9
Passaram-se semanas. Jeronymo tomava agora, todas as manhãs, uma chicara de café bem grosso, á moda da Ritinha, e tragava dois dedos de paraty «pr'a cortar a friagem.» Uma transformação, lenta e profunda, operava-se n'elle, dia a dia, hora a hora, reviscerando-lhe o corpo e alando-lhe os sentidos, num trabalho mysterioso e surdo de chryzallida. A sua energia afrouxava lentamente: fazia-se contemplativo e amoroso. A vida americana e a natureza do Brazil patenteavam-lhe agora aspectos imprevistos e seductores que o commoviam; esquecia-se dos seus primitivos sonhos de ambição, para idealisar felicidades novas, picantes e violentas; tornava-se liberal, imprevidente e franco, mais amigo de gastar que de guardar; adquiria desejos, tomava gosto aos prazeres, e volvia-se preguiçoso, resignando-se, vencido, ás imposições do sol e do calor, muralha de fogo com que o espirito eternamente revoltado do ultimo tamoyo entrincheirou a patria contra os conquistadores aventureiros. E assim, pouco a pouco, se foram reformando todos os seus habitos singelos de aldeão portuguez: e Jeronymo abrasileirou-se. A sua casa perdeu aquelle ar sombrio e concentrado que a entristecia; já appareciam por lá alguns companheiros de estalagem, para dar dois dedos de palestra nas horas de descanso, e aos domingos reunia-se gente para o jantar. A revolução afinal foi completa: a aguardente de canna substituio o vinho; a farinha de mandioca succedeu á brôa; a carne secca e o feijão preto ao bacalháo com batatas e ceboulas cozidas; a pimenta malagueta e a pimenta de cheiro invadiram victoriosamente a sua mesa; o caldo verde, a açorda e o caldo de unto foram repellidos pelos ruivos e gostosos quitutes bahianos, pela muqueca, pelo vatapá e pelo carurú; a couve á mineira desthronou a couve á portugueza; o pirão de fubá ao pão de rala, e, desde que o café encheu a casa com o seu aroma quente, Jeronymo principiou a achar graça no cheiro do fumo e não tardou a fumar tambem com os amigos. E o curioso é que, quanto mais ia elle cahindo nos usos e costumes brasileiros, tanto mais os seus sentidos se apuravam, posto que em detrimento das suas forças physicas. Tinha agora o ouvido menos grosseiro para a musica, comprehendia até as intenções poeticas dos sertanejos, quando cantam á viola os seus amores infelizes; seus olhos, d'antes só voltados para a esperança de tornar á terra, agora, como os olhos de um marujo, que se habituaram aos largos horizontes de céo e mar, já se não revoltavam com a turbulenta luz, selvagem e alegre, do Brasil, e abriam-se amplamente defronte dos maravilhosos despenhadeiros illimitados e das cordilheiras sem fim, donde, de espaço a espaço, surge um monarcha gigante, que o sol veste de oiro e ricas pedrarias refulgentes e as nuvens toucam de alvos turbantes de cambraia, n'um luxo oriental de arabicos principes voluptuosos. Ao passo que com a mulher, a S'ôra Piedade de Jesus, o caso mudava muito de figura. Essa, feita de um só bloco, compacta, inteiriça e tapada, recebia a influencia do meio só por fóra, na maneira de viver, conservando-se inalteravel quanto ao moral, sem conseguir, á semelhança do esposo, afinar a sua alma pela alma da nova patria que adoptaram. Cedia passivamente nos habitos de existencia, mas no intimo continuava a ser a mesma colona saudosa e desconsolada, tão fiel ás suas tradições como a seu marido. Agora estava até mais triste; triste porque o Jeronymo fazia-se outro; triste porque não se passava um dia que lhe não notasse uma nova transformação; triste, porque chegava a estranhal-o, a desconhecel-o, afigurando-se-lhe até que commettia um adulterio, quando á noite acordava assustada ao lado d'aquelle homem que não parecia o d'ella, aquelle homem que se lavava todos os dias, aquelle homem que aos domingos punha perfumes na barba e nos cabellos e tinha a boca cheirando a fumo. Que pesado desgosto não lhe apertou o coração a primeira vez em que o cavouqueiro, repellindo o caldo que ella lhe apresentava ao jantar, disse-lhe:
--Ó filha! porque não experimentas tu fazer uns pitéos á moda de cá?...
