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O Cortiço

por Aluizio Azevedo

8

No dia seguinte, Jeronymo largou o trabalho á hora de almoçar e, em vez de comer lá mesmo na pedreira com os companheiros, foi para casa. Mal tocou no que a mulher lhe apresentou á mesa e metteu-se logo depois na cama, ordenando-lhe que fosse ter com João Romão e lhe dissesse que elle estava incommodado e ficava de descanço aquelle dia.

--Que tens tu Jeromo?...

--Morrinhento, filha. Vae anda!

--Mas sentes-te mal?...

--Ó mulher! vae fazer o que te disse e ao depois então darás á lingua!

--Valha-me a Virgem! Não sei se haverá chá preto na venda!

E ella sahio, afflicta. Qualquer novidade no marido, por menor que fosse, punha-a doida, «Pois um homem rijo, que nunca cahia doente?

Seria a febre amarella?...» Jesus, Santo Filho de Maria, que nem pensar n'isso era bom! Credo!

A noticia espalhou-se logo ali entre as lavadeiras.

--Foi da friage da noite, affirmou a Bruxa; e deu um pulo á casa do trabalhador para receitar.

O doente repellio-a, pedindo-lhe que o deixasse em paz; que elle do que precisava era de dormir. Mas não o conseguio: atraz da Bruxa correu a segunda mulher, e a terceira, e a quarta; e, afinal, fez-se durante muito tempo em sua casa um entrar e sahir de saias. Jeronymo perdeu a paciencia e ia protestar brutalmente contra semelhante invasão, quando, pelo cheiro, sentio que a Rita se approximava tambem.

--Ah!

E desfranzio-se-lhe o rosto.

--Bons dias! Então que é isso, vizinho? Você cahio doente com a minha chegada? Se tal soubéra não vinha!

Elle rio-se. E era a primeira vez que ria desde a vespera.

A mulata aproximou-se da cama.

Como principiara a trabalhar esse dia, tinha as saias apanhadas na cintura e os braços completamente nús e frios da lavagem. O seu casaquinho branco abria-lhe no pescoço, mostrando parte do peito côr de canella.

Jeronymo apertou-lhe a mão.

--Gostei de vel-a hontem dansar, disse, muito mais animado.

--Já tomou algum remedio?...

--A mulher fallou ahi em chá preto...

--Chá! Que asneira! Chá é agoa morna! Isso que você tem é uma resfriagem. Vou lhe fazer uma chicara de café bem forte para você beber com um gole de paraty, e me dirá se súa ou não, e fica depois fino e prompto para outra! Espere ahi!

E sahio logo, deixando todo o quarto impregnado d'ella.

Jeronymo, só com respirar aquelle almiscar, parecia melhor. Quando Piedade tornou, pesada, triste, resmungando comsigo mesma, elle sentio que principiava a enfaral-a; e, quando a infeliz se approximou do marido, este, fora do costume, notou-lhe o cheiro azedo do corpo.

Voltou-lhe então o máo-estar e desappareceu o ultimo vestigio do sorriso que elle tivera havia pouco.

--Mas que sentes tu, Jeromo?... Falla, homem! Não me dizes nada! Assim m'assustas... Que tens, diz'lo!

--Não cozas o chá. Vou tomar outra coisa...

--Não queres o chá? Mas é o remedio, filhinho de Deus!

--Já te disse que tomo oitra mezinha. Oh!

Piedade não insistio.

--Queres tu um escalda-pés?...

--Tomal-o tu!

Ella calou-se. Ia a dizer que nunca o vira assim tão aspero e secco, mas receiou importunal-o. «Era naturalmente a molestia que o punha resinguento.»

Jeronymo fechára os olhos, para a não ver, e ter-se-ia, se pudesse, fechado por dentro, para a não sentir. Ella, porém, coitada! fôra assentar-se á beira da cama, humilde e solicita, a suspirar, vivendo n'aquelle instante, pura e exclusivamente, para o seu homem, fazendo-se muito escrava d'elle, sem vontade propria, acompanhando-lhe os menores gestos com o olhar, inquieta, que nem um cão que, ao lado do dono, procura adivinhar-lhe as intenções.

