o Firmo... --Oh! Ainda dura isso? --Cala a bocca! A coisa agora é seria! --Qual! Quem mesmo? tu? Passa fóra! --Paixões da Rita! exclamou o Bruno com uma risada. Uma por anno! Não contando as miudas! --Não! isso é que não! Quando estou com um homem não olho p'ra outro! Leocadia, que era perdida pela mulata, saltára-lhe ao pescoço ao primeiro encontro, e agora, defronte d'ella, com as mãos nas cadeiras, os olhos humidos de commoção, rindo, sem se fartar de vel-a, fazia-lhe perguntas sobre perguntas: --Mas porque não te mettes tu logo por uma vez com o Firmo? porque não te casas com elle? --Casar? protestou a Rita. N'essa não cáe a filha de meu pae! Casar? livra! Para que? para arranjar captiveiro? Um marido é peior que o diabo; pensa logo que a gente é escrava! Nada! qual! Deus te livre! Não ha como viver cada um senhor e dono do que é seu! E sacudio todo o corpo n'um movimento de desdem que lhe era peculiar. --Olha só que peste! considerou Augusta, rindo, muito molle, na sua honestidade preguiçosa. Esta tambem achava infinita graça na Rita Bahiana e seria capaz de levar um dia inteiro a vel-a dansar o chorado. Florinda ajudava á mãe a preparar o almoço, quando lhe cheirou que chegara a mulata, e veio logo correndo, a rir-se desde longe, cahir-lhe nos braços. A propria Marcianna, de seu natural sempre triste e mettida comsigo, appareceu á janella, para saudal-a. A das Dôres, com as saias arrepanhadas no quadril e uma toalha por cima amarrada pela parte de traz e servindo de avental, o cabello ainda por pentear, mas entrouxado no alto da cabeça, abandonou a limpeza que fazia em casa e veio ter com a Rita, para dar-lhe uma palmada e gritar-lhe no nariz: --D'esta vez tomaste um fartão, hein, mulata assanhada?... E, ambas a cahirem de riso, abraçaram-se em intimidade de amigas, que não têm segredos de amor uma para a outra. A Bruxa veio em silencio apertar a mão de Rita e retirou-se logo. --Olha a feiticeira! bradou esta ultima, batendo no hombro da idiota. Que diabo você tanto reza, tia Paula? Eu quero que você me dê um feitiço para prender meu homem! E tinha uma phrase para cada um que se aproximasse. Ao ver Dona Isabel, que appareceu toda cerimoniosa na sua saia da missa e com o seu velho chale de Macáo, abraçou-a e pedio-lhe uma pitada, que a senhora recusou, resmungando: --Sae d'ahi, diabo! --Cadê Pombinha? perguntou a mulata. Mas, nessa occasião, Pombinha acabava justamente de sahir de casa, muito bonita e asseiada com um vestido novo de setineta. As mãos occupadas com o livro de rezas, o lenço e a sombrinha. --Ah! Como está chique! exclamou a Rita, meneando a cabeça. É mesmo uma flor!--E logo que Pombinha se pôz ao seu alcance, abraçou-lhe a cintura e deu-lhe um beijo.--O João Costa se não te fizer feliz como os anjos sou capaz de abrir-lhe o casco com o salto do chinello! Juro pelos cabellos do meu homem!--E depois, tornando-se séria, perguntou muito em voz baixa á Dona Isabel:--Já veio?...--ao que a velha respondeu negativamente com um desconsolado e mudo abanar de orelhas. O circumspecto Alexandre, sem querer declinar da sua gravidade, pois que estava fardado e prompto para sahir, contentou-se em fazer com a mão um cumprimento á mulata, ao qual retrucou esta com uma continencia militar e uma gargalhada que o desconcertaram. Iam fazer commentarios sobre o caso, mas a Rita, voltando-se para o outro lado, gritou: --Olha o velho Liborio! Como está cada vez mais duro!... Não se entrega por nada o demonio do judeu! E correu para o lugar, onde estava, aquecendo-se ao bello sol de abril, um octogenário, secco, que parecia mumificado pela idade, a fumar n'um resto de cachimbo, cujo pipo desapparecia na sua bocca já sem labios. --Ê! ê! fez elle, quando a mulata se approximou. --Então? perguntou Rita, abaixando-se para tocar-lhe no hombro. Quando é o nosso negocio?... Mas você ha de deixar-me primeiro abrir o bahuzinho de folha!... Liborio rio-se com as gengivas, tentando apalpar as coxas da Bahiana, por caçoada, affectando luxuria. Todos acharam graça n'esta pantominice do velhinho, e então, a mulata, para completar a brincadeira, deu uma volta entufando as saias e sacudio-as depois sobre a cabeça d'elle, que se fingio indignado, a fungar exageradamente. E entre a alegria levantada pela sua reapparição no cortiço, a Rita deu conta do que pintára na sua ausencia; disse o muito que festou em Jacarepaguá; o entrudo que fizera pelo Carnaval. Tres mezes de folia! E, afinal, abaixando a voz, segredou ás companheiras