CapĂtulo I
â CAPĂTULO I
Numa manhĂŁ de dezembro, o vapor Tabo subia laboriosamente o curso tortuoso do Pasig, levando uma grande multidĂŁo de passageiros em direção Ă provĂncia de La Laguna. Era um vapor de construção pesada, quase redondo, como o tabu de onde derivava seu nome, bastante sujo, apesar de suas pretensĂ”es de brancura, majestoso e grave devido ao seu movimento vagaroso. No geral, era tido em grande afeição naquela regiĂŁo, talvez por seu nome tagalo, ou pelo fato de que carregava a marca caracterĂstica das coisas do paĂs, representando algo como um triunfo sobre o progresso, um vapor que nĂŁo era vapor algum, um organismo estĂłico, imperfeito, mas irrepreensĂvel, que, quando desejava posar como sendo altamente progressista, contentava-se orgulhosamente em colocar uma nova camada de tinta. De fato, o feliz vapor era genuinamente filipino! Se uma pessoa fosse razoavelmente atenciosa, poderia atĂ© tomĂĄ-lo pelo Navio do Estado, construĂdo, como fora, sob a inspeção de Reverendos e IlustrĂssimosâŠ
Banhado pela luz do sol de uma manhĂŁ que fazia as ĂĄguas do rio cintilarem e as brisas sussurrarem nos bambus curvados em suas margens, lĂĄ vai ele com sua silhueta branca lançando grandes nuvens de fumaça â o Navio do Estado, assim diz a piada, tambĂ©m tem o vĂcio de fumar! O apito grita a cada momento, rouco e autoritĂĄrio como um tirano que governaria gritando, para que ninguĂ©m a bordo consiga ouvir seus prĂłprios pensamentos. Ameaça tudo o que encontra: agora parece que vai moer em pedacinhos os salambaw, aparelhos de pesca inseguros que em seus movimentos se assemelham a esqueletos de gigantes saudando uma tartaruga antediluviana; agora se apressa em direção aos tufos de bambu ou contra as estruturas anfĂbias, karihan, ou barracas de almoço Ă beira do caminho, que, em meio a gumamelas e outras flores, parecem banhistas indecisos que, com os pĂ©s jĂĄ na ĂĄgua, nĂŁo conseguem se decidir a dar o mergulho final; Ă s vezes, seguindo uma espĂ©cie de canal marcado no rio por troncos de ĂĄrvores, ele se move com um ar satisfeito, exceto quando um choque repentino perturba os passageiros e os desequilibra, tudo resultado de uma colisĂŁo com um banco de areia que ninguĂ©m sonhava que estava lĂĄ.
Além disso, se a comparação com o Navio do Estado ainda não estiver completa, observe a disposição dos passageiros. No convés inferior aparecem rostos castanhos e cabeças pretas, tipos de indianos,[1] chineses e mestiços, comprimidos entre fardos de mercadorias e caixas, enquanto lå no convés superior, sob um toldo que os protege do sol, estão sentados em cadeiras confortåveis alguns passageiros vestidos à moda europeia, frades e funcionårios do governo, cada um com seu charuto puro e contemplando a paisagem aparentemente sem se importar com os esforços do capitão e dos marinheiros para superar os obståculos no rio.
O capitĂŁo era um homem de aspecto amĂĄvel, jĂĄ de idade avançada, um velho marinheiro que em sua juventude havia singrado mares muito mais vastos, mas que agora, em sua velhice, tinha de exercer muito mais atenção, cuidado e vigilĂąncia para evitar perigos de carĂĄter trivial. E eram os mesmos a cada dia: os mesmos bancos de areia, o mesmo casco de vapor desajeitado preso nas mesmas curvas, como uma dama corpulenta em uma multidĂŁo congestionada. Assim, a cada momento, o bom homem tinha de parar, dar rĂ©, avançar em meia velocidade, enviando â agora para bombordo, agora para estibordo â os cinco marinheiros equipados com longas varas de bambu para dar força Ă curva que o leme havia sugerido. Era como um veterano que, depois de liderar homens por campanhas perigosas, em sua velhice se tornara o tutor de um menino caprichoso, desobediente e preguiçoso.
