Capítulo 6 - Parte 1
IV
N'essa fecunda semana, uma noite, recolhiamos ambos da Opera, quando
Jacintho, bocejando, me annunciou uma festa no 202.
--Uma festa?...
--Por causa do Gran-Duque, coitado, que me vai mandar um peixe delicioso e muito raro que se pesca na Dalmacia. Eu queria um almoço curto. O
Gran-Duque reclamou uma ceia. É um barbaro, besuntado com litteratura do seculo XVIII, que ainda acredita em ceias, em Paris! Reuno no domingo tres ou quatro mulheres, e uns dez homens bem typicos, para o divertir.
Tambem aproveitas. Folheias Paris n'um resumo... Mas é uma massada amarga!
Sem interesse pela sua festa, Jacintho não se affadigou em a compôr com relevo ou brilho. Encommendou apenas uma orchestra de Tziganes (os
Tziganes, as suas jalecas escarlates, a melancolia aspera das Czardas ainda n'esses tempos remotos emocionavam Paris): e mandou, na
Bibliotheca, ligar o Theatrophone com a Opera, com a Comedia-Franceza, com o Alcazar e com os Buffos, prevendo todos os gostos desde o tragico até ao picaro. Depois no domingo, ao entardecer, ambos visitamos a mesa da ceia, que resplandecia com as velhas baixellas de D. Galião. E a faustosa profusão de orchideas, em longas sylvas por sobre a toalha bordada a sêda, enroladas aos fructeiros de Saxe, trasbordando de crystaes lavrados e filagranados d'ouro, espalhava uma tão fina sensação de luxo e gosto, que eu murmurei:--«Caramba, bemdito, seja o dinheiro!»
Pela primeira vez, tambem, admirei a copa e a sua installação abundante e minuciosa--sobretudo os dois ascensores que rolavam das profundidades da cozinha, um para os peixes e carnes aquecido por tubos d'agua fervente, o outro para as saladas e gelados revestido de placas frigorificas. Oh, este 202!
Ás nove horas, porém, descendo eu ao gabinete de Jacintho para escrever a minha boa tia Vicencia, em quanto elle ficára no toucador com o manícuro que lhe polia as unhas, passamos n'esse delicioso palacio, florido e em gala, por bem corriqueiro susto! Todos os lumes electricos, subitamente, em todo o 202, se apagaram! Na minha immensa desconfiança d'aquellas forças universaes, pulei logo para a porta, tropeçando nas trevas, ganindo um Aqui d'Elrei! que tresandava a Guiães. Jacintho em cima berrava, com o manícuro agarrado ás pyjamas. E de novo, como serva ralassa que recolhe arrastando as chinellas, a luz resurgiu com lentidão. Mas o meu Principe, que descera, enfiado, mandou buscar um engenheiro á Companhia Central da Electricidade Domestica. Por precaução outro creado correu á mercearia comprar pacotes de velas. E o Grillo desenterrava já dos armarios os candelabros abandonados, os pesados castiçaes archaicos dos tempos inscientificos de D. Galião: era uma reserva de veteranos fortes, para o caso pavoroso em que mais tarde, á ceia, falhassem perfidamente as forças bisonhas da Civilisação. O
Electricista, que acudira esbaforido, afiançou porém que a Electricidade se conservaria fiel, sem outro amuo. Eu, cautelosamente, soneguei na algibeira dous côtos de estearina.
A Electricidade permaneceu fiel, sem amuos. E quando desci do meu quarto, tarde (porque perdera o collete de baile e só depois d'uma busca furiosa e praguejada o encontrei cahido por traz da cama!), todo o 202 refulgia, e os Tziganes, na antecamara, sacudindo as guedelhas, atiravam as arcadas d'uma valsa tão arrastadora que, pelas paredes, os immensos
Personagens das tapeçarias, Priamo, Nestor, o engenhoso Ulysses, arfavam, boliam com os pés venerandos!
