Capítulo 5 - Parte 2
--Oh para cima tem pó d'arroz!... Mas é uma sécca! Sempre bilhetes, sempre telephones, sempre telegrammas. E tres mil francos por mez, além das flores... Uma massada!
E as duas rugas do meu Principe, aos lados do seu afilado nariz, curvado sobre a salada, eram como dous valles muito tristes, ao entardecer.
Acabavamos o almoço, quando um escudeiro, muito discretamente, n'um murmurio, annunciou Madame d'Oriol. Jacintho pousou com tranquillidade o charuto; eu quasi me engasguei, n'um sorvo alvoroçado de café. Entre os reposteiros de damasco côr de morango ella appareceu, toda de negro, d'um negro liso e austero de Semana Santa, lançando com o regalo um lindo gesto para nos socegar. E immediatamente, n'uma volubilidade docemente chalrada: --É um momento, nem se levantem! Passei, ia para a Magdalena, não me contive, quiz vêr os estragos... Uma inundação em Paris, nos
Campos-Elyseos! Não ha senão este Jacintho. E vem no Figaro! O que eu estava assustada, quando telephonei! Imaginem! Agua a ferver, como no
Vesuvio... Mas é d'uma novidade! E os estofos perdidos, naturalmente, os tapetes... Estou morrendo por admirar as ruinas!
Jacintho, que não me pareceu commovido, nem agradecido com aquelle interesse, retomára risonhamente o charuto: --Está tudo secco, minha querida senhora, tudo secco! A belleza foi hontem, quando a agua fumegava e rugia! Ora que pena não ter ao menos cahido uma parede!
Mas ella insistia. Nem todos os dias se gozavam em Paris os destroços d'uma inundação. O Figaro contára... E era uma aventura deliciosa, uma casa escaldada nos Campos-Elyseos!
Toda a sua pessoa, desde as plumasinhas que frisavam no chapéo até á ponta reluzente das botinas de verniz, se agitava, vibrava, como um ramo tenro sob o boliço do passaro a chalrar. Só o sorriso, por traz do véo espesso, conservava um brilho immovel. E já no ar se espalhára um aroma, uma doçura, emanadas de toda a sua mobilidade e de toda a sua graça.
Jacintho no emtanto cedera, alegremente: e pelo corredor Madame d'Oriol ainda louvava o Figaro amavel, e confessava quanto tremera... Eu voltei ao meu café, felicitando mentalmente o Principe da Gran-Ventura por aquella perfeita flôr de Civilisação que lhe perfumava a vida.
Pensei então na apurada harmonia em que se movia essa flôr. E corri vivamente á ante-camara, verificar diante do espelho o meu penteado e o nó da minha gravata. Depois recolhi á sala de jantar, e junto da janella, folheando languidamente a Revista do Seculo XIX, tomei uma attitude de elegancia e d'alta cultura. Quasi immediatamente elles reappareceram: e Madame d'Oriol, que, sempre sorrindo, se proclamava espoliada, nada encontrára que recordasse as agoas furiosas, roçou pela mesa, onde Jacintho procurava, para lhe offerecer, tangerinas de Malta, ou castanhas geladas, ou um biscouto molhado em vinho de Tokai.
Ella recusava com as mãos guardadas no regalo. Não era alta, nem forte--mas cada prega do vestido, ou curva da capa, cahia e ondulava harmoniosamente, como perfeições recobrindo perfeições. Sob o véo cerrado, apenas percebi a brancura da face empoada, e a escuridão dos olhos largos. E com aquellas sêdas e velludos negros, e um pouco do cabello louro, d'um louro quente, torcido fortemente sobre as pelles negras que lhe orlavam o pescoço, toda ella derramava uma sensação de macio e de fino. Eu teimosamente a considerava como uma flôr de
Civilisação:--e pensava no secular trabalho e na cultura superior que necessitára o terreno onde ella tão delicadamente brotára, já desabrochada, em pleno perfume, mais graciosa por ser flôr d'esforço e d'estufa, e trazendo nas suas pétalas um não sei quê de desbotado e de ante-murcho.