Dona Victorina, a Ășnica senhora sentada no grupo europeu, bem podia dizer se o Tabo nĂŁo era preguiçoso, desobediente e caprichoso â Dona Victorina, que, nervosa como sempre, estava lançando impropĂ©rios contra os cascos, bankas, jangadas de cocos, os Ăndios remando por perto e atĂ© as lavadeiras e banhistas, que a irritavam com sua alegria e tagarelice. Sim, o Tabo se moveria muito bem se nĂŁo houvesse Ăndios no rio, nenhum Ăndio no paĂs, sim, se nĂŁo houvesse um Ășnico Ăndio no mundo â independentemente do fato de que os timoneiros eram Ăndios, os marinheiros Ăndios, os engenheiros Ăndios, Ăndios noventa e nove por cento dos passageiros, e ela prĂłpria tambĂ©m uma Ăndia se o rouge fosse raspado e seu vestido pretensioso removido. Naquela manhĂŁ, Dona Victorina estava mais irritada do que o habitual porque os membros do grupo prestavam muito pouca atenção a ela, razĂŁo pela qual nĂŁo faltava; pois basta considerar â ali podiam ser encontrados trĂȘs frades, convencidos de que o mundo andaria para trĂĄs no dia em que dessem um Ășnico passo para a direita; um incansĂĄvel Dom CustĂłdio que estava dormindo pacificamente, satisfeito com seus projetos; um escritor prolĂfico como Ben-Zayb (anagrama de Ibañez), que acreditava que o povo de Manila pensava porque ele, Ben-Zayb, era um pensador; um cĂŽnego como Padre Irene, que acrescentava brilho ao clero com seu rosto rubicundo, cuidadosamente barbeado, do qual se elevava um belo nariz judeu, e sua batina de seda de corte impecĂĄvel e pequenos botĂ”es; e um joalheiro rico como Simoun, que era tido como o conselheiro e inspirador de todos os atos de Sua ExcelĂȘncia, o CapitĂŁo-General â basta considerar a presença ali desses pilares sine quibus non do paĂs, sentados ali em agradĂĄvel discurso, demonstrando pouca simpatia por uma filipina renegada que pintava o cabelo de vermelho! Ora, isso nĂŁo era suficiente para esgotar a paciĂȘncia de uma fĂȘmea de JĂł â um apelido que Dona Victorina sempre aplicava a si mesma quando contrariada com alguĂ©m!
O mau humor da senhora aumentava cada vez que o capitão gritava "Bombordo", "Estibordo" para os marinheiros, que então rapidamente pegavam suas varas e as empurravam contra as margens, evitando assim, com a força de suas pernas e ombros, que o vapor encostasse seu casco naquele ponto em particular. Visto nessas circunstùncias, o Navio do Estado poderia ser dito ter sido convertido de uma tartaruga em um caranguejo cada vez que qualquer perigo ameaçava.
â Mas, capitĂŁo, por que seus timoneiros estĂșpidos nĂŁo vĂŁo nessa direção? â perguntou a senhora com grande indignação.
â Porque Ă© muito raso no outro lado, senhora â respondeu o capitĂŁo, deliberadamente, piscando lentamente um olho, um pequeno hĂĄbito que ele havia cultivado como se dissesse Ă s suas palavras em sua saĂda, âDevagar, devagar!â
â Meia velocidade! Bobagem, meia velocidade! â protestou Dona Victorina com desdĂ©m. â Por que nĂŁo total?
â Porque entĂŁo estarĂamos viajando sobre aqueles arrozais, senhora â respondeu o imperturbĂĄvel capitĂŁo, franzindo os lĂĄbios para indicar os campos cultivados e entregando-se a duas piscadelas circunspectas.
Dona Victorina era bem conhecida no paĂs por seus caprichos e extravagĂąncias. Ela era frequentemente vista na sociedade, onde era tolerada sempre que aparecia na companhia de sua sobrinha, Paulita Gomez, uma ĂłrfĂŁ muito bonita e rica, de quem ela era uma espĂ©cie de guardiĂŁ. Em uma idade bastante avançada, ela havia se casado com um pobre coitado chamado Dom Tiburcio de Espadaña e, na Ă©poca em que a vemos agora, carregava sobre si quinze anos de vida conjugal, cachos falsos e um traje meio europeu â pois toda a sua ambição era se europeizar, com o resultado de que, desde o dia fatĂdico de seu casamento, ela havia gradualmente, graças Ă s suas tentativas criminosas, conseguido se transformar a tal ponto que, no momento atual, Quatrefages e Virchow juntos nĂŁo poderiam ter dito onde classificĂĄ-la entre as raças conhecidas.