--Mas é que não sei ... balbuciou a pobre mulher.
--Pede então á Rita que t'o ensine... Aquillo não terá muito q'aprender! Vê se me fazes por arranjar uns camarões, como ella preparou aquelles d'outro dia. Souberam-me tão bem!
Este resvalamento do Jeronymo para as coisas do Brasil, penalisavam profundamente a infeliz creatura. Era ainda o instincto feminil que lhe fazia prever que o marido, quando estivesse de todo brasileiro, não a quereria para mais nada e havia de reformar a cama, assim como reformou a mesa. Jeronymo, com effeito, pertencia-lhe muito menos agora do que d'antes. Mal se chegava para ella; os seus carinhos eram frios e distrahidos, dados como por condescendencia; já lhe não affagava os rins, quando os dois ficavam a sós, malucando na sua vida commum; agora nunca era elle que a procurava para o matrimonio, nunca; se ella sentia necessidade do marido, tinha de provocal-o. E, uma noite, Piedade ficou com o coração ainda mais apertado, porque elle, a pretexto de que no quarto fazia muito calor, abandonou a cama e foi deitar-se no sofá da salinha. Desde esse dia não dormiram mais ao lado um do outro. O cavouqueiro arranjou uma rede e armou-a defronte da porta de entrada, tal qual como havia em casa da Rita. Uma outra noite a coisa ainda foi peior. Piedade, certa de que o marido não se chegava, foi ter com elle; Jeronymo fingio-se indisposto, negou-se, e terminou por dizer-lhe, repellindo-a brandamente:
--Não te queria fallar, mas ... sabes? deves tomar banho todos os dias e ... mudar de roupa... Isto aqui não é como lá! Isto aqui sua-se muito! É preciso trazer o corpo sempre lavado, que senão cheira-se mal!... Tem paciencia!
Ella desatou a soluçar. Foi uma explosão de resentimentos e desgostos que se tinham accumulado no seu coração. Todas as suas magoas rebentaram n'aquelle momento.
--Agora estás tu a chorar! Ora, filha, deixa-te disso! Ella continuou a soluçar, sem folego, dando arfadas com todo o corpo.
O cavouqueiro, acrescentou no fim de um intervallo:
--Então que é isto, mulher? Pôes-te agora a fazer tamanho escarcéo, nem que se cuidasse de coisa séria!
Piedade desabafou:
--E que já não me queres! Já não és o mesmo homem para mim! D'antes não me achavas que pôr, e agora até já te cheiro mal!
E os soluços recrudesciam.
--Não digas asnices, filha!
--Ah! eu bem sei o que isto é!...
--É bobagem tua, é o que é!
--Maldita hora em que viemos dar ao raio d'esta estalagem! Antes me tivéra cahido um calháo na cabeça!
--Estás a queixar-te da sorte sem razão! Que Deus te não castigue!
Esta resinga chamou outras que, com o correr do tempo, se foram amiudando. Ah! já não havia duvida que mestre Jeronymo andava meio cahido para o lado da Rita Bahiana; não passava pelo numero 9, sempre que vinha á estalagem durante o dia, que não parasse á porta um instante, para perguntar-lhe pela «saúdinha». O facto de haver a mulata lhe offerecido o remedio, quando elle esteve incommodado, foi pretexto para lhe fazer presentes amaveis, pôr os seus prestimos á disposição d'ella e obsequial-a em extremo todas as vezes que a visitava. Tinha sempre qualquer coisa para saber da sua boca, a respeito da Leocadia, por exemplo; pois, desde que a Rita se arvorara em protectora da mulher do ferreiro, Jeronymo affectava grande interesse pela «pobrezinha de Christo.»
--Fez bem, 'nhá Rita, fez bem!... A se'ora mostrou com isso que tem bom coração...
--Ah, meu amigo, n'este mundo hoje por mim, amanhã por ti!...
Rita havia aboletado a amiga, a principio em casa de umas engommadeiras do Catette, muito suas camaradas; depois passou-a para uma familia, a quem Leocadia se alugou como ama secca; e agora sabia que ella acabava de descobrir um bom arranjo n'um collegio de meninas.
--Muito bem! muito bem! applaudia Jeronymo.
--Ora, o que! O mundo é largo! sentenciou a Bahiana! Ha logar pr'o gordo e ha logar pr'o magro! Bem tolo é quem se mata!
