Capítulo 19
XVIII
O escudeiro da senhora Viscondessa
Apenas sahido do theatro o primeiro pensamento de Julio fôra suicidar-se.
Alguma cousa, porém, impossivel de explicar-se, o prendia á vida. Demais elle era novo; contava vinte e seis annos, se tanto; possuia aspirações em larga escala; vastos affectos lhe referviam na mente escaldada. É verdade que até ahi a pobresa o não deixára sahir do seu silencio. Que lhe importava, comtudo, a obscuridade do presente, se o futuro lhe podia ser de amor e de rosas?
Uma lucta desesperadora se lhe travou então no espirito irrequieto.
--Sim! a vida--exclamava elle--oh a vida... e chama-se a isto vida...
Mas se ella de facto me pertence, porque me não hei de eu desfazer della? se por naturesa, Deus me creou livre; se para mim nada existe na terra, além d'este fardo importuno a que chamam miseria, para que persistir n'elle. Não! É mister sahir d'este salão, d'este vil salão!
cuja área denominam universo: procurar um outro, cujo começo é o cemiterio, e o fim, talvez, a eternidade da materia... Os homens... que são os homens? uns tristes egoistas sem consciencia e sem pundonor, uns mercenarios torpes, altivos invejosos e estupidos... perfeitamente como os outros animaes... Mas aquella mulher! e qual? Cecilia? oh, Cecilia é uma andorinha cheia de castidade, muito pura e muito simples. E depois--que lhe devo eu? se me teve amor, tambem eu a amei... se me deu affectos, tambem eu lh'os retribui. Acima d'ella, porém, está a
Viscondessa. Comparál-as? oh! não, por Deus, Cecilia é uma pobre rapariga sem arte; falta-lhe a elegancia da Viscondessa, não sabe fallar, não se sabe vestir, não se sabe pentear... para que hesitar, pois? Ah! louco, que eu sou na verdade! mas se esta imagem me persegue por toda a parte, se a não posso apagar da memoria, porque me está aqui parada, aqui, aqui bem dentro, n'este coração maldicto... Sou pobre!
Embora! tornar-me-hei rico; irei ao Brazil; amontoarei dinheiro sobre dinheiro; far-me-hei negociante e vendedor de café.
Assim monologava o moço operario, de si para comsigo, sem outro alento que não fosse uma paixão profunda, ardente, vulcanica. Sobre a espaçosa fronte cahira-lhe o cabello n'um singular desalinho. Os braços, crusados ao longo da mesa, bem patenteavam a afflicçao que n'aquelle momento o devorava. No interior do peito referviam-lhe as negras chammas do supplicio--aquellas chammas infernaes, remordentes, que nos são, como que o appêlo de Satan sobre a terra.
Adormeceu. Um languido torpôr se lhe apossou dos membros cançados.
N'esses raros momentos de nervosa agitação, uma hora de somno vale mais positivamente, muito mais, do que uma noite bem dormida.
Quando voltou a si era dia claro no horisonte. Abriu a janella, e tomado d'uma ancia incuravel, alongou os olhos pelas montanhas longinquas.
Similhante ao peregrino, que, com os olhos ávidos, mede a extensão do deserto, assim elle tambem mediu a extensão da sua dôr. Se era grande ou pequena, só o espirito ao certo lh'o poderia affirmar.
Entretanto a Viscondessa, nem sequer se lembrára mais do bilhete recebido no theatro. No dia seguinte, porém, seriam quatro horas da tarde, quando Virginia lhe annunciou a visita de um operario.
A Viscondessa, na sua proverbial delicadesa, mandou-o entrar para a sala.
Um minuto depois parava ao limiar da porta um sympathico rapaz de bigode preto, macillento e moreno. Trajava modestamente uma bluza azul e uma calça côr de cinza.
--Disseram-me que a senhora Viscondessa precisava de um creado--principiou o desconhecido.
--Como se chama?--interrompeu a senhora.
--José Xavier.
--José! pois bem: agrada-me o nome. Póde ficar. Virginia que lhe diga o que tem a fazer.
E, sem mais, virou-se a viscondessa para o outro lado, retomando a primitiva posição.
Ao jantar alguns incidentes notaveis se deram. Julio servia á mesa. Com os olhos sempre fitos na Viscondessa mal pestanejava, o pobre do rapaz.
Por algumas vezes lhe cahiram os pratos da mão; por algumas vezes substituiu um prato lavado por um outro sujo; por algumas vezes se riu
Virginia a bom rir. Para tal, porém, nem sequer a ama reparou em meio das suas caprichosas divagações.
Os dias iam correndo em silencio. Julio, ardendo em amor, seguia, como um cão, os mais insignificantes passos da Viscondessa. Quando ella passava pelo corredor, occultava-se atraz das portas; se podia, beijava-lhe a fimbria do vestido; quando ella sahia, entrava-lhe no quarto de vestir e ali se ficava horas esquecidas n'uma d'estas allucinações que só conhecem os espiritos febris e nervosos. N'um momento de cegueira, roubara-lhe o, retracto do album; com elle adormecia todos os dias, e com elle tambem entrava no serviço da casa.
Entretanto o diabo arma-as, quando menos a gente as espera.
Julio penetrára no quarto de sua ama. Involuntariamente se demorou mais do que o costume. A Viscondessa entrou cêdo n'esse dia. O escudeiro mal tivera tempo de se esconder d'entro de um guarda-roupa.
Ia Virginia, segundo o seu habito, a abrir o armario; quando Julio, dando um pulo para fóra, deixou espavoridas ama e creada.
--Ai! credo! Jesus! gritou Virginia--Ladrões em casa; ladrões, minha senhora.
--Que é? que é?--exclamou a Viscondessa.
--Pois não viu? O tratante do José aqui fechado!
--O José--retorquiu a senhora!
--O José, sim, minha senhora, o José...
--É verdade, senhora Viscondessa; fui eu, fui eu que commetti este enorme attentado--obtemperou Julio, trémulo de colera e de raiva. E para prova, aqui me tem a seus pés, sollicitando-lhe perdão.
--Virginia, disse a Viscondessa, paga a este miseravel, o manda-o embora.
--Já, minha senhora.
--Bem me queria a mim parecer--murmurava a esperta da creada--que aqui andava sua cousa encoberta.