--'Stá bem, filha, não vaes tratar do teu serviço?...

--Não te dê isso cuidado! Não parou o trabalho! Pedi á Leocadia que me esfregasse a roupa. Ella hoje tinha pouco que fazer e...

--Andaste mal...

--Ora! Não ha tres dias que fiz outro tanto por ella... E de mais, não foi que tivesse o homem doente, era a calaçaria do capinzal!

--Bom, bom, filha! não digas mal da vida alheia!... Melhor seria que estivesses á tua tina em vez de ficar ahi a murmurar do proximo... Anda! vae tomar conta das tuas obrigações.

--Mas estou-te a dizer que não ha transtorno!...

--Transtorno já é estar eu parado; e peior será pararem os dois!

--Eu queria ficar a teu lado, Jeromo!...

--E eu acho que isso é tolice! Vae! anda!

Ella ia retirar-se, como um animal enxotado, quando deu com a Rita, que entrava muito ligeira e sacudida, trazendo na mão a fumegante palangana de café com paraty e no hombro um cobertor grosso para dar um suadoiro ao doente.

--Ah! fez Piedade, sem encontrar uma palavra para a mulata.

E deixou-se ficar.

Rita, despreoccupadamente, alegre e bemfazeja como sempre, pousou a vasilha sobre a commoda do oratorio e abrio o cobertor.

--Isto é que o vae pôr fino! disse. Vocês tambem, seus portuguezes, por qualquer coisinha ficam logo pr'a morrer, com uma cara da ultima hora! E ai, ai, Jesus, meu Deus! Ora esperte-se! Não me seja maricas!

Elle rio-se, assentando-se na cama.

--Pois não é assim mesmo? perguntou ella á Piedade, apontando para o carão barbado de Jeronymo. Olhe só pr'aquella cara e diga-me se não está a pedir que o enterrem!

A portugueza não dizia nada, sorria contrafeita, no intimo, resentida contra aquella invasão de uma estranha nos cuidados pelo seu homem.

Não era a intelligencia nem a razão o que lhe apontava o perigo, mas o instincto, o faro subtil e desconfiado de toda a femea pelas outras, quando sente o seu ninho exposto.

--Está-me a parecer que agora te achas melhor, hein?... desembuchou afinal, procurando o olhar do marido, sem conseguir disfarçar de todo o seu descontentamento.

--Só com o cheiro! reforçou a mulata, apresentando o café ao doente. Beba, ande! beba tudo e abafe-se! Quero, quando voltar logo, encontral-o prompto, ouvio?--E acrescentou fallando á Piedade, em tom mais baixo e pousando-lhe a mão no hombro carnudo:--Elle d'aqui a nada deve estar ensopado de suor; mude-lhe toda a roupa e dê-lhe dois dedos de paraty, logo que peça agua. Cuidado com o vento!

E sahio expedita, agitando as saias, d'onde se evolavam effluvios de mangerona.

Piedade chegou-se então para o cavouqueiro, que já tinha sobre as pernas o cobertor offerecido pela Rita, e, ajudando-o a levar a tigela á bocca, resmungou:

--Deus queira que isto não te vá fazer mal em vez de bem!... Nunca tomas café, nem gostas!...

--Isto não é por gosto, filha, é remedio!

Elle com effeito nunca entrara com o café e ainda menos com a cachaça; mas engolio de uma assentada o conteúdo da tigela, puxando em seguida o cobertor até ás ventas.

A mulher tratou de abafar-lhe bem os pés e foi buscar um chale para lhe cobrir a cabeça.

--Trata de socegar! Não te mexas!

E dispôz-se a ficar junto da cama, a vigial-o, só andando na ponta dos pés, abafando a respiração, correndo a cada instante á porta de casa para pedir que não fizessem tanta bulha lá fóra; toda ella desassocegada, numa afflicção quasi supersticiosa por aquelle incommodo de seu homem. Mas Jeronymo não levou muito que a não chamasse para lhe mudar a roupa. O suor inundava-o.

--Ainda bem! exclamou ella, radiante.