Em uma das vezes em que o cavouqueiro perguntou-lhe, como de costume, pela pobrezinha de Christo, a mulata disse que Leocadia estava gravida.
--Gravida? mas então não é do marido!...
--Póde bem ser que sim. Barriga de quatro mezes...
--Ah! mas ella não foi ha mais tempo do que isso?...
--Não. Vae fazer agora pelo São João quatro mezes justamente.
Jeronymo já nunca pegava na guitarra senão para procurar acertar com as modinhas que a Rita cantava. Em noites de samba era o primeiro a chegar-se e o ultimo a ir embora; e durante o pagode ficava de queixo bambo, a ver dansar a mulata, abstracto, pateta, esquecido de tudo; babão. E ella, consciente do feitiço que lhe punha, ainda mais se requebrava e remexia, dando-lhe embigadas ou fingindo que lhe limpava a baba no queixo com a barra da saia.
E riam-se.
Não! definitivamente estava cahido!
Piedade agarrou-se com a Bruxa para lhe arranjar um remedio que lhe restituisse o seu homem. A cabocla velha fechou-se com ella no quarto, accendeu vélas de cêra, queimou hervas aromaticas e tirou a sorte nas cartas. E, depois de um jogo complicado de reis, valetes e damas, que ella dispunha sobre a mesa caprichosamente, a resmungar a cada figura que sahia do baralho uma phrase cabalistica, declarou convicta, muito calma, sem tirar os olhos das suas cartas:
--Elle tem a cabeça virada por uma mulher trigueira.
--É o diacho da Rita Bahiana! exclamou a outra. Bem cá me palpitava por dentro! Ai, o meu rico homem!
E a chorar, limpando, afflicta, as lagrimas no avental de canhamo, supplicou á Bruxa, pelas alminhas do purgatorio, que lhe remediasse tamanha desgraça.
--Ai, se perco aquella creatura, S'ôra Paula, lamuriou a infeliz entre soluços; nem sei que virá a ser de mim n'este mundo de Christo!... Ensine-me alguma coisa que me puxe o Jeromo!
A cabocla disse-lhe que se banhasse todos os dias e désse a beber ao seu homem, no café pela manhã, algumas gottas das aguas da lavagem; e, se no fim de algum tempo, este regimen não produzisse o desejado effeito, então cortasse um pouco dos cabellos do corpo, torrasse-os até os reduzir a pó e lh'os ministrasse depois na comida. Piedade ouvio a receita com um silencio respeitoso e attento, o ar compungido de quem recebe do medico uma sentença dolorosa para um doente que estimamos. Em seguida, metteu na mão da feiticeira uma moeda de prata, promettendo dar-lhe coisa melhor se o remedio tivesse bons resultados. Mas não era só a portugueza quem se mordia com o descahimento do Jeronymo para a mulata, era tambem o Firmo. Havia muito já que este andava com a pulga atraz da orelha e, quando passava perto do cavouqueiro, olhava-o atravessado. O capadocio ia dormir todas as noites com a Rita, mas não morava na estalagem; tinha o seu commodo na officina em que trabalhava. Só pelos domingos é que ficavam juntos durante o dia e então não relaxavam o seu jantar de pandega. Uma vez em que elle gazéara o serviço, o que não era raro, foi vel-a fóra das horas do costume e encontrou-a a conversar junto á tina com o portuguez. Passou sem dizer palavra e recolheu-se ao numero 9, onde ella foi logo ter de carreira. Firmo não lhe disse nada a respeito das suas apprehensões, mas tambem não escondeu o seu máo-humor; esteve impertinente e resingueiro toda a tarde. Jantou de cara amarrada e durante o paraty, depois do café, só fallou em rôlos, em dar cabeçadas e navalhadas, pintando-se terrivel, recordando façanhas de capoeiragem, nas quaes sangrára taes e taes typos de fama; «não contando dois gallegos que mandara pr'ás minhocas, porque isso para elle não era gente!--Com um par de cocadas boas ficavam de pés unidos pra sempre!» Rita percebeu os ciumes do amigo e fez que não dera por coisa alguma. No dia seguinte, ás seis horas da manhã, quando elle sahia da casa d'ella, encontrou-se com o portuguez, que ia para o trabalho, e o olhar que os dois trocaram entre si era já um cartel de desafio. Entretanto, cada qual seguio em silencio para o seu lado. Rita deliberou prevenir Jeronymo de que se acautelasse. Conhecia bem o amante e sabia de quanto era elle capaz sob a influencia dos ciumes; mas, na occasião em que o cavouqueiro desceu para almoçar, um novo escandalo acabava de explodir, agora no numero 12, entre a velha Marcianna e sua filha Florinda. Marcianna andava já desconfiada com a pequena, porque o fluxo mensal d'esta se desregrára havia tres mezes, quando, n'esse dia, não tendo as duas acabado ainda o almoço, Florinda se levantou da meza e foi de carreira para o quarto. A velha seguio-a. A rapariga fôra vomitar ao bacio.
