Capítulo 35
XXXIV
Latet anguis
A primavera, a doce filha da harmonia e da luz, desentranhava-se em flôres e fructos. Rejubilavam as aves no arvoredo frondente. O céu era azul, limpido. Nem uma nuvem lhe maculava a superficie chrystallina e pura.
Nada mais delicioso do que esta rapida transição de uma estação, agreste e fria, para uma outra agradavel e sympathica. Dir-se-hia que um velho, sulcado do rugas, se metamorphoseára subitamente, como o Fausto, n'um elegante moço, cheio de vida e de aspirações.
As arvores, toucadas de flôr, recebiam das auras vaporosas o amoroso abraço de todos os annos. O sol, dourando com as suas palhetas luminosas os arbustos vividos e scintillantes--reflectia-se suavemente sobre as aguas do ribeiro, que, em amoravel ondulação, serpeavam atravez os terrenos pedregosos, parando, ora atraz de um rochedo, com o qual confidenciavam ternamente, ora atraz de uma planta, com a qual se enroscavam de passagem.
Ao longe os pinheiraes acordavam as solidões com as vibrações da sua harpa plangente. O rouxinol, casto como a andorinha, desferia a medo o seu eloquente hymno de amor. É que elle o artista, filho do céu e do canto, pressentira, primeiro que nenhum outro ser da creação, o aproximar alegre do sol e da vida.
Meiga como uma mãe dedicada, a pomba, symbolo de virgindade, arrulhava de manso, muito de manso, como amante que não deseja ser escutada. E a aguia, a altiva rainha do espaço, guindara-se, por entre nuvens, até ás ignotas regiões do infinito.
Entretanto--e como que para contrastar--o peixe, o maldicto das trevas, mal elevara a gélida escama ao lume d'agua, para logo a mergulhar de novo, no lodo, sua morada habitual. O insecto, o desprotegido do dia, esperava a noite, sua irmã, para assim deixar em paz o lobrego buraco, para onde um raio de sol prestes o afugentara.
Os campos eram verdes e promettedores. Percorria-os o boi, quasi sem cessar, na extrema paciencia dos animaes possantes.
A montanha, despindo o lençol, que durante mezes a envolvera--deixara de alvejar, afim de se tornar um throno de contemplação e de magestade.
E de facto subia o lavrador á cumiada do seu monte, e de lá, passeando os olhos avidos em volta do campo, com o qual, em verdes annos, se matrimoniára--entoava cantos jubilosos e amigaveis.
E a aldeã, resplandecendo de feliz contentamento, apurava a sua saia de chita que para os dias santos havia sido feita e arranjada.
Cecilia, porém, está de lucto. Os olhos verdes, fartos de chorar, brilham profundamente como o abysmo dos mares. Ella é triste, coitada! e sem esperança. Morrera-lhe o pai.
--Olha, Cecilia--dizia-lhe o velho na sua derradeira hora--parece-me que o teu noivado só no céu poderá ter logar. Perdôa tu ao ingrato assim como eu lhe perdôo...
E expirou.
Quatro mezes volvidos sobre este caso estava a pobre rapariga profundamente mergulhada nos seus mais intimos pensamentos, quando uma leve pancada, vibrada sobre o vidro da janella, a fez estremecer e agitar.
Mal se levantara ella e já uma sombra, abrindo a vidraça, saltava de um pulo para o centro da casa.
--O senhor prior por aqui?--exclamou a ingenua catholica.
--É verdade, minha filha. É justamente o teu prior que Deus manda a esta casa... Sabia que estavas triste. Haviam-m'o dicto as estrellas do céu.
Consolar os tristes é um dever do bom parocho.
--E minha mãe, senhor padre João, consentirá ella...
--A cima de tua mãe está a voz do céu que aqui me traz. Conta-me a tua vida, Cecilia. Não tenhas receio de mim. Eu saberei aconselhar-te.
A Egreja para tudo tem remedio. Só Deus sabe premiar os bons e castigar os máus.
E o padre, procurando um escabello, foi sentar-se ao pé de Cecilia.
A rapariga, córando de pejo, conservára os olhos cravados no chão.
Assim durou, por alguns minutos, esta scena.
--Como tu és boa, minha filha--rompeu alfim o padre.
E, sem mais, imprimiu-lhe um beijo na face.
Assim, como a pomba ferida por caçador experiente, assim tambem Cecilia tentara esquivar-se ás grosseiras amabilidades do seu respeitavel parocho.
--Embalde--gritava o padre. É Deus que assim m'o ordena!...
E, ao longe, um guitarrista que passava cantava tristemente a seguinte quadra de Gonçalves Dias: «O amor da mulher é qual nuvem
Que o vento impelle no ar;
O amor da mulher é voluvel
É tão vario, como a onda do mar.»