Seu marido, que havia suportado todas as suas imposiçÔes com a resignação de um faquir por tantos anos de vida conjugal, finalmente, em um dia infeliz, teve sua meia hora ruim e lhe administrou uma tremenda pancada com sua muleta. A surpresa de Madame JĂł com tal inconsistĂȘncia de carĂĄter a tornou insensĂvel aos efeitos imediatos, e somente depois que ela se recuperou de seu espanto e seu marido havia fugido Ă© que ela percebeu a dor, permanecendo entĂŁo na cama por vĂĄrios dias, para o grande prazer de Paulita, que gostava muito de brincar e rir de sua tia. Quanto a seu marido, horrorizado com a impiedade do que lhe parecia ser um parricĂdio terrĂvel, ele fugiu, perseguido pelas fĂșrias matrimoniais (dois vira-latas e um papagaio), com toda a velocidade que sua deficiĂȘncia permitia, subiu na primeira carruagem que encontrou, pulou na primeira banka que viu no rio e, um Ulisses filipino, começou a vagar de cidade em cidade, de provĂncia em provĂncia, de ilha em ilha, perseguido e perseguido por sua Calipso de Ăłculos, que entediava todos que tinham o azar de viajar em sua companhia. Ela havia recebido um relatĂłrio de que ele estava na provĂncia de La Laguna, escondido em uma das cidades, entĂŁo para lĂĄ ela estava indo para seduzi-lo de volta com seus cachos tingidos.
Seus companheiros de viagem haviam tomado medidas de defesa, mantendo entre si uma conversa animada sobre qualquer tĂłpico que fosse. Naquele momento, as curvas e voltas do rio os levaram a falar sobre o endireitamento do canal e, como era de se esperar, sobre as obras portuĂĄrias. Ben-Zayb, o jornalista com a aparĂȘncia de um frade, estava discutindo com um jovem frade que, por sua vez, tinha a aparĂȘncia de um artilheiro. Ambos estavam gritando, gesticulando, agitando os braços, abrindo as mĂŁos, batendo os pĂ©s, falando de nĂveis, currais de peixes, do rio San Mateo,[2] de cascos, de Ăndios e assim por diante, para a grande satisfação de seus ouvintes e o desgosto nĂŁo disfarçado de um franciscano idoso, notavelmente magro e murcho, e um belo dominicano sobre cujos lĂĄbios pairava constantemente um sorriso desdenhoso.
O franciscano magro, entendendo o sorriso do dominicano, decidiu intervir e interromper a discussĂŁo. Ele era, sem dĂșvida, respeitado, pois com um aceno de mĂŁo interrompeu a fala de ambos no momento em que o frade-artilheiro falava sobre experiĂȘncia e o jornalista-frade sobre cientistas.
â Cientistas, Ben-Zayb â vocĂȘ sabe o que sĂŁo? â perguntou o franciscano com uma voz oca, mal se mexendo em seu assento e fazendo apenas um gesto fraco com sua mĂŁo esquelĂ©tica. â Aqui vocĂȘ tem na provĂncia uma ponte, construĂda por um irmĂŁo nosso, que nĂŁo foi concluĂda porque os cientistas, confiando em suas teorias, a condenaram como fraca e pouco segura â mas veja, Ă© a ponte que resistiu a todas as enchentes e terremotos![3]
â Ă isso, puñales, essa mesma coisa, era exatamente o que eu ia dizer! â exclamou o frade-artilheiro, batendo os punhos nos braços de sua cadeira de bambu. â Ă isso, essa ponte e os cientistas! Era exatamente isso que eu ia mencionar, Padre Salvi â puñales!
Ben-Zayb permaneceu em silĂȘncio, meio sorrindo, seja por respeito ou porque realmente nĂŁo sabia o que responder, e ainda assim a dele era a Ășnica cabeça pensante nas Filipinas! Padre Irene assentiu com aprovação enquanto esfregava seu longo nariz.
Padre Salvi, o clĂ©rigo magro e murcho, pareceu satisfeito com tal submissĂŁo e continuou em meio ao silĂȘncio: â Mas isso nĂŁo significa que vocĂȘ nĂŁo possa estar tĂŁo certo quanto o Padre Camorra â (o frade-artilheiro). â O problema estĂĄ no lagoâŠ
â O fato Ă© que nĂŁo hĂĄ um Ășnico lago decente neste paĂs â interrompeu Dona Victorina, altamente indignada, e se preparando para um retorno ao ataque Ă cidadela.
Os sitiados olharam uns para os outros em terror, mas com a prontidĂŁo de um general, o joalheiro Simoun correu para o resgate. â O remĂ©dio Ă© muito simples â disse ele com um sotaque estranho, uma mistura de inglĂȘs e sul-americano. â E eu realmente nĂŁo entendo por que nĂŁo ocorreu a ninguĂ©m.
