Capítulo 11
X
Cousas dos Homens
Permitta-nos a leitora que um pouco nos demoremos sobre este incidente do nosso romance. Mais tarde volveremos a fallar da viscondessa. Por agora historiemos os factos que mais concorreram para o triumpho da nossa heroina.
Quem era Julio? quem era Maria? e porque motivo foram elles chamados para aqui?
Leitor: conheces a miseria? porventura já te foi dado contemplar esse estranho espectaculo, que a cada passo se nos representa diante dos olhos?
Á beira da estrada, ella, estendendo-te a mão carcomida e triste, pede-te esmola; na escuridão do templo, cheia de vergonha, ella occulta-se ás vistas da gentalha; no recesso das florestas, arrasta-se como um reptil, de tal maneira que nós não sabemos quem ella é, se um animal, se um homem.
E, todavia, ella, a canalha, é filha de Deus como nós.
E, todavia, elle, o Ninguem errante da sociedade, o anonymo sublime do universo, elle, o, trabalhador, tambem, como nós, tem intelligencia sentimento e vontade.
Quantas vezes, ao passar por uma rua escura e humida não tropeçamos nós com um d'esses desherdados, de faces lividas o aspecto sombrio, que, não tendo um travesseiro, onde repousar a cabeça, nem uma bilha d'agua, onde refrigerar a sede, nem um vestido, onde aquecer as carnes, vive ao acaso, alumiado, apenas, pela luz das estrellas da noite, alentado pelo orvalho do céu e ao abrigo vil das lageas das escadas?!
E, no entretanto, este ser existe.
Existe nas officinas do trabalho, e chama-se proletario; existe nos campos, e chama-se jornaleiro; existe nos hospitaes, e chama-se miseravel; existe nas prisões, e chama-se criminoso; existe nas rodas e nos hospicios, e chama-se engeitado; existe nas ruas e nas escadas, e chama-se maltrapilho; existe no universo, por toda a parte espalhado, e chama-se escravo.
Sim! o escravo é o leproso sem familia, a quem só é dado sentir a dôr das suas chagas. Elle, coitado! não tem casa, nem tem jardim, nem flores, nem amigos, nem alegrias; elle, o escravo, tem apenas, como um magro cão vadio, uns ossos que róe durante o dia e umas tristesas que o acompanham durante a noite.
E nada mais tem, o escravo!
O vicio é, em geral, uma triste consequencia da falta de meios.
Perguntae ao pobre, porque se embriaga, á mulher porque se prostitue, e ao escravo porque se vende.
Embriago-me--responder-vos-ha o pobre--porque me quero esquecer do sangue que vertem as minhas feridas.
Prostituo-me--dir-vos-ha a mulher--porque tenho fome.
Vendo-me--exclamará o escravo--porque a sociedade me repudia.
E teem razão. Todos tres procuram o vicio, como alivio, como necessidade do seu espirito.
Julio era um d'esses: pertencia á rara pleiade dos independentes, d'aquelles que o Estabelecido odeia e renéga.
Muitas vezes, em creança, o pobre moço, sentado na areia da praia, e olhando o mar além, dissera em conversa intima, em que o homem interroga a consciencia, a razão, e tudo quanto o cerca: «Como é grande o mundo, meu Deus!»
E n'uma esperança eterna, e n'uma ambição sem limites, Julio ficava-se horas e horas em prodigiosa concentração, que bem lhe denunciava a lucta, a cada passo travada no espirito nervoso e inquieto.
Mas n'este mundo são as ambições como as espumas do mar: um vento as traz e um vento as leva.
Que importavam as illusôes, se com as primeiras folhas do outomno, ellas tinham de cahir uma a uma?
As flores d'alma vão-se com o outomno da vida.
Nem sempre porém as borboletas adejam sobre as flôres; nem sempre o mesmo sol illumina as campinas.
Ante o cadaver de sua mãe, Julio emmudecera. Quando a sério, e a sós comsigo mesmo pensou na vida que no futuro o esperava, quasi instinctivamente teve vontade de se suicidar.
Olhando, porém, para o céu, ajoelhou. Um raio de esperança lhe illuminava a alma, até então em trévas.
Felizes os que, como elle, sabem esperar!
A esperança conduz Colombo, e descobre mundos!