E, depois de fechar hermeticamente a porta do quarto e metter um punhado de roupa suja n'uma fresta que havia n'uma das paredes, saccou-lhe fóra a camisa molhada, enfiando-lhe logo outra pela cabeça; em seguida tirou-lhe as ceroulas e começou, munida de uma toalha, a enxugar-lhe todo o corpo, principiando pelas costas, passando depois ao peito e aos sovacos, descendo logo ás nadegas, ao ventre e ás pernas, e esfregando sempre com tamanho vigor de pulso, que era antes uma maçagem que lhe dava; e tanto assim que o sangue do cavouqueiro se revolucionou.

E a mulher, a rir-se, lisongeada, ralhava:

--Tem juizo! Acommoda-te! Não vês que estás doente?...

Elle não insistio. Agasalhou-se de novo e pedio agua.

Piedade foi buscar o paraty.

--Bebe isto, não bebas a agua agora.

--Isto é cachaça!

--Foi a Rita que disse para te dar...

Jeronymo não precisou de mais nada para beber de um trago os dois dedos de restillo que havia no copo.

Sobrio como era, e depois d'aquelle despendio de suor, o alcool produzio-lhe logo de prompto o effeito voluptuoso e agradavel da embriaguez nos que não são bebedos: um delicioso desfallecer de todo o corpo; alguma coisa do longo espreguiçamento que antecede á satisfação dos sexos, quando a mulher, tendo feito esperar por ella algum tempo, aproxima-se afinal de nós, n'uma avidez gulosa de beijos.

Agora, no conforto da sua cama, na doce penumbra do quarto, com a roupa fresca sobre a pelle, Jeronymo sentia-se bem, feliz por ver-se longe da pedreira ardente e do sol caustico; ouvindo, de olhos fechados, o rom-rom monotono da machina de massas, arfando ao longe, e o zum-zum das lavadeiras a trabalharem, e, mais distante, um interminavel cantar de gallos á porfia, emquanto um dobre de sinos rolava no ar, tristemente, annunciando um defunto da parochia.

Quando Piedade chegou lá fóra, dando parte do bom resultado do remedio, a Rita correu de novo ao quarto do doente.

--Então, que me diz agora? Sente-se ou não melhorzinho?

Elle voltou para a rapariga o seu olhar de animal prostrado e, por unica resposta, passou-lhe o braço esquerdo na cintura e procurou com a mão direita segurar a d'ella. Queria com isto traduzir o seu reconhecimento, e a mulata assim o entendeu, tanto que consentiu; mal porém a sua carne lhe tocou na carne, um desejo ardente apossou-se d'elle; uma vontade desensoffrida de senhorear-se no mesmo instante d'aquella mulher e possuil-a inteira, devoral-a num só hausto de luxuria, trincal-a como um cajú.

Rita, ao sentir-se empolgar pelo cavouqueiro, escapou-lhe das garras com um pulo.

--Olha que peste! Faça-se de tolo, que digo á sua mulher, hein? Ora vamos lá!

Mas, como a Piedade entrava na salinha ao lado, disfarçou logo, acrescentando n'outro tom:--Agora é tratar de dormir e mudar de roupa, se suar outra vez. Até logo!

E sahio.

Jeronymo ouvio as suas ultimas palavras já de olhos fechados e, quando Piedade entrou no quarto, parecia succumbido de fraqueza. A lavadeira approximou-se da cama do marido em ponta de pés, puxou-lhe o lençol mais para cima do peito e afastou-se de novo, abafando os passos. Á porta de entrada a Augusta, que fora fazer uma visita ao enfermo, perguntou-lhe por este com um gesto interrogativo; Piedade respondeu sem fallar, pondo a mão no rosto e vergando d'esse lado a cabeça, para exprimir que elle agora estava dormindo.

As duas sahiram para fallar á vontade; mas, n'essa occasião, lá fóra no pateo da estalagem, acabava de armar-se um escandalo medonho. Era o caso que o Henriquinho da casa do Miranda ficava ás vezes á janella do sobrado, nas horas de preguiço, entre o almoço e o jantar, entretido a ver a Leocadia lavar, seguindo-lhe os movimentos uniformes do grosso quadril e o tremular das redondas tetas á larga dentro do cabeção de chita. E, quando a pilhava sozinha, fazia-lhe signaes bregeiros, piscava lhe o olho, batendo com a mão direita aberta sobre a mão esquerda fechada. Ella respondia, indicando com o pollegar o interior do sobrado, como se dissesse que fosse procurar a mulher do dono da casa.