Todos se voltaram para prestar atenção a ele, atĂ© mesmo o dominicano. O joalheiro era um homem alto, magro, nervoso, muito moreno, vestido Ă moda inglesa e usando um capacete colonial. NotĂĄvel sobre ele era seu longo cabelo branco contrastado com uma barba rala e preta, indicando uma origem mestiça. Para evitar o brilho do sol, ele usava constantemente um par de enormes Ăłculos azuis, que escondiam completamente seus olhos e uma porção de suas bochechas, dando-lhe assim o aspecto de uma pessoa cega ou com visĂŁo fraca. Ele estava de pĂ© com as pernas afastadas como se estivesse mantendo o equilĂbrio, com as mĂŁos enfiadas nos bolsos de seu casaco.
â O remĂ©dio Ă© muito simples â repetiu ele â e nĂŁo custaria um cuarto.
A atenção agora redobrou, pois sussurrava-se em Manila que este homem controlava o Capitão-General, e todos viram o remédio em processo de execução. Até Dom Custódio se virou para ouvir.
â Cavar um canal reto da nascente Ă foz do rio, passando por Manila; ou seja, fazer um novo leito do rio e encher o antigo Pasig. Isso economizaria terra, encurtaria a comunicação e impediria a formação de bancos de areia.
O projeto deixou todos os seus ouvintes atĂŽnitos, acostumados como estavam a medidas paliativas.
â Ă um plano ianque! â observou Ben-Zayb, para se insinuar com Simoun, que havia passado muito tempo na AmĂ©rica do Norte.
Todos consideraram o plano maravilhoso e assim indicaram pelos movimentos de suas cabeças. Apenas Dom CustĂłdio, o liberal Dom CustĂłdio, devido Ă sua posição independente e seus altos cargos, achou seu dever atacar um projeto que nĂŁo emanava dele â isso era uma usurpação! Ele tossiu, acariciou as pontas de seu bigode e, com uma voz tĂŁo importante como se estivesse em uma sessĂŁo formal do Ayuntamiento, disse:
â Desculpe-me, Señor Simoun, meu respeitado amigo, se eu disser que nĂŁo sou da sua opiniĂŁo. Custaria muito dinheiro e talvez destruĂsse algumas cidades.
â EntĂŁo destrua-as! â retrucou Simoun friamente.
â E o dinheiro para pagar os trabalhadores?
â NĂŁo os pague! Use os prisioneiros e condenados!
â Mas nĂŁo hĂĄ o suficiente, Señor Simoun!
â EntĂŁo, se nĂŁo houver o suficiente, deixe todos os aldeĂ”es, os velhos, os jovens, os meninos, trabalharem. Em vez dos quinze dias de serviço obrigatĂłrio, deixe-os trabalhar trĂȘs, quatro, cinco meses para o Estado, com a obrigação adicional de que cada um forneça sua prĂłpria comida e ferramentas.
O assustado Dom CustĂłdio virou a cabeça para ver se havia algum Ăndio ao alcance da audição, mas felizmente os que estavam por perto eram rĂșsticos, e os dois timoneiros pareciam estar muito ocupados com as curvas do rio.
â Mas, Señor SimounâŠ
â NĂŁo se iluda, Dom CustĂłdio â continuou Simoun secamente â, somente desta forma grandes empreendimentos sĂŁo realizados com pequenos meios. Assim foram construĂdas as PirĂąmides, o Lago Moeris e o Coliseu em Roma. ProvĂncias inteiras vieram do deserto, trazendo seus tubĂ©rculos para se alimentar. Velhos, jovens e meninos trabalharam no transporte de pedras, talhando-as e carregando-as em seus ombros sob a direção do chicote oficial, e depois, os sobreviventes retornaram para suas casas ou pereceram nas areias do deserto. EntĂŁo vieram outras provĂncias, entĂŁo outras, sucedendo-se no trabalho durante anos. Assim a tarefa foi concluĂda, e agora nĂłs os admiramos, nĂłs viajamos, nĂłs vamos para o Egito e para Roma, nĂłs exaltamos os FaraĂłs e os Antoninos. NĂŁo se iluda â os mortos permanecem mortos, e apenas o poder Ă© considerado justo pela posteridade.
â Mas, Señor Simoun, tais medidas podem provocar revoltas â objetou Dom CustĂłdio, um tanto preocupado com o rumo que o assunto havia tomado.