Timidamente, sem rumor, puxando os punhos, penetrei no gabinete de
Jacintho. E fui logo acolhido pelo sorriso da condessa de Treves, que, acompanhada pelo illustre historiador Danjon (da Academia Franceza), percorria maravilhada os Apparelhos, os Instrumentos, toda a sumptuosa
Mechanica do meu super-civilisado Principe. Nunca ella me parecera mais magestosa do que n'aquellas sêdas côr de açafrão, com rendas cruzadas no peito á Maria-Antonietta, o cabello crespo e ruivo levantado em rolo sobre a testa dominadora, e o curvo nariz patricio, abrigando o sorriso sempre luzidio, sempre corrente, como um arco abriga o correr e o luzir d'um regato. Direita como n'um solio, a longa luneta de tartaruga acercada dos olhos miudos e turvamente azulados, ella escutava deante do
Graphophono, depois deante do Microphono, como melodias superiores, os commentarios que o meu Jacintho ia atabalhoando com uma amabilidade penosa. E ante cada roda, cada mola, eram pasmos, louvores finamente torneados, em que attribuia a Jacintho, com astuta candura, todas aquellas invenções do Saber! Os utensilios misteriosos que atulhavam a mesa d'ebano foram para ella uma iniciação que a enlevou. Oh, o «numerador de paginas»! oh, o «collador d'estampilhas»! A caricia demorada dos seus dedos seccos aquecia os metaes. E supplicava os endereços dos fabricantes para se prover de todas aquellas utilidades adoraveis! Como a vida, assim apetrechada, se tornava escorregadia e facil! Mas era necessario o talento, o gosto de Jacintho, para escolher, para «crear!» E não só ao meu amigo (que o recebia com resignação) ella offertava o fino mel. Affagando com o cabo da luneta o Telegrapho, achou a possibilidade de recordar a eloquencia do Historiador. Mesmo para mim (de quem ignorava o nome) arranjou junto do Phonographo, e ácerca de «vozes d'amigos que é doce colleccionar», uma lisonjasinha redondinha e lustrosa, que eu chupei como um rebuçado celeste. Boa casaleira que vae atirando o grão aos frangos famintos, a cada passo, maternalmente, ella nutria uma vaidade. Sofrego d'outro rebuçado, acompanhei a sua cauda sussurrante e côr d'açafrão. Ella parára deante da Machina-de-contar, de que Jacintho já lhe fornecera pacientemente uma explicação sapiente. E de novo roçou os buracos d'onde espreitam os numeros negros, e com o seu enlevado sorriso murmurou:--«Prodigiosa, esta prensa electrica!...»
Jacintho accudiu: --Não! Não! Esta é...
Mas ella sorria, seguia... Madame de Treves não comprehendera nenhum apparelho do meu Principe! Madame de Treves não attendera a nenhuma dissertação do meu Principe! N'aquelle gabinete de sumptuosa Mechanica ella sómente se occupára em exercer, com proveito e com perfeição, a
Arte de Agradar. Toda ella era uma sublime falsidade. Não escondi a
Danjon a admiração que me penetrava.
O facundo Academico revirou os olhos bogalhudos: --Oh! e um gôsto, uma intelligencia, uma seducção!... E depois como se janta bem em casa d'ella! Que café!... Mulher superior, meu caro senhor, verdadeiramente superior!
Deslisei para a bibliotheca. Logo á entrada da erudita nave, junto da estante dos Padres da Egreja onde alguns cavalheiros conversavam, parei a saudar o director do Boulevard e o Psychologo-feminista, o auctor do
Coração Triple, com quem na véspera me familiarisára ao almoço, no 202. O seu acolhimento foi paternal: e, como se necessitasse a minha presença, reteve na sua mão illustre, rutilante de anneis, com força e com gula, a minha grossa palma serrana. Todos aquelles senhores, com effeito, celebravam o seu Romance, a Couraça, lançado n'essa semana entre gritinhos de gôzo e um quente rumor de saias alvoroçadas. Um sobretudo, com uma vasta cabeça arranjada á Van Dick e que parecia postiça, proclamava, alçado na ponta das botas, que nunca penetrára tão fundamente, na velha alma humana, a ponta da Psychologia Experimental!
Todos concordavam, se apertavam contra o Psychologo, o tratavam por «mestre». Eu mesmo, que nem sequer entrevira a capa amarella da
Couraça, mas para quem elle voltava os olhos pedinchões e famintos de mais mel, murmurei com um leve assobio:--«uma delicia!»
E o Psychologo, reluzindo, com o labio humido, entalado n'um alto collarinho onde se enroscava uma gravata á 1830, confessava modestamente que dissecára todas aquellas almas da Couraça com «algum cuidado», sobre documentos, sobre pedaços de vida ainda quentes, ainda a sangrar... E foi então que Marizac, o duque de Marizac, notou, com um sorriso mais afiado que um lampejo de navalha, e sem tirar as mãos dos bolsos: --No emtanto, meu caro, n'esse livro tão profundamente estudado ha um erro bem estranho, bem curioso!...
