Capítulo 37
XXXVI
Toldam-se os horisontes
Nem sempre a felicidade nos sorri. Quando menos o acreditamos, embacia-se o prisma que sonhavamos perpetuo e immorredoiro, e as illusões começam de cahir uma por uma.
É assim a vida; é assim o mundo: rodeado de formosas apparencias e colmado de negra podridão.
Áquelles que possuem o raro condão de saber disfarçar as mais intimas tristesas da vida; áquelles a quem Deus não dotou com o precioso instincto da arte; áquelles, emfim, para quem a paciencia é a norma, e que se não apaixonam, que se não arrebatam, que se não enthusiasmam, gelados, mudos, frios como o sepulchro.--a esses, pouco pódem importar as tristesas do poeta e as suas profundas melancholias, que são como que o lento e sombrio finar da existencia.
Ó noites de agonia, noites de isolamento--como vós sois tristes e duras de passar! O mundo, que vos detesta, ó doces e amargosas horas da experiencia, foje de vós! Ao vosso lado só tendes os poetas e os artistas e os sábios e todos aquelles que no horror da noite procuram o ideal da humana perigrinação.
Bemdictas sejaes vós, companheiras do tumulo, porque me ensinastes o soffrer!
* * * * *
A Viscondessa era um d'esses raros typos angelicos, que despresando a opinião das maiorias, porventura o mais estupido de todos os preconceitos. se entregam febril e vertiginosamente nas azas do seu capricho, sem outro intento que não seja o louco voar atravez as idealidades que de continuo se lhe desenham na mente esbraseada.
Eu gósto d'estas mulheres, d'estas candidas andorinhas, que, superiormente ás outras mulheres, suas irmãs, se alimentam no tepido halito da primavera, embriagadas e seduzidas pela doce irradiação do céu.
Se péccam não é d'ellas a culpa. Quem poderá dizer á ave, á meiga filha da luz: tu voarás para aqui? e ao rouxinol, o adoravel amigo dos poetas: tu cantarás a taes horas? e ao oceano, o titanico athleta da creação: tu não correrás? Quem?
A Viscondessa era uma creança com sêde de amor, boa e ingenua como todas as creanças. Infeliz ou não--o certo é que um dia ella se encontrou sem amante e sem dinheiro. Alfredo roubara-lhe o coração, e o que é mais ainda--a crença no amor; Henrique, ingrato explorador, subtrahira-lhe os titulos da sua fortuna. N'estes termos, que fazer? A quem recorrer se o amor, assim e tão de subito--se lhe transformára em inimisade e a fortuna em pobreza?
A Viscondessa, perplexa, hesitante, nervosa, chamou pela sua creada.
--Sabes Virginia--dizia ella á sua amiga--que estamos roubadas?
--Roubadas... minha senhora?!
--Sim, roubadas... e roubadas por Henrique, a quem nós n'esta casa tratamos com um carinho de irmãs...
--Oh! meu Deus!... meu Deus!... e que havemos de fazer, minha senhora?
E Virginia beijou pela primeira vez na sua vida a angelica fronte da
Viscondessa.
A desgraça tem este condão mysterioso: torna-nos irmãos involuntariamente.
--Não é verdade, Virginia, que tu nunca me has de abandonar?
--E quem pensará em tal, senhora Viscondessa?
--Pois bem: espera um bocadinho, que me has de levar uma carta á rua da
Emenda.
--O que V. Ex.^a quizer, minha senhora.
A Viscondessa sentou-se á mesa; tomou uma folha de papel e principiou a escrever nos seguintes termos: «Excellentissimo senhor Barão: «Pela primeira vez ouso incommodal-o. Se Vossa Excellencia, porém, adivinhasse a triste situação em que actualmente me encontro, por certo me desculparia estas instantes linhas. Entretanto, impellida pelas circumstancias, quero acreditar que Vossa Excellencia se não furtará a vir procurar-me hoje mesmo.
«E n'esta esperança fecho esta carta, tendo a honra de ser
De vossa excellencia serva respeitosa
S. C.
Lisbôa
Largo de Camões
A Viscondessa de B*** ..............................
Virginia, tomando das mãos da Viscondessa este bilhete, competentemente sellado com o carimbo da casa, sahiu na direcção acima indicada.