Capítulo 17
XVI
Transformações
Eu não sei qual seja melhor: se o ar do campo, se o ar da cidade.
É certo que muitos preferem a provincia á capital. Tambem é certo que os doentes, por via de regra, se não dão bem nos grandes centros:
Entretanto a cidade, se bem que despida da ingenuidade nativa da aldeia, tem para mim o supremo encanto da actividade e do trabalho. O silencio prolongado degenera as mais das vezes n'um aborrecimento deploravel, quando não é elle o gerador de graves e dolorosas molestias.
A cidade tem as suas ruas illuminadas. Os restaurantes attrahem-nos docemente. O ruido dos cafés desperta em nós o desejo da mutua confraternidade. Se por acaso atravessamos uma rua bastante concorrida, paramos instinctivamente; olhamos para as vitrines das lojas, admiramos um objecto mais do nosso agrado, e com isso nos deleitamos.
Sobretudo apraz-nos a cidade no inverno, no tempo em que as arvores, despidas das esplendidas toilettes do verão, se nos mostram tristes e sombrias como a velhice. Então é-nos o calor mui doce e suave lenitivo.
Á luz pallida do gaz distendem-se-nos os musculos enregelados, e enchem-se-nos de vida os membros confrangidos.
O café é uma invenção puramente da cidade. Rendez-vous de todas as classes sociaes, é elle para a humanidade o mesmo que a familia é para o homem. Á noite, ao cahir da tarde, quando as tristesas--aquellas vagas e mysteriosas tristesas do crepusculo--começam de entrar comnosco, nós, incitados por um desejo ardente de meigas e salutares expansões, procuramos o café naturalmente. Para alli nos dirigimos, como se elle nos fôra um templo sagrado; lá temos a nossa communhão de ideias e interesses--uma profunda e natural communhão, onde os amigos se encontram e os estranhos se abraçam.
E o theatro? e os circos? e os passeios? e a musica?
Imagine-se, pois, o leitor no theatro de D. Maria. A récita é dada em beneficio de um asylo. A plateia está replecta de espectadores, e nos camarotes, como que resplandecem, em glorioso desafio, as mais encantadoras formosuras de Lisboa: Como se disse no segundo capitulo d'este romance, o drama escolhido para esta noite era a Vida de um rapaz pobre. Apparecêra a Viscondessa, n'uma das frisas da frente, ostentando, um delicado decote, um cóllo d'alabrasto, ao qual estava cingido um valioso collar de pérolas. Proxima d'ella, e na frisa immediata, uma condessa rica, enlêvo dos negociantes accreditados, mostrava uns braços gordos, a cujos pulsos, por egual gordos e sadios, se enroscavam umas pulseiras de diamantes, compradas na mais afamada ourivesaria de Paris. Mais além uma menina loura, ha pouco sahida do collegio, tomava poses incontestavelmente estudadas ao espelho, olhando de soslaio para um moço ainda imberbe, soi-disant litterato de botequim e claqueur improvisado.
E assim succediam os factos, as pessoas e as cousas. Nas torrinhas estavam, segundo o costume, alguns rapazes, ao parecer entendedores--uns bons rapazes despretenciosos, á mistura com alguns operarios zelosos e trabalhadores.
No fim do 3.^o acto, quando Alfredo entrava na frisa da Viscondessa, um ignorado personagem se levantou nas torrinhas, replecto de amor e de febre. Desceu as escadas com desusada precipitação, e entrou no restaurante. Pediu aguardente de canna e bebeu, bebeu sempre... Pediu uma folha de papel de carta, e com um lapis que trazia no bolso do casaco, escreveu um bilhete.
Embuçado e trémulo, esperou que o espectaculo terminasse. Quando, por entre a multidão que sahia do theatro, lobrigou a Viscondessa, sem atinar com a intenção dos seus actos, allucinado, doido, perdido--acercou-se della, entregou-lhe o bilhete, e fugiu.
Pobre de ti, meu Julio, espirito leviano e generoso, e agora já transformado em José Xavier, em virtude das leis do teu paiz.
O ar da cidade, para ti renovado, foi o abysmo que se te abriu aos pés.
Sem mesmo querer, olvidavas a aldeia, que te fôra consolação momentanea nas agruras da vida; e n'esse esquecimento involuntario ia-se-te a alma partida com a doce imagem da mulher honrada que por ti velava dia e noite.
Pobre de ti, meu poeta! e pobre d'aquelles, que, como tu, soffrem as mesmas e tristes inconstancias, a cujo horrivel imperio não ha nunca resistir n'este mundo de phantasmas e de vadios.
Pobre de ti!