N'aquelle dia, porém, o estudante appareceu á janella, trazendo nos braços um coelhinho todo branco, que elle na vespera arrematára n'um leilão de festa. Leocadia cobiçou o bichinho e, correndo para o deposito de garrafas vasias, que ficava por debaixo do sobrado, pedio com muito empenho ao Henrique que lh'o désse. Este, sempre com o seu systema de conversar por mimica, declarou com um gesto qual era a condição da dadiva.

Ella meneou a cabeça affirmativamente, e elle fez-lhe signal de que o esperasse por detraz do cortiço, no capinzal dos fundos.

A familia do Miranda havia sahido. Henrique, mesmo com a roupa de andar em casa e sem chapéo, desceu á rua, ganhou um terreno que existia á esquerda do sobrado e, com o seu coelho debaixo do braço, atirou-se para o capinzal. Leocadia esperava por elle debaixo das mangueiras.

--Aqui não! disse ella, logo que o vio chegar. Aqui agora podem dar com a gente!...

--Então onde?

--Vem cá!

E tomou á sua direita, andando ligeira e meio vergada por entre as plantas. Henrique seguio-a no mesmo passo, sempre com o coelho sobraçado. O calor fazia-o suar e esfogueava-lhe as faces. Ouvia-se o martellar dos ferreiros e dos trabalhadores da pedreira.

Depois de alguns minutos, ella parou n'um lugar plantado de bambús e bananeiras, onde havia o resto de um telheiro em ruinas.

--Aqui!

E Leocadia olhou para os lados, assegurando-se de que estavam a sós. Henrique, sem largar o coelho, atirou-se sobre ella, que o conteve:

--Espera! preciso tirar a saia; está encharcada!

--Não faz mal! segredou elle, impaciente no seu desejo.

--Póde me vir um corrimento!

E sacou fóra a saia de lã grossa, deixando ver duas pernas, que a camisa a custo só cobria até ao joelho, grossas, massiças, de uma brancura levemente rósea e toda marcada de mordeduras de pulgas e mosquitos.

--Avia-te! Anda! apressou ella, lançando-se de costas no chão e arregaçando a fralda até á cintura; as coxas abertas.

O estudante atirou-se sofrego, sentindo-lhe a frescura da sua carne de lavadeira, mas sem largar as pernas do coelho.

Passou-se um instante de silencio entre os dois, em que as folhas seccas do chão rangeram e farfalharam.

Olha! pedio ella, faze-me um filho, que eu preciso alugar-me de ama de leite... Agora estão pagando muito bem as amas! A Augusta Carne Molle, n'esta ultima barriga, tomou conta de um pequeno ahi na casa de uma familia de tratamento, que lhe dava setenta mil reis por mez!... E muito bom passadio!... Sua garrafa de vinho todos os dias!... Se me arranjares um filho dou-te outra vez o coelho!

E o pobre brutinho, cujas pernas o estudante não largava, começou a queixar-se dos repellões que recebia cada vez mais accelerados.

--Olha que matas o bichinho! reclamou a lavadeira. Não batas assim com elle! mas não o soltes, hein!

Ia dizer ainda alguma coisa, mas acudio-lhe o espasmo e ella fechou os olhos e pôz-se a dar com a cabeça de um lado para outro, rilhando os dentes.

N'isto, passos rapidos fizeram-se sentir galgando as plantas, na direcção em que os dois estavam; e Henrique, antes de ser visto, lobrigou a certa distancia a insociavel figura do Bruno.

Não lhe deu tempo a que se approximasse; de um salto galgou por detraz das bananeiras e desappareceu por entre o mattagal de bambús, tão rapido como o coelho que, vendo se livre, ganhára pela outra banda o caminho do capinzal.