O Psychologo, vivamente, atirára a cabeça para traz: --Um erro?
Oh, sim, um erro! E bem inesperado n'um mestre tão experiente!... Era attribuir á esplendida amorosa da Couraça, uma duqueza, e do gosto mais puro,--um collete de setim preto! Esse collete, assim preto, de setim, apparecia na bella pagina de analyse e paixão em que ella se despia no quarto de Ruy d'Alize. E Marizac, sempre com as mãos nos bolsos, mais grave, appellava para aquelles senhores. Pois era verosimil, n'uma mulher como a duqueza, esthetica, pre-raphaelitica, que se vestia no Doucet, no Paquin, nos costureiros intellectuaes, um collete de setim preto?
O Psychologo emmudecera, colhido, trespassado! Marizac era uma tão suprema auctoridade sobre a roupa intima das duquezas, que á tarde, em quartos de rapazes, por impulsos idealistas e anceios d'alma dolorida--se põem em collete e saia branca!... De resto o director do
Boulevard condemnára logo sem piedade, com uma experiencia firme, aquelle collete, só possivel n'alguma mercieira atrazada que ainda procurasse effeitos de carne nedia sobre setim negro. E eu, para que me não julgassem alheio ás coisas dos adulterios ducaes e do luxo, acudi, mettendo os dedos pelo cabello: --Realmente, preto, só se estivesse de lucto pesado, pelo pae!
O pobre mestre da Couraça succumbira. Era a sua gloria de Doutor em
Elegancias-Femininas desmantelada--e Paris suppondo que elle nunca vira uma duqueza desatacar o collete na sua alcova de Psychologo! Então, passando o lenço sobre os labios que a angustia ressequira, confessou o erro, e contrictamente o attribuiu a uma improvisação tumultuosa: --Foi um tom falso, um tom perfeitamente falso que me escapou!... Com effeito! é absurdo, um collete preto!... Mesmo por harmonia com o estado da alma da duqueza devia ser lilaz, talvez côr de reseda muito desmaiada, com um frouxo de rendas antigas de Malines... É prodigioso como me escapou! Pois tenho o meu caderno de entrevistas bem annotadas, bem documentadas!...
Na sua amargura, terminou por supplicar a Marizac que espalhasse por toda a parte, no Club, nas salas, a sua confissão. Fôra um engano de artista, que trabalha na febre, vasculhando as almas, perdido nas profundidades negras das almas! Não reparára no collete, confundira os tons... E gritou, com os braços estendidos para o director do
Boulevard: --Estou prompto a fazer uma rectificação, n'uma interview, meu caro mestre! Mande um dos seus redactores... Ámanhã, ás dez horas! Fazemos uma interview, fixamos a côr. Evidentemente é lilaz... Mande um dos seus homens, meu caro mestre! É tambem uma occasião para eu confessar, bem alto, os serviços que o Boulevard tem feito ás sciencias psychologicas e feministas!
Assim elle supplicava, encostado á estante, ás lombadas dos Santos
Padres. E eu abalei, vendo ao fundo da Bibliotheca Jacintho que se debatia e se recusava entre dous homens.
Eram os dois homens de Madame de Treves--o marido, conde de Treves, descendente dos reis de Candia, e o amante, o terrivel banqueiro judeu,
David Ephraim. E tão enfronhadamente assaltavam o meu Principe que nem me reconheceram, ambos n'um aperto de mão molle e vago me trataram por «caro conde»! N'um relance, rebuscando charutos sobre a mesa de limoeiro, comprehendi que se tramava a Companhia das Esmeraldas da
Birmania, medonha empreza em que scintillavam milhões, e para que os dous confederados de bolsa e d'alcôva, desde o começo do anno, pediam o nome, a influencia, o dinheiro de Jacintho. Elle resistira, n'um enfado dos negocios, desconfiado d'aquellas esmeraldas soterradas n'um valle da
Asia. E agora o conde de Treves, um homem esgrouviado, de face rechupada, erriçada de barba rala, sob uma fronte rotunda e amarella como um melão, assegurava ao meu pobre Principe que no Prospecto já preparado, demonstrando a grandeza do negocio, perpassava um fulgôr das
Mil e Uma noites. Mas sobretudo aquella excavação de esmeraldas convidava todo o espirito culto pela sua acção civilisadora. Era uma corrente de idéas occidentaes, invadindo, educando a Birmania. Elle acceitára a direcção por patriotismo...