No emtanto, com a sua volubilidade de passaro, chalrando para mim, chalrando para Jacintho, ella mostrava o seu lindo espanto por aquelle montão de telegrammas sobre a toalha.
--Tudo esta manhã, por causa da inundação?... Ah, Jacintho é hoje o homem, o unico homem de Paris! Muitas mulheres n'esses telegrammas?
Languidamente, com o charuto a fumegar, o meu Principe empurrou para a sua amiga o telegramma do Gran-duque. Então Madame d'Oriol teve um ah!
muito grave e muito sentido. Releu profundamente o papel de S. A. que os seus dedos acariciavam com uma reverencia gulosa. E sempre grave, sempre séria: --É brilhante!
Oh, certamente! n'aquelle desastre tudo se passára com muito brilho, n'um tom muito Parisiense. E a deliciosa creatura não se podia demorar, porque fizera marcar um logar na egreja da Magdalena para o sermão!
Jacintho exclamou com innocencia: --Sermão?... É já a estação dos sermões?
Madame d'Oriol teve um movimento de carinhoso escandalo e dôr. O quê!
pois nem na austera casa dos Trèves dera pela entrada da quaresma? De resto não se admirava--Jacintho era um turco! E, immediatamente celebrou o prégador, um frade dominicano, o Père Granon! Oh d'uma eloquencia!
d'uma violencia! No derradeiro sermão prégara sobre o amor, a fragilidade dos amores mundanos! E tivera coisas d'uma inspiração, d'uma brutalidade! Depois que gesto, um gesto terrivel que esmagava, em que se lhe arregaçava toda a manga, mostrando o braço nú, um braço soberbo, muito branco, muito forte!
O seu sorriso permanecia claro sob o olhar que negrejára dentro do véo negro. E Jacintho, rindo: --Um bom braço de director espiritual, hein? Para vergar, espancar almas...
Ella acudiu: --Não! infelizmente o Père Granon não confessa!
E de repente reconsiderou--aceitava um biscouto, um cálice de Tokai. Era necessario um cordial para affrontar as emoções do Père Granon! Ambos nos precipitáramos, um arrebatando a garrafa, outro offerecendo o prato de bonbons. Franzio o véo para os olhos, chupou á pressa um bolo que ensopára no Tokai. E como Jacintho, reparando casualmente no chapéo que ella trazia, se curvára com curiosidade, impressionado, Madame d'Oriol apagou o sorriso, toda seria, ante uma cousa seria: --Elegante, não é verdade?... É uma creação inteiramente nova de Madame
Vial. Muito respeitoso, e muito suggestivo, agora na Quaresma.
O seu olhar, que me envolvera, tambem me convidava a admirar. Approximei o meu focinho de homem das serras para contemplar essa creação suprema do luxo de Quaresma. E era maravilhoso! Sobre o velludo, na sombra das plumas frizadas, aninhada entre rendas, fixada por um prégo, pousava delicadamente, feita de azeviche, uma Corôa de Espinhos!
Ambos nos extasiamos. E Madame d'Oriol, n'um movimento e n'um sorriso que derramou mais aroma e mais claridade, abalou para a Magdalena.
O meu Principe arrastou pelo tapete alguns passos pensativos e molles. E bruscamente, levantando os hombros com uma determinação immensa, como se deslocasse um mundo: --Oh Zé Fernandes, vamos passar este Domingo n'alguma cousa simples e natural...
--Em quê?
Jacintho circumgirou os olhares muito abertos, como se, atravez da Vida
Universal, procurasse anciosamente uma cousa natural e simples. Depois, descançando sobre mim os mesmos largos olhos que voltavam de muito longe, cançados e com pouca esperança: --Vamos ao Jardim das Plantas, vêr a girafa!