--Que é isto?... perguntou-lhe a mãe, apalpando-a toda com um olhar inquiridor.
--Não sei, mamãe...
--Que sentes tu?...
--Nada...
--Nada, e estás lançando?... Hein?!
--Não sinto nada, não senhora!...
A mulata velha aproximou-se, desatou-lhe violentamente o vestido, levantou-lhe as saias e examinou-lhe todo o corpo, tacteando-lhe o ventre, já zangada. Sem obter nenhum resultado das suas diligencias, correu a chamar a Bruxa, que era mais que entendida no assumpto. A cabocla, sem se alterar, largou o serviço, enxugou os braços no avental, e foi ao numero 12; tenteou de novo a mulatinha, fez-lhe varias perguntas e mais á mãe, e depois disse friamente:
--Está de barriga.
E afastou-se, sem um gesto de surpreza, nem de censura. Marcianna, tremula de raiva, fechou a porta da casa, guardou a chave no seio e, furiosa, cahio aos murros em cima da filha. Esta, em balde tentando escapar-lhe, berrava como uma louca. Abandonaram-se logo todas as tinas do pateo e algumas das mezas do frege, e o populacho, curioso e alvoroçado, precipitou-se para o numero 12, batendo na porta e ameaçando entrar pela janella. Lá dentro, a velha escarranchada sobre a rapariga que se debatia no chão, perguntava-lhe gritando e repetindo:
--Quem foi?! Quem foi?!
E de cada vez desfechava-lhe um sopapo pelas ventas.
--Quem foi?!
A pequena berrava, mas não respondia.
--Ah! não queres dizer por bem? Ora espera!
E a velha ergueu-se para apanhar a vassoura ao canto da sala. Florinda, vendo imminente o cacete, levantou-se de um pulo, ganhou a janella e cahio de um salto lá fóra, entre o povo amotinado. Coisa de uns nove palmos de altura. As lavadeiras a apanharam, cuidando em defendel-a da mãe, que surgio logo á porta, ameaçando para o grupo, terrivel e armada de páo. Todos procuraram chamal-a á razão:
--Então que é isso, tia Marcianna?! Então que é isso?!
--Que é isto?! É que esta assanhada está de barriga! Está ahi o que é! Para tanto não lhe faltou geito, nem foi preciso que a gente andasse atraz d'ella se matando, como succede sempre que ha um pouco mais de serviço e é necessario puxar pelo corpo! Ora está ahi o que é!
--Bem, disse a Augusta, mas não lhe bata agora, coitada! Assim você lhe dá cabo da pelle!
--Não! Eu quero saber quem lhe encheu o bandulho! E ella ha de dizer quem foi ou quebro-lhe os ossos!
--Então, Florinda, diz logo quem foi... É melhor! aconselhou a das Dôres.
Fez-se em torno da rapariga um silencio avido, cheio de curiosidade.
--Estão vendo?... exclamou a mãe. Não responde, este diabo! Mas esperem, que eu lhes mostro se ella falla ou não!
E as lavadeiras tiveram de agarrar-lhe os braços e tirar-lhe o cacete, porque a velha queria crescer de novo para a filha. Ao redor d'esta a curiosidade assanhava-se cada vez mais. Estalavam todos por saber quem a tinha emprenhado «Quem foi?! Quem foi?!» esta phrase apertava-a num torniquete. Afinal, não houve outro remedio:
--Foi seu Domingos ... disse ella, chorando e cobrindo o rosto com a fralda do vestido, rasgado na lucta.
--O Domingos!...
--O caixeiro da venda!...
--Ah! foi aquelle cara de nabo? gritou Marcianna. Vem cá!