--De resto é um negocio de joias, de arte, de progresso, que deve ser feito, n'um mundo superior, entre amigos...
E do outro lado o terrivel Ephraim, passando a mão curta e gorda sobre a sua bella barba, mais frisada e negra que a d'um Rei Assyrio, affiançava o triumpho da empreza pelas grossas forças que n'ella entravam, os
Nagayers, os Bolsans, os Saccart...
Jacintho franzia o nariz, enervado: --Mas, ao menos, estão feitos os estudos? Já se provou que ha esmeraldas?
Tanta ingenuidade exasperou Ephraim: --Esmeraldas! Está claro que ha esmeraldas!... Ha sempre esmeraldas desde que haja accionistas!
E eu admirava a grandeza d'aquella maxima--quando appareceu, esbaforido, desdobrando o lenço muito perfumado, um dos familiares do 202, Todelle (Antonio de Todelle), moço já calvo, d'infinitas prendas, que conduzia
Cotillons, imitava cantores de Café Concerto, temperava saladas raras, conhecia todos os enredos de Paris.
--Já veio?... Já cá está o Gran-Duque?
Não, S. Alteza ainda não chegára. E Madame de Todelle?
--Não poude... No sophá... Esfolou uma perna.
--Oh!
--Quasi nada... Cahiu do velocipede!
Jacintho, logo interessado: --Ah! Madame de Todelle anda já de velocipede?
--Aprende. Nem tem velocipede!... Agora, na quaresma, é que se applicou mais, no velocipede do padre Ernesto, do cura de S. José! Mas hontem, no
Bosque, zás, terra!... Perna esfolada. Aqui.
E na sua propria côxa, com a unha, vivamente, desenhou o esfolão.
Ephraim, brutal e serio, murmurou:--«Diabo! é no melhor sitio!» Mas
Todelle nem o escutára, correndo para o director do Boulevard, que se avançava, lento e barrigudo, com o seu monoculo negro semelhante a um pacho. Ambos se collaram contra uma estante, n'um cochichar profundo.
Jacintho e eu entramos então no bilhar, forrado de velhos couros de
Cordova, onde se fumava. Ao canto d'um divan, o grande Dornan, o poeta neo-platonico e mystico, o Mestre subtil de todos os rithmos, espapado nas almofadas, com um dos pés sob a côxa gorda, como um Deus indio, dois botões do collete desabotoados, a papeira cahida sobre o largo decote do collarinho, mamava magestosamente um immenso charuto. Ao pé d'elle, também sentado, um velho que eu nunca encontrára no 202, esbelto, de cabellos brancos em anneis passados por traz das orelhas, a face coberta de pó de arroz, um bigodinho muito negro e arrebitado, findára certamente alguma historia de bom e grosso sal--porque deante do divan, de pé, Joban, o suprèmo Critico de Theatro, ria com a calva escarlate de gôso, e um moço muito ruivo (descendente de Colygny), de perfil de periquito, sacudia os braços curtos como azas, e gania: «delicioso!
divino!» Só o poeta idealista permanecera impassivel, na sua magestade obesa. Mas, quando nos acercamos, esse Mestre do rythmo perfeito, depois de soprar uma farta fumarada e me saudar com um pesado mover das palpebras, começou n'uma voz de rico e sonoro metal: --Ha melhor, ha infinitamente melhor... Todos aqui conhecem Madame
Noredal. Madame Noredal tem umas immensas nadegas...
Desgraçadamente para o meu regalo Todelle invadiu o bilhar, reclamando
Jacintho com alarido. Eram as senhoras que desejavam ouvir no
Phonographo uma aria da Patti! O meu amigo sacudiu logo os hombros, n'uma surda irritação: --Aria da Patti... Eu sei lá! Todos esses rolos estão em confusão. Além d'isso o Phonographo trabalha mal. Nem trabalha! Tenho tres. Nenhum trabalha!
--Bem! exclamou alegremente Todelle. Canto eu a Pauvre fille... É mais de ceia! Oh, la pauv', pauv', pauv'...
Travou do meu braço, e arrastou a minha timidez serrana para o salão côr de rosa murcha, onde, como Deusas n'um circulo escolhido do Olympo, resplandeciam Madame d'Oriol, Madame Verghane, a princeza de Carman, o uma outra loura, com grandes brilhantes nas grandes farripas, e d'hombros tão nús, e braços tão nús, e peitos tão nús, que o seu vestido branco com bordados d'ouro pallido parecia uma camisa, a escorregar.