â Revoltas, ha, ha! O povo egĂpcio alguma vez se rebelou, eu me pergunto? Os prisioneiros judeus se rebelaram contra o piedoso Tito? Homem, eu pensei que vocĂȘ era mais bem informado em histĂłria!
Claramente Simoun era muito presunçoso ou desconsiderava as convençÔes! Dizer na cara de Dom CustĂłdio que ele nĂŁo conhecia histĂłria! Era o suficiente para fazer qualquer um perder a paciĂȘncia! Assim pareceu, pois Dom CustĂłdio se esqueceu e retrucou:
â Mas o fato Ă© que vocĂȘ nĂŁo estĂĄ entre egĂpcios ou judeus!
â E essas pessoas se rebelaram mais de uma vez â acrescentou o dominicano, um tanto timidamente. â Nos tempos em que eram forçados a transportar madeiras pesadas para a construção de navios, se nĂŁo fosse pelos clĂ©rigosâŠ
â Esses tempos estĂŁo longe â respondeu Simoun, com uma risada ainda mais seca do que o habitual. â Essas ilhas nunca mais se rebelarĂŁo, nĂŁo importa o quanto de trabalho e impostos tenham. VocĂȘ nĂŁo me elogiou, Padre Salvi â acrescentou, voltando-se para o franciscano â, a casa e o hospital em Los Baños, onde Sua ExcelĂȘncia estĂĄ atualmente?
Padre Salvi deu um aceno de cabeça e olhou para cima, evitando a pergunta.
â Bem, vocĂȘ nĂŁo me disse que ambos os edifĂcios foram construĂdos forçando o povo a trabalhar neles sob o chicote de um irmĂŁo leigo? Talvez aquela ponte maravilhosa tenha sido construĂda da mesma forma. Agora me diga, essas pessoas se rebelaram?
â O fato Ă© â eles se rebelaram antes â respondeu o dominicano â, et ab actu ad posse valet illatio!
â NĂŁo, nĂŁo, nada disso â continuou Simoun, começando a descer uma escotilha para a cabine. â O que foi dito, foi dito! E vocĂȘ, Padre Sibyla, nĂŁo fale latim nem besteiras. Para que servem vocĂȘs, frades, se o povo pode se rebelar?
NĂŁo prestando atenção Ă s respostas e protestos, Simoun desceu a pequena escada que levava para baixo, repetindo desdenhosamente: â Bobagem, bobagem!
Padre Sibyla empalideceu; esta foi a primeira vez que ele, Vice-Reitor da Universidade, foi creditado com besteiras. Dom CustĂłdio ficou verde; em nenhuma reuniĂŁo em que ele se encontrou havia encontrado um adversĂĄrio como aquele.
â Um mulato americano! â ele bufou.
â Um indiano britĂąnico â observou Ben-Zayb em voz baixa.
â Um americano, eu digo, e eu nĂŁo deveria saber? â retrucou Dom CustĂłdio de mau humor. â Sua ExcelĂȘncia me disse isso. Ele Ă© um joalheiro que este conheceu em Havana e, como eu suspeito, aquele que lhe conseguiu a promoção emprestando-lhe dinheiro. EntĂŁo, para recompensĂĄ-lo, ele o fez vir aqui para dar-lhe uma chance e aumentar sua fortuna vendendo diamantes â imitaçÔes, quem sabe? E ele Ă© tĂŁo ingrato, que, depois de obter dinheiro dos Ăndios, ele deseja â hein! â A frase foi concluĂda com um aceno significativo de mĂŁo.
NinguĂ©m ousou se juntar a esta diatribe. Dom CustĂłdio poderia se desacreditar com Sua ExcelĂȘncia, se desejasse, mas nem Ben-Zayb, nem Padre Irene, nem Padre Salvi, nem o ofendido Padre Sibyla tinham qualquer confiança na discrição dos outros.
â O fato Ă© que este homem, sendo americano, sem dĂșvida pensa que estamos lidando com os peles-vermelhas. Falar sobre esses assuntos em um vapor! Compelir, forçar o povo! E ele Ă© a prĂłpria pessoa que aconselhou a expedição Ă s Carolinas e a campanha em Mindanao, que vai nos levar Ă ruĂna vergonhosa. Ele Ă© quem se ofereceu para supervisionar a construção do cruzador, e eu digo, o que um joalheiro, por mais rico e instruĂdo que seja, sabe sobre construção naval?