E, agarrando a filha pela mão, arrastou-a até a venda. Os circumstantes acompanharam-na ruidosamente e de carreira. A taverna, como a casa de pasto, ferviam de concurrencia. Ao balcão d'aquella, o Domingos e o Manoel aviavam os freguezes, numa roda viva. Havia muitos negros e negras. O barulho era enorme. A Leonor lá estava, sempre aos pulos, mexendo com um, mexendo com outro, mostrando a dupla fila de dentes brancos e grandes, e levando apalpões rudes de mãos de couro nas suas magras e escorridas nadegas de negrinha virgem. Tres marujos inglezes bebiam gengibirra, cantando, ebrios, na sua lingua e mascando tabaco. Marcianna na frente do grande grupo e sem largar o braço da filha, que a seguia como um animal puxado pela colleira, ao chegar á porta lateral da venda, berrou:
--Ó seu João Romão!
--Que temos lá? perguntou de dentro o vendeiro, atrapalhado de serviço.
Bertoleza, com uma grande colher de zinco gottejante de gordura, appareceu á porta, muito ensebada e suja de tisna; e, ao ver tanta gente reunida, gritou para seu homem:
--Corre aqui, seu João, que não sei o que houve!
Elle veio afinal.
Que diabo era aquillo?
--Venho entregar-lhe esta perdida! Seu caixeiro a cobrio, deve tomar conta d'ella!
João Romão ficou perplexo.
--Hein?! Que é lá isso?!
--Foi o Domingos! disseram muitas vozes.
--Ó seu Domingos!
O caixeiro respondeu: «Senhor...» com uma voz de delinquente.
--Chegue cá!
E o criminoso apresentou-se, livido de morte.
--Que fez você com esta pequena?
--Não fiz nada, não senhor!...
--Foi elle, sim! desmentio-o a Florinda.--O caixeiro desviou os olhos, para a não encarar.--Um dia de manhãzinha, ás quatro horas, no capinzal, debaixo das mangueiras...
O mulherio em massa recebeu estas palavras com um coro de gargalhadas.
--Então o senhor anda-me aqui a fazer conquistas, hein?!... disse o patrão, meneando a cabeça. Muito bem! Pois agora é tomar conta da fazenda e, como não gosto de caixeiros amigados, póde procurar arranjo n'outra parte!...
Domingos não respondeu patavina; abaixou o rosto e retirou-se lentamente. O grupo das lavadeiras e dos curiosos derramou-se então pela venda, pelo portão da estalagem, pelo frege, por todos os lados, repartindo-se em pequenos magotes que discutiam o facto. Principiaram os commentarios, os juizos pró e contra o caixeiro; fizeram-se prophecias. Entretanto, Marcianna, sem largar a filha, invadira a casa de João Romão e perseguia o Domingos que preparava já a sua trouxa.
--Então? perguntou-lhe. Que tenciona fazer?
Elle não deu resposta.
--Vamos! vamos! falle! desembuche!
--Ora lixe-se! resmungou o caixeiro; agora muito vermelho de colera.
--Lixe-se, não!... Mais de vagar com o andôr! Você ha de casar: ella é menor!
Domingos soltou uma palavrada, que enfureceu a velha.
--Ah, sim?! bradou esta. Pois veremos!
E despejou da venda, gritando para todos:
--Sabe? O cara de nabo diz que não casa!
Esta phrase produzio o effeito de um grito de guerra entre as lavadeiras, que se reuniram de novo, agitadas por uma grande indignação.
--Como, não casa?!...
--Era só o que faltava!
--Tinha graça!
--Então mais ninguem póde contar com a honra de sua filha?
--Se não queria casar pr'a que fez mal?
--Quem não póde com o tempo não inventa modas!
--Ou elle casa ou sáe d'aqui com os ossos em sôpa!
--Quem não quer ser lobo não lhe vista a pelle!
A mais empenhada n'aquella reparação era a Machona, e a mais indignada com o facto era Dona Isabel. A primeira corrêra á frente da venda, disposta a segurar o culpado, se este tentasse fugir. Com o seu exemplo não tardou que em cada porta, por onde era possivel uma escapula, se postassem as outras de sentinella, formando grupos de tres e quatro. E, no meio de crescente algazarra, ouviam-se pragas ferozes e ameaças:
--Das Dôres! toma cuidado, que o patife não espirre por ahi!
--Ó seu João Romão, se o homem não casa, mande nol-o pra cá! Temos ainda algumas pequenas que lhe convêm!
--Mas onde está esse ordinario?!