Impressionado, ainda retive Todelle, rugi baixinho:--«Quem é?» Mas já o festivo homem correra para Madame d'Oriol, com quem riam, n'uma familiaridade superior e facil, Marizac (o duque de Marizac) e um moço de barba côr de milho e mais leve que uma penugem, que se balouçava gracilmente sobre os pés, como uma espiga ao vento. E eu, encalhado contra o piano, esfregava lentamente as mãos, amassando o meu embaraço, quando Madame Verghane se ergueu do sophá onde conversava com um velho (que tinha a Gran-Cruz de Santo André), e avançou, deslizou no tapete, pequena e nedia, na sua copiosa cauda de velludo verde-negro. Tão fina era a cinta, entre os encontros fecundos e a vastidão do peito, todo nú e côr de nacar, que eu receava que ella partisse pelo meio, no seu lento ondular. Os seus famosos bandós negros, d'um negro furioso, inteiramente lhe tapavam as orelhas; e, no grande aro d'ouro que os circumdava, reluzia uma estrella de brilhantes, como na fronte dos anjos de
Boticelli. Conhecendo sem dúvida a minha auctoridade no 202, ella despediu sobre mim ao passar, como raio benefico, um sorriso que lhe liquescia mais os olhos liquidos, e murmurou: --O Gran-Duque vem, com certeza?
--Oh com certeza, minha senhora, para o peixe!
--P'ra o peixe?...
Mas justamente, na antecamara, rompeu, em rufos e arcadas triumphaes, a marcha de Rakoczy. Era elle! Na Bibliotheca, o nosso retumbante mordomo annunciava: --S. Alteza o Gran-Duque Casimiro!
Madame de Verghane, com um curto suspiro d'emoção, alteou o peito, como para lhe expôr melhor a magnificencia eburnea. E o homem do Boulevard, o velho da Gran-Cruz, Ephraim, quasi me empurraram, investindo para a porta, na immensa sofreguidão de Pessoa Real.
Precedido por Jacintho, o Gran-Duque surgiu. Era um possante homem, de barba em bico, já grisalha, um pouco calvo. Durante um momento hesitou, com um balanço lento sobre os pés pequeninos, calçados de sapatos rasos, quasi sumidos sob as pantalonas muito largas. Depois, pesado e risonho, veio apertar a mão ás senhoras que mergulhavam nos velludos e sêdas, em mesuras de Côrte. E immediatamente, batendo com carinhosa jovialidade no hombro de Jacintho: --E o peixe?... Preparado pela receita que mandei, hein?
Um murmurio de Jacintho tranquillisou S. Alteza.
--Ainda bem, ainda bem! exclamou elle, no seu vozeirão de commando. Que eu não jantei, absolutamente não jantei! É que se está jantando deploravelmente em casa do Joseph. Mas porque se vai jantar ainda ao
Joseph? Sempre que chego a Paris, pergunto: «Onde é que se janta agora?»
Em casa do Joseph!... Qual! não se janta! Hoje, por exemplo, gallinholas... Uma peste! Não tem, não tem a noção da gallinhola!
Os seus olhos azulados, d'um azul sujo, rebrilhavam, alargados pela indignação: --Paris está perdendo todas as suas superioridades. Já se não janta, em
Paris!
Então, em redor, aquelles senhores concordaram, desolados. O conde de
Treves defendeu o Bignon, onde se conservavam nobres tradições. E o director do Boulevard, que se empurrava todo para S. Alteza, attribuia a decadencia da cozinha, em França, á Republica, ao gosto democratico e torpe pelo barato.
--No Paillard, todavia...--começou o Ephraim.
--No Paillard! gritou logo o Gran-Duque. Mas os Borgonhas são tão maus!
os Borgonhas são tão maus!...
Deixára pender os braços, os hombros, descorçoado. Depois, com o seu lento andar balançado como o d'um velho piloto, atirando um pouco para traz as lapellas da casaca, foi saudar Madame d'Oriol, que toda ella faiscou, no sorriso, nos olhos, nas joias, em cada préga das suas sêdas côr de salmão. Mas apenas a clara e macia creatura, batendo o leque como uma aza alegre, começára a chalrar, S. Alteza reparou no apparelho do