Capítulo 15
XIV
Novos mundos
Penetremos em Alcantara.
É um bairro pobre, habitado por operarios, n'uma grande parte, e por homens do mar.
Na extrema do riacho, para a direita, alveja uma pequena casa, situada na falda de um monte.
Para ahi entrou Julio, a fim de se occultar ás pesquisas da policia.
Durante o dia conservava-se fechada a casa, como querendo demonstrar ao publico, que ella era realmente deshabitada.
Á noite quatro operarios, voltando do trabalho, batiam de mansinho á porta.--Julio percebendo pelo toque ser os companheiros, levantava-se da enxerga em que de ordinario jazia, e dava volta á chave.
No interior da habitação reinava a miseria em toda a sua hediondez.
Uma enxerga apenas, abrigava, durante a noite, cinco esqueletos de homens, sem alegria, sem pão e sem futuro. Os mumias da desgraça!
De manhã, ao levantar, reuniam quatro ou seis trapos velhos, e, por vergonha, occultavam á multidão os proprios ossos do corpo.
Na cosinha existiam, por acaso, duas côdeas de brôa, arrancadas aos dentes das cadellas leprosas, uma bilha com agua e um pequeno ramo de carqueja.
A estes quatro animaes, trabalhadores n'uma fabrica de lanificios, se incorporara Julio.
Pouco tempo, porém, durou similhante situação. Ao cabo de alguns mezes a policia lançára as suas vistas para os lados de Alcantara. Isto soube-se, e chegou aos ouvidos de Julio, a este tempo já viciado por toda a casta de corrupção.
Com nova tão para desesperar, quasi endoideceu o moço-operario. Uma noite mesmo, encontrando um policia civil, e tomando-lhe da mão direita, disse: --Olé--sabe quem eu sou? Ah! não sabe? pois bem: fique sabendo...
E fugindo, estendeu-o no chão com uma fortissima bofetada.
Assim se passaram alguns dias, de louca anciedade. Por tradicção conhecia Julio um velho aldeão, de quem a mãe repetidas vezes lhe fallára. Uma noite, deixando o casebre de Alcantara, demandou a provincia, onde lhe sorriram os primeiros raios de felicidade.
Mas Julio já não era o mesmo homem. O desanimo ganhara-o por momentos. É condão da miseria transformar o homem physica e moralmente num monstro de paixões.
A barba crescera-lhe. O corpo definhava-se-lhe a olhos vistos. No coração principiavam os espinhos a crescer e a vegetar. Emfim, aos pés do operario um abysmo, um immenso abysmo se abria.
E ai do homem, que um momento escorregar no precipicio; porque para esse não haverá salvação possivel.
A mulher, que uma vez peccou, habilita-se a ser uma eterna peccadora. O homem que um dia se prostituiu, fica para sempre prostituido.
Nem sempre, porém, nos abandonam os anjos do céu.
Á beira do despenhadeiro tivera Julio o seu anjo da guarda.
Abençoada a mão, que n'um raio de amor nos traz a esperança e a consolação!