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A Cidade e as Serras

por Eça de Queiroz

Capítulo 7 - Parte 2

Era fartura! O meu Principe sentia abafadamente a fartura de Paris:--e na Cidade, na symbolica Cidade, fóra de cuja vida culta e forte (como elle outr'ora gritava, illuminado) o homem do seculo XIX nunca poderia saborear plenamente a «delicia de viver», elle não encontrava agora fórma de vida, espiritual ou social, que o interessasse, lhe valesse o esfôrço d'uma corrida curta n'uma tipoia facil. Pobre Jacintho! Um jornal velho, setenta vezes relido desde a Chronica até aos Annuncios, com a tinta delida, as dobras roídas, não enfastiaria mais o Solitario, que só possuisse na sua Solidão esse alimento intellectual, do que o

Parisianismo enfastiava o meu doce camarada! Se eu n'esse verão capciosamente o arrastava a um Café-Concerto, ou ao festivo Pavilhão d'Armenonville, o meu bom Jacintho, collado pesadamente á cadeira com um maravilhoso ramo de orchideas na casaca, as finas mãos abatidas sobre o castão da bengala, conservava toda a noite uma gravidade tão estafada, que eu, compadecido, me erguia, o libertava, gozando a sua pressa em abalar, a sua fuga d'ave solta... Raramente (e então com vehemente arranque como quem salta um fosso) descia a um dos seus Clubs, ao fundo dos Campos-Elyseos. Não se occupara mais das suas Sociedades e

Companhias, nem dos Telephones de Constantinopla, nem das Religiões

Esotericas, nem do Bazar Espiritualista, cujas cartas fechadas se amontoavam sobre a mesa d'ebano, d'onde o Grillo as varria tristemente como o lixo d'uma vida finda. Tambem lentamente se despegava de todas as suas convivencias. As paginas da Agenda côr de rosa murcha andavam desafogadas e brancas. E se ainda cedia a um passeio de Mail-coach, ou a um convite para algum Castello amigo dos arredores de Paris, era tão arrastadamente, com um esforço tão saturado ao enfiar o paletot leve, que me lembrava sempre um homem, depois d'um gordo jantar de provincia, a estalar, que, por pollidez ou em obediencia a um dogma, devesse ainda comer uma lamprêa de ovos!

Jazer, jazer em casa, na segurança das portas bem cerradas e bem defendidas contra toda a intrusão do mundo, seria uma doçura para o meu

Principe se o seu proprio 202, com todo aquelle tremendo recheio de

Civilisação, não lhe désse uma sensação dolorosa de abafamento, de atulhamento! Julho escaldava: e os brocados, as alcatifas, tantos moveis roliços e fôfos, todos os seus metaes e todos os seus livros, tão espessamente o opprimiam, que escancarava sem cessar as janellas para prolongar o espaço, a claridade, a frescura. Mas era então a poeira, suja e acre, rolada em bafos mornos, que o enfurecia: --Oh, este pó da Cidade!

--Mas, oh Jacintho, por que não vamos para Fontainebleau, ou para

Montmorency, ou...

--P'ra o campo? O que! P'ra o campo?!

E na sua face enrugada, através d'este berro, lampejava sempre tanta indignação, que eu curvava os hombros, humilde, no arrependimento de ter affrontosamente ultrajado o Principe que tanto amava. Desventurado

Principe! Com o seu dourado cigarro d'Yaka a fumegar, errava então pelas salas, lenta e murchamente, como quem vaga em terra alheia sem affeições e sem occupações. Esses desaffeiçoados e desoccupados passos monotonamente o traziam ao seu centro, ao gabinete verde, á Bibliotheca d'ebano, onde accumulara Civilisação nas maximas proporções para gozar nas maximas proporções a delicia de viver. Espalhava em tôrno um olhar farto. Nenhuma curiosidade ou interesse lhe sollicitavam as mãos, enterradas nas algibeiras das pantalonas de sêda, n'uma inercia de derrota. Annulado, bocejava com descorçoada molleza. E nada mais instructivo e doloroso do que este supremo homem do seculo XIX, no meio de todos os apparelhos reforçadores dos seus orgãos, e de todos os fios que disciplinavam ao seu serviço as Forças Universaes, e dos seus trinta mil volumes repletos do saber dos seculos--estacando, com as mãos derrotadas no fundo das algibeiras, e exprimindo, na face e na indecisão molle d'um bocejo, o embaraço de viver!

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