Quando o ferreiro, logo em seguida, chegou perto da mulher, esta ainda não tinha acabado de vestir a saia molhada.

--Com quem te esfregavas tu, sua vacca?! bradou elle, a botar os bofes pela bocca.

E, antes que ella respondesse, já uma formidavel punhada a fazia rolar por terra.

Leocadia abrio n'um berreiro. E foi debaixo de uma chuva de bofetadas e pontapés que acabou de amarrar a roupa.

--Agora eu vi! sabes? Nega se fores capaz!

--Vá á pata que o pôz! exclamou ella, com a cara que era um tomate. Já lhe disse que não quero saber de você pr'a nada, seu bebado!

E, vendo que elle ia recomeçar a dansa, abaixou-se depressa, segurou com ambas as mãos um matacão de granito que encontrou a seus pés, e gritou, erguendo-o sobre a cabeça:

--Chega-te pr'a cá e verás se te abro aqui mesmo ou não o casco!

O ferreiro comprehendeu que ella era capaz de fazer o que dizia e estacou livido e offegante.

--Arme a trouxa e rua! sabe?

--Olha a desgraça! Tinha de muito assentado de ir! Queria era uma occasião! Nem preciso de você pra nada, fique sabendo!

E, para metter-lhe mais raiva, acrescentou, empinando a barriga:--Já cá está dentro com que hei de ganhar a vida! Alugo-me de ama! Ou pensará que todos são como você, que nem para fazer um filho serve, diabo do sem-prestimo?

--Mas não me has de levar nada de casa! Isso te juro eu, biraia!

--Ah, descance! que não levarei nada do que é seu, nem preciso!

--Põe essa pedra no chão!

--Um corno! Eu arrumo-l'a na cabeça se te chegas pr'a cá!

--Sim, sim, sim, com tanto que te musques por uma vez!

--Pois então despache o beco!

Elle virou-lhe as costas e tornou lentamente por onde viera, de cabeça pendida, as mãos nas algibeiras das calças, aparentando agora um soberano desprezo pelo que se passava.

Só então foi que ella se lembrou do coelho.

--Ora gaitas! disse, endireitando-se e tomando direcção contraria á do marido.

Este fôra d'ahi direito ao cortiço narrar, a quem quizesse ouvir, o que se acabava de dar. O escandalo assanhou a estalagem inteira, como um jacto de agua quente sobre um formigueiro. «Ora aquillo tinha de acontecer mais hoje mais amanhã!--Um bello dia a casa vinha abaixo!--A Leocadia parecia não desejar senão isso mesmo!» Mas ninguem atinava com quem diabo pilhára o Bruno a mulher no capinzal. Fizeram-se mil hypotheses; lembraram-se nomes e nomes, sem se chegar a nenhum resultado satisfactorio. O Albino tentou logo arranjar a reconciliação no casal, jurando que o Bruno estava enganado com certeza e que vira mal. «Leocadia era uma excellente rapariga, incapaz de tamanha safadagem!»

O ferreiro tapou-lhe a bocca com uma bolacha, e ninguem mais se metteu a congraçal-os.

Entretanto, o Bruno entrara em casa e lançava pela janella cá para fóra tudo o que ia encontrando pertencente á mulher. Uma cadeira fez-se pedaços contra as pedras, depois veio um candieiro de kerozene, uma trouxa de roupa, saias e casaquinhos de chita, caixas de chapéos cheias de trapos, uma gaiola de passaro, uma chaleira; e tudo era arremessado com furia ao meio da área, entre o silencio commovido dos que assistiam ao despejo. Um chim, que entrára para vender camarões e parara distrahido perto da janella do ferreiro, levou na cabeça com uma bilha da Bahia e berrava como criança que acaba de ser esbordoada. A Machona, que não podia ouvir ninguem gritar mais alto do que ella, cahio-lhe em cima aos murros e o pôz fóra do portão com tremenda descompostura. «Era o que faltava que viesse tambem aquelle salamaleque do inferno para azoinar uma creatura mais do que já estava!» Dona Isabel, com as mãos crusadas sobre o ventre, tinha para aquella destruição um profundo olhar de lastima. Augusta meneava a cabeça tristemente, sem conceber como havia mulheres que procuravam homem, tendo um que lhes pertencia. A Bruxa, indifferente, não interrompêra sequer o seu trabalho; ao passo que a das Dôres, de mãos nas cadeiras, a saia pelo meio das canellas, um cigarro no canto da boca, encarava desdenhosa a sanha daquelle marido, tão brutal como o d'ella o fôra.