--Saia o canalha!
--Está fazendo a trouxa!
--Quer escapar!
--Não deixa sahir!
--Chama a policia!
--Onde está o Alexandre?
E ninguem mais se entendia. Á vista d'aquella agitação, o vendeiro foi ter com o Domingos.
--Não saia agora, ordenou-lhe. Deixe-se ficar por emquanto. Logo mais lhe direi o que deve fazer.
E chegando a uma das portas que davam para a estalagem, gritou:
--Vá de rumor! Não quero isto aqui! É safar!
--Pois então o homem que case! responderam.
--Ou dê-nos pr'a cá o patife!
--Fugir é que não!
--Não foge! não deixa fugir!
--Ninguem se arrede!
E, como a Marcianna lhe lançasse uma injuria mais fórte, ameaçando-o com o punho fechado, o taverneiro jurou que se ella insistisse com desaforos, a mandaria jogar lá fóra, junto com a filha, por um urbano.
--Vamos! Vamos! Volte cada uma para a sua obrigação, que eu não posso perder tempo!
--Ponha-nos então pr'a cá o homem! exigio a mulata velha.
--Venha o homem! acompanhou o côro.
--É preciso dar-lhe uma lição!
--O rapaz casa! disse o vendeiro com ar sisudo. Já lhe fallei... Está perfeitamente disposto! E, se não casar, a pequena terá o seu dote! Vão descansados; respondo por elle ou pelo dinheiro!
Estas palavras apaziguaram os animos; o grupo das lavadeiras afrouxou; João Romão recolheu-se: chamou de parte o Domingos e disse-lhe que não arredasse pé de casa antes de noite fechada.
--No mais ... acrescentou; póde tratar de vida nova! Nada o prende aqui. Estamos quites.
--Como? se o senhor ainda não me fez as contas?!...
--Contas? Que contas? O seu saldo não chega para pagar o dote da rapariga!...
--Então eu tenho de pagar um dote?!...
--Ou casar... Ah, meu amigo, este negocio de tres vintens é assim! Custa dinheiro! Agora, se você quizer, vá queixar-se á policia... Está no seu direito! Eu me explicarei em juizo!...
--Com que, não recebo nada?...
--E não principie com muita coisa, que lhe fecho a porta e deixo-o ficar ás turras lá fóra com esses damnados! Você bem vio como estão todos a seu respeito! E, se ha pouco não lhe arrancaram os figados, agradeça-o a mim! Foi preciso prometter dinheiro e tenho de cahir com elle, de certo! mas não é justo, nem eu admitto, que saia da minha algibeira, porque não estou disposto a pagar os caprichos de ninguem, e muito menos dos meus caixeiros!
--Mas...
--Basta! Se quizer, por muito favor, ficar aqui até á noite, ha de ficar calado; ao contrario, rua!
E afastou-se. Marcianna resolveu não ir ao sub-delegado, sem saber que providencias tomaria o vendeiro. Esperaria até ao dia seguinte «para ver só!» O que n'esse ella fez foi dar uma boa lavagem na casa e arrumal-a muitas vezes, como costumava, sempre que tinha lá as suas zangas. O escandalo não deixou de ser, durante o dia, discutido um só instante. Não se fallava n'outra coisa; tanto que, quando, já á noite, Augusta e Alexandre receberam uma visita da comadre, a Leonie, era ainda esse o principal assumpto das conversas. Leonie, com as suas roupas exageradas e barulhentas de cocote á franceza, levantava rumor quando lá ia e punha expressões de assombro em todas as caras. O seu vestido de seda côr de aço, enfeitado de encarnado sangue de boi, curto, petulante, mostrando uns sapatinhos á moda com um salto de quatro dedos de altura; as suas luvas de vinte botões que lhe chegavam até aos sovacos; a sua sombrinha vermelha, sumida n'uma nuvem de rendas côr de rosa e com um grande cabo cheio de arabescos extravagantes; o seu pantafaçudo chapéo de immensas abas forradas de veludo escarlate, com um passaro inteiro grudado á copa; as suas joias caprichosas, scintillantes de pedras finas: os seus labios pintados de carmim; suas palpebras tingidas de violeta; o seu cabello artificialmente loiro; tudo isto contrastava tanto com as vestimentas, os costumes e as maneiras d'aquella pobre gente, que de todos os lados surgiam olhos curiosos a espreital-a pela porta da casinha do Alexandre; Augusta, ao ver a sua pequena, a Jujú, como vinha tão embonecada