Tudo isso foi falado por Dom CustĂłdio em um tom gutural para seu vizinho Ben-Zayb, enquanto ele gesticulava, encolhia os ombros e de tempos em tempos com seus olhares consultava os outros, que estavam assentindo com a cabeça ambiguamente. O CĂŽnego Irene se entregou a um sorriso bastante equĂvoco, que ele meio escondeu com a mĂŁo enquanto esfregava o nariz.
â Eu digo, Ben-Zayb â continuou Dom CustĂłdio, batendo no braço do jornalista â, todo o problema vem de nĂŁo consultar os veteranos aqui. Um projeto em belas palavras, e especialmente com uma grande apropriação, com uma apropriação em nĂșmeros redondos, deslumbra, encontra aceitação imediatamente, por causa disso! â Aqui, em uma explicação adicional, ele esfregou a ponta de seu polegar contra seu dedo mĂ©dio e indicador.[4]
â HĂĄ algo nisso, hĂĄ algo nisso â Ben-Zayb achou seu dever comentar, jĂĄ que em sua capacidade de jornalista ele tinha que estar informado sobre tudo.
â Agora olhe aqui, antes das obras portuĂĄrias eu apresentei um projeto, original, simples, Ăștil, econĂŽmico e praticĂĄvel, para limpar a barra no lago, e nĂŁo foi aceito porque nĂŁo havia nada disso nele. â Ele repetiu o movimento de seus dedos, encolheu os ombros e olhou para os outros como se dissesse: âVocĂȘ jĂĄ ouviu falar de tal infortĂșnio?â
â Podemos saber o que era? â perguntaram vĂĄrios, aproximando-se e dando-lhe sua atenção. Os projetos de Dom CustĂłdio eram tĂŁo famosos quanto os remĂ©dios de charlatĂŁes.
Dom CustĂłdio estava prestes a se recusar a explicĂĄ-lo por ressentimento por nĂŁo ter encontrado nenhum apoiador em sua diatribe contra Simoun. âQuando nĂŁo hĂĄ perigo, vocĂȘs querem que eu fale, hein? E quando hĂĄ, vocĂȘs ficam quietos!â, ele ia dizer, mas isso causaria a perda de uma boa oportunidade, e seu projeto, agora que nĂŁo podia ser realizado, poderia pelo menos ser conhecido e admirado.
Depois de soltar duas ou trĂȘs baforadas de fumaça, tossir e cuspir por um buraco, ele bateu na coxa de Ben-Zayb e perguntou: â VocĂȘ jĂĄ viu patos?
â Eu acho que sim â nĂłs os caçamos no lago â respondeu o jornalista surpreso.
â NĂŁo, nĂŁo estou falando de patos selvagens, estou falando dos domĂ©sticos, daqueles que sĂŁo criados em Pateros e Pasig. VocĂȘ sabe do que eles se alimentam?
Ben-Zayb, a Ășnica cabeça pensante, nĂŁo sabia â ele nĂŁo estava envolvido nesse negĂłcio.
â De caracĂłis, homem, de caracĂłis! â exclamou Padre Camorra. â NĂŁo Ă© preciso ser Ăndio para saber disso; Ă© suficiente ter olhos!
â Exatamente, de caracĂłis! â repetiu Dom CustĂłdio, brandindo seu indicador. â E vocĂȘ sabe onde eles os pegam?
Novamente a cabeça pensante não sabia.
â Bem, se vocĂȘ estivesse no paĂs tantos anos quanto eu, vocĂȘ saberia que eles os pescam da prĂłpria barra, onde abundam, misturados com a areia.
â EntĂŁo seu projeto?
â Bem, eu estou chegando a isso. Minha ideia era obrigar todas as cidades ao redor, perto da barra, a criar patos, e vocĂȘ verĂĄ como eles, todos sozinhos, irĂŁo aprofundar o canal pescando os caracĂłis â nada mais e nada menos, nada mais e nada menos!
Aqui Dom CustĂłdio estendeu os braços e contemplou triunfantemente a estupefação de seus ouvintes â a nenhum deles havia ocorrido uma ideia tĂŁo original.
â VocĂȘ me permite escrever um artigo sobre isso? â perguntou Ben-Zayb. â Neste paĂs se pensa tĂŁo poucoâŠ
â Mas, Dom CustĂłdio â exclamou Dona Victorina com sorrisos e caretas â, se todos começarem a criar patos, os ovos de balot[5] se tornarĂŁo abundantes. Ugh, que nojento! Melhor, deixe a barra fechar completamente!