--Sempre os mesmos pedaços d'asno!... commentava franzindo o nariz. Se a tôla da mulher só lhes procura agradar e fazer-lhes o gosto, ficam enjoados, e, se ella não toma a sério a borracheira do casamento, dão por páos e por pedras, como esta besta! Uma sucia, todos elles!

Florinda ria, como de tudo, e a velha Marcianna queixava-se de que lhe respingaram kerozene na roupa estendida ao sol. N'essa occasião justamente, um sacco de café, cheio de borra, deu duas voltas no ar e espalhou o seu conteúdo, pintalgando de pontos negros os coradoiros.

Fez-se logo um alarido entre as lavadeiras. «Aquillo não tinha geito, que diabo! Armavam lá as suas turras e os outros é que haviam de aturar?!... Cebo! que os mais não estavam dispostos a supportar as furias de cada um! Quem parira Matheos que o embalasse! Se agora, todas as vezes que a Leocadia se fosse espojar no capinzal, o bruto do marido tinha de sujar d'aquelle modo o trabalho da gente, ninguem mais poderia ganhar ali a sua vida! Que espiga!» Pombinha chegára á porta do numero 15, dando fé do barulho, com uma costura na mão, e Nênêm, toda afogueada do ferro de engommar, perguntava, com um frouxo de riso, se o Bruno ia reformar a mobilia da casa. A Rita fingia não ligar importancia ao facto e continuava a lavar á sua tina. «Não faziam tanta festa ao tal casamento? Pois que aguentassem! Ella estava bem livre de soffrer uma d'aquellas!» O velho Liborio chegára-se, para ver se, no meio da confusão, apanhava alguma coisa do despejo, e a Machona, notando que o Agostinho fazia o mesmo, berrou-lhe do logar em que se achava:

--Sae d'ahi, safado! Toca lá no quer que seja, que te arranco a pelle do rabo!

Um irmão do santissimo entrára na estalagem, com a sua capa encarnada, a sua vara de prata em uma das mãos, na outra a salva do dinheiro, e parára em meio do pateo, supplicando, muito fanhoso: «Uma esmola para a cera do Sacramento!» As mulheres abandonaram por um instante as tinas e foram beijar devotamente a columbina imagem do Espirito Santo. Pingaram na salva moedinhas de vintem.

Todavia, o Bruno acabava afinal de despejar o que era da mulher e sahia de novo de casa, dando uma volta feroz á fechadura. Atravessou por entre o murmurante grupo dos curiosos que permanecia defronte da sua porta, mudo, com a cara fechada, jogando os braços, como quem, apezar de ter feito muito, não satisfizera ainda completamente a sua colera.

Leocadia appareceu pouco depois e, vendo por terra tudo que era seu, partido e inutilisado, apoderou-se de furia e avançou sobre a porta, que o marido acabava de fechar, arremettendo com as nadegas contra as duas folhas, que cederam logo, indo ella cahir lá dentro de barriga para cima.

Mas ergueu-se, sem fazer caso das risadas que rebentaram cá fóra e, escancarando a janella com arremeço, começou por sua vez a arrazar e destruir tudo que ainda encontrara em casa.

Então principiou a verdadeira devastação. E a cada objecto que ella varria para o pateo, gritava sempre: «Upa! Toma, diabo!»

--Ahi vae o relogio! Upa! Toma, diabo!

E o relogio espatifou-se na calçada.

--Ahi vae o alguidar!

--Ahi vae o jarro!

--Ahi vão os copos!

--O cabide!

--O garrafão!

--O bacio!

Um riso geral, communicativo, absoluto, abafava o barulho da louça quebrando-se contra as pedras. E Leocadia já não precisava acompanhar os objectos com a sua phrase de imprecação, porque cada um d'elles era recebido cá fóra com um côro que berrava:

--Upa! Toma, diabo!