e catita, ficou com os d'ella arrazados d'agoa. Leonie trazia sempre muito bem calçada e vestida a afilhada, levando o capricho ao ponto de lhe mandar talhar a roupa da mesma fazenda com que fazia as suas e pela mesma costureira; arranjava-lhe chapéos escandalosos como os d'ella e dava-lhe joias. Mas, n'aquelle dia, a grande novidade que Jujú apresentava era estar de cabellos loiros, quando os tinha castanhos por natureza. Foi caso para uma revolução na estalagem; a noticia correu logo de numero a numero, e muitos moradores se abalaram do commodo para ver a filhita da Augusta «com cabellos de franceza.» Tal successo pôz Leonie radiante de alegria. Aquella afilhada era o seu luxo, a sua originalidade, a coisa boa da sua vida de cansaços depravados; era o que aos seus proprios olhos a resgatava das abjecções do officio. Prostituta de casa aberta, presava todavia com admiração e respeito a honestidade vulgar da comadre; sentia-se honrada com a sua estima; cobria-a de obsequios de toda a especie. Nos instantes que estava ali, entre aquelles seus amigos simplorios, que a matariam de ridiculo em qualquer outro logar, nem ella parecia a mesma, pois até os olhos lhe mudavam de expressão. E não queria preferencias: assentava-se no primeiro banco, bebia agoa pela caneca de folha, tomava ao collo o pequenito da comadre e, ás vezes, descalçava os sapatos para enfiar os chinellos velhos que encontrasse debaixo da cama. Não obstante, o acatamento que lhe votavam Alexandre e a mulher não tinha limites; pareciam capazes dos maiores sacrificios por ella. Adoravam-na. Achavam-na boa de coração como um anjo, e muito linda nas suas roupas de espavento, com o seu rostinho redondo, malicioso e petulante, onde reluziam dentes mais alvos que um marfim. Jujú, com um embrulho de balas em cada mão, era carregada de casa em casa, passando de braço a braço e levada de bocca em bocca, como um idolo milagroso, que todos queriam beijar. E os elogios não cessavam:
--Rica pequena!...
--É um enlevo olhar a gente pr'o demoninho!
--É mesmo uma lindeza de criança!
--Uma criaturinha dos anjos!
--Uma boneca franceza!
--Uma menina Jesus!
O pai acompanhava-a commovido, mas solemne sempre, parando a todo momento, como em procissão, á espera que cada qual desafogasse por sua vez o enthusiasmo pela criança. Silenciosamente risonho, com os olhos humidos, patenteava em todo o seu carão mulato, de bigode que parecia postiço, um ar condolente e estupido de um profundo reconhecimento por aquella fortuna, que Deus lhe dera á filha, enviando-lhe dos ceus o ideal das madrinhas. E, emquanto Jujú percorria a estalagem, conduzida em triumpho, Leonie na casa da comadre, cercada por uma roda de lavadeiras e crianças, discreteava sobre assumptos sérios, fallando compassadamente, cheia de inflexões de pessoa pratica e ajuisada, condemnando máos actos e desvarios, applaudindo a moral e a virtude. E aquellas mulheres, aliás tão alegres e vivazes, não se animavam, defronte d'ella, a rir nem levantar a voz, e conversavam a medo, cochichando, a tapar a bocca com a mão, tolhidas de respeito pela cocote, que as dominava na sua sobranceria de mulher loira vestida de seda e coberta de brilhantes. A das Dôres sentio-se orgulhosa, quando Leonie lhe pousou no hombro a mãozinha enluvada e rescendente, para lhe perguntar pelo seu homem. E não se fartavam de olhar para ella, de admiral-a; chegavam a examinar-lhe a roupa, revistar-lhe as saias, apalpar-lhe as meias, levantando-lhe o vestido, com exclamações de assombro á vista de tanto luxo de rendas e bordados. A visita sorria, por sua vez commovida. Piedade declarou que a roupa branca da madama era rica nem como a da Nossa Senhora da Penha. E Nênêm, no seu enthusiasmo, disse que a invejava do fundo de coração, ao que a mãe lhe observou que não fosse besta. O Albino contemplava-a em extasis, de mão no queixo, o cotovelo no ar. A Rita Bahiana levára-lhe um ramalhete de rosas. Esta não se illudia com