que á noite teriam um pagodinho de violão. Podiam contar como certo! Esta ultima noticia causou verdadeiro jubilo no auditorio. As patuscadas da Rita Bahiana eram sempre as melhores da estalagem. Ninguem como o diabo da mulata para armar uma funcção que ia pelas tantas da madrugada, sem saber a gente como foi que a noite se passou tão depressa. Além de que «era aquella franqueza! emquanto houvesse dinheiro ou credito, ninguem morria com a tripa murcha ou com a guéla secca!» --Diz me cá, ó Leocadinha! quem são aquelles jururús que estão agora no 35? indagou ella, vendo o Jeronymo á porta de casa com a mulher. --Ah! explicou a interrogada, é o Jeronymo e mais a Piedade, um casal que inda não conheces. Entrou ao depois que arribaste. Boa gente, coitados! Rita carregou para dentro de seu commodo as provisões que trouxera; abrio logo a janella e poz-se a cantar. Sua presença enchia de alegria a estalagem toda. O Firmo, o mulato com quem ella agora vivia mettida, o demonio que a desencabeçara para aquella maluqueira de Jacarepaguá, ia lá jantar esse dia com um amigo. Rita declarava isto ás companheiras, amolando uma faquinha no tijollo da sua porta, para escamar o peixe; emquanto os gatos, aquelles mesmos que perseguiam o sardinheiro, vinham, um a um, chegando-se todos só com o ruido da afiação do ferro. Ao lado direito da casinha da mulata, no numero 8, a das Dores preparava-se tambem para receber n'esse dia o seu amigo e dispunha-se a fazer uma limpeza geral nas paredes, nos tectos, no chão e nos moveis, antes de metter-se na cozinha. Descalça, com a saia levantada até ao joelho, uma toalha na cabeça, os braços arregaçados, viam-na passar de carreira, de casa para a bica e da bica outra vez para casa, carregando pezados baldes cheios d'agoa. E d'ahi a pouco appareciam ajudantes gratuitos para os arranjos do jantar, tanto do lado da das Dores, como do lado da Rita Bahiana. O Albino encarregou-se de varrer e arrumar a casa d'esta, entretanto que a mulata ia para o fogão preparar os seus quitutes do norte. E veio a Florinda, e veio a Leocadia, e veio a Augusta, impacientes todas ellas pelo pagode que havia de sahir á noite, depois do jantar. Pombinha não appareceu durante o dia, porque estava muito occupada, aviando a correspondencia dos trabalhadores e das lavadeiras: serviço este que ella deixava para os domingos. N'uma pequena mesa, coberta por um pedaço de chita, com o tinteiro ao lado da caixinha de papel, a menina escrevia, emquanto o dono ou dona da carta dictava em voz alta o que queria mandar dizer á familia ou a algum máo devedor de roupa lavada. E ia lançando tudo no papel, apenas com algumas ligeiras modificações, para melhor, no modo de exprimir a idéa. Prompta uma carta, subscriptava-a, entregava-a ao dono e chamava por outro, ficando a sós com um de cada vez, pois que nenhum d'elles queria dar o seu recado em presença de mais ninguem senão de Pombinha. De sorte que a pobre rapariga ia accumulando no seu coração de donzella toda a summula d'aquellas paixões e d'aquelles resentimentos, ás vezes mais fetidos do que a evaporação de um lameiro em dias de grande calor. --Escreva lá, Nhan Pombinha! disse junto d'ella um cavouqueiro, coçando a cabeça; mas faça letra grande, que é pr'a mulher entender! Diga-lhe que não lhe mando d'esta feita o dinheiro que me pedio, porque agora não no tenho e estou muito acossado de apertos; mas que lh'o prometto pr'o mez. Ella que se va arrajando por lá, que eu cá sabe Deus como me coso; e que, se o Luiz, o irmão, resolver de vir, que m'o mande dizer com tempo, para ver se se lhe dá furo á vida por aqui; que isto de vir sem inda ter pr'onde, é fraco negocio, porque as coisas por cá não correm lá para que digamos! E depois que Pombinha escreveu, accrescentou: --Que eu tenho sentido muito a sua falta d'ella; mas tambem sou o mesmo e não me metto em porcarias e relaxamentos; e que tenciono mandar buscal-a, logo que Deus me ajude, e a Virgem! Que elle não tem de que se arreliar por mór do dinheiro não ir d'esta; que, como lá diz o outro: quando não ha el-rei o perde! Ah! (ia esquecendo!) quanto á Libania, é tirar d'ahi o juizo! que a Libania se atirou aos cães e faz hoje má vida na rua de São Jorge; que se esqueça d'ella por vez e perca o amor ás duas coroas que lhe emprestou! E a menina escrevia tudo, tudo, apenas interrompendo o seu trabalho para fitar, com a mão no queixo, o cavouqueiro, á espera de nova phrase.

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