E a limpeza proseguia. João Romão acudio de carreira, mas ninguem se incommodou com a presença d'elle. Já defronte da porta do Bruno havia uma montanha de cacos accumulados; e o destroço continuava ainda, quando o ferreiro reappareceu, vermelho como malagueta, e foi galgando a casa, com um raio de roda de carro na mão direita.

Os circumstantes o seguiram, atropelladamente, num clamor.

--Não dá!

--Não póde!

--Prende!

--Não deixa bater!

--Larga o páo!

--Segura!

--Aguenta!

--Cérca!

--Toma o porrete!

E Leocadia escapou afinal das páoladas do marido, a quem o povaréo desarmára num fecha-fecha.

--Ordem! Ordem! Vá de rumor! exclamava o vendeiro, a quem, aproveitando a confusão, haviam já ferrado um pontapé por detraz.

O Alexandre, que vinha chegando do serviço n'esse momento, apressou-se a correr para o logar do conflicto e cheio de autoridade, intimou o Bruno a que se contivesse e deixasse a mulher em paz, sob pena de seguir para a estação no mesmo instante.

--Pois você não vê esta gallinha, que apanhei hoje com a boca na botija, não me vem ainda por cima dar cabo de tudo?!... interrogou o Bruno, espumando de raiva e quasi sem folego para fallar.

--Porque você pôz em cacos o que é meu! gritou Leocadia.

--Está bom! está bom! disse o policia, procurando dar á voz inflexões autoritarias e reconciliadoras. Falle cada um por sua vez!

Seu marido ... accrescentou elle, voltando-se para a accusada, diz que a senhora...

--É mentira! interrompeu ella.

--Mentira?! É boa! Tinhas a saia despida e um homem por cima!

--Quem era?--Quem foi?--Quem era o homem? interrogaram todos a um só tempo.

--Quem era elle, no fim de contas? inquirio tambem Alexandre.

--Não lhe pude ver as fuças!... respondeu o ferreiro; mas, se o apanho, arrancava-lhe o sangue pelas costas!

Houve um côro de gargalhadas.

--É mentira! repetio Leocadia, agora succumbida por uma reacção de lagrimas. Ha muito tempo que este malvado anda caçando pretexto para romper commigo e, como eu não lh'o dou...

Uma explosão de soluços a interrompeu.

D'esta vez não riram, mas um bichanar de cochichos formou-se em torno do seu pranto.

--Agora ... continuou ella, enxugando os olhos na costa da mão; não sei o que será de mim, porque este homem, além de tudo, escangalhou-me até o que eu trouxe quando me casei com elle!...

--Não disseste que já tinhas ahi dentro com que ganhar a vida?... E andar!

--É falso! soluçou Leocadia.

--Bem, interveio Alexandre, embainhando o seu refle: está tudo terminado! Seu marido vae recebel-a em boa paz...

--Eu?! esfuziou o ferreiro. Você não me conhece!

--Nem eu queria! retorquio a mulher. Prefiro metter-me com um cavallo de tilbury a ter de aturar este bruto!

E, catando em casa alguma coisa sua que ainda havia, e recolhendo do montão dos cacos o que lhe pareceu aproveitavel, fez de tudo uma grande trouxa e foi chamar um carregador.

A Rita sahio-lhe ao encontro.

--Para onde vais tu?... perguntou-lhe em voz baixa.

--Não sei, filha, por ahi!... Hei de encontrar um furo!... Os cães não vivem?...

--Espera um instante ... disse a mulata. Olha, empurra a trouxa ahi para dentro do meu commodo.--E correndo ao Albino, que lavava:--Passa-me no sabão aquella roupa, ouviste? E, quando Firmo acordar, diz-lhe que precisei ir á rua.

Depois, deu um pulo ao quarto, mudou a saia molhada, atirou nos hombros o seu chale de crochet e, batendo nas costas da campanheira, segredou-lhe:

--Anda cá commigo! não ficarás á tôa!

E as duas sahiram, ambas sacudidas, deixando atraz de si suspensa a curiosidade do cortiço inteiro.

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