Uma vez...
Uma vez, depois de dar comida aos peixinhos, LĂșcia sentiu os olhos pesados de sono. Deitou-se na grama com a boneca no braço e ficou seguindo as nuvens que passeavam pelo cĂ©u, formando ora castelos, ora camelos. E jĂĄ ia dormindo, embalada pelo mexerico das ĂĄguas, quando sentiu cĂłcegas no rosto. Arregalou os olhos: um peixinho vestido de gente estava de pĂ© na ponta do seu nariz.
Vestido de gente, sim Trazia casaco vermelho, cartolinha na cabeça e guarda-chuva na mĂŁo â a maior das galantezas O peixinho olhava para o nariz de Narizinho com rugas na testa, como quem nĂŁo estĂĄ entendendo nada do que vĂȘ.
A menina reteve o fÎlego de medo de o assustar, assim ficando até que sentiu cócegas na testa. Espiou com o rabo dos olhos. Era um besouro que pousara ali. Mas um besouro também vestido de gente, trajando sobrecasaca preta, óculos e bengala.
LĂșcia imobilizou-se ainda mais, tĂŁo interessada estava achando aquilo.
Ao ver o peixinho, o besouro tirou o chapéu, respeitosamente.
â Muito boas tardes, senhor prĂncipe â disse ele.
â Viva, mestre Cascudo â foi a resposta.
â Que novidade traz Vossa Alteza por aqui, prĂncipe
â Ă que lasquei duas escamas do filĂ© e o doutor Caramujo me receitou ares do campo. Vim tomar o remĂ©dio neste prado que Ă© muito meu conhecido, mas encontrei cĂĄ este morro que me parece estranho â e o prĂncipe bateu com a biqueira do guarda-chuva na ponta do nariz de Narizinho e disse:
â Creio que Ă© de mĂĄrmore â observou.
Os besouros sĂŁo muito entendidos em questĂ”es de terra, pois vivem a cavar buracos. Mesmo assim aquele besourinho de sobrecasaca nĂŁo foi capaz de adivinhar que qualidade de âterraâ era aquela. Abaixou-se, ajeitou os Ăłculos no bico, examinou o nariz de Narizinho e disse:
â Muito mole para ser mĂĄrmore. Parece antes requeijĂŁo.
â Muito moreno para ser requeijĂŁo. Parece antes rapadura â volveu o prĂncipe. O besouro provou a tal terra com a ponta da lĂngua. â Muito salgada para ser rapadura. Parece antesâŠ
Mas nĂŁo concluiu, porque o prĂncipe o havia largado para ir examinar as sobrancelhas. â SerĂŁo barbatanas, mestre Cascudo â Venha ver. Por que nĂŁo leva algumas para os seus meninos brincarem de chicote?
O besouro gostou da idĂ©ia e veio colher as barbatanas. Cada fio que arrancava era uma dorzinha aguda que a menina sentia â e bem vontade teve ela de o espantar dali com uma careta Mas tudo suportou, curiosa de ver em que daria aquilo.
Deixando o besouro Ă s voltas com as barbatanas, o peixinho foi examinar as ventas.
â Que belas tocas para uma famĂlia de besouros â exclamou.
â Por que nĂŁo se muda para aqui, mestre Cascudo? Sua esposa havia de gostar desta repartição de cĂŽmodos.
O besouro, com o feixe de barbatanas debaixo do braço, lå foi examinar as tocas. Mediu a altura com a bengala.
â Realmente, sĂŁo Ăłtimas â disse ele. â SĂł receio que more aqui dentro alguma fera peluda.
E para certificar-se cutucou bem lĂĄ no fundo.
â Hu Hu Sai fora, bicho imundo!
... NĂŁo saiu fera nenhuma, mas como a bengala fizesse cĂłcegas no nariz de LĂșcia, o que saiu foi um formidĂĄvel espirro â Atchim!... e os dois bichinhos, pegados de surpresa, reviraram de pernas para o ar, caindo um grande tombo no chĂŁo.
â Eu nĂŁo disse â exclamou o besouro, levantando-se e escovando com a manga a cartolinha suja de terra. â Ă, sim, ninho de fera, e de fera espirradeira Vou-me embora. NĂŁo quero negĂłcios com essa gente. AtĂ© logo, prĂncipe Faço votos para que sare e seja muito feliz.
E lĂĄ se foi, zumbindo que nem um aviĂŁo. O peixinho, porĂ©m, que era muito valente, permaneceu firme, cada vez mais intrigado com a tal montanha que espirava. Por fim a menina teve dĂł dele e resolveu esclarecer todo o mistĂ©rio. Sentou-se de sĂșbito e disse:
â NĂŁo sou montanha nenhuma, peixinho. Sou LĂșcia, a menina que todos os dias vem dar comida a vocĂȘs. NĂŁo me reconhece?
â Era impossĂvel reconhecĂȘ-la, menina. Vista de dentro dâĂĄgua parece muito diferenteâŠ
â Posso parecer, mas garanto que sou a mesma. Esta senhora aqui Ă© a minha amiga EmĂlia.
O peixinho saudou respeitosamente a boneca, e em seguida apresentou-se como o prĂncipe Escamado, rei do reino das Ăguas Claras.
â PrĂncipe e rei ao mesmo tempo â exclamou a menina batendo palmas. â Que bom, que bom, que bom Sempre tive vontade de conhecer um prĂncipe-rei.
Conversaram longo tempo, e por fim o prĂncipe convidou-a para uma visita ao seu reino. Narizinho ficou no maior dos assanhamentos.
â Pois vamos e jĂĄ â gritou â antes que tia NastĂĄcia me chame.
E lå se foram os dois de braços dados, como velhos amigos. A boneca seguia atrås sem dizer palavra.
â Parece que dona EmĂlia estĂĄ emburrada â observou o prĂncipe.
â NĂŁo Ă© burro, nĂŁo, prĂncipe. A pobre Ă© muda de nascença. Ando Ă procura de um bom doutor que a cure.
â HĂĄ um excelente na corte, o cĂ©lebre doutor Caramujo. Emprega umas pĂlulas que curam todas as doenças, menos a gosma dele. Tenho a certeza de que o doutor Caramujo pĂ”e a senhora EmĂlia a falar pelos cotovelos.
E ainda estavam discutindo os milagres das famosas pĂlulas quando chegaram a certa gruta que Narizinho jamais havia visto naquele ponto. Que coisa estranha A paisagem estava outra.
â Ă aqui a entrada do meu reino â disse o prĂncipe. Narizinho espiou, com medo de entrar.
â Muito escura, prĂncipe. EmĂlia Ă© uma grande medrosa.
A resposta do peixinho foi tirar do bolso um vaga-lume de cabo de arame, que lhe servia de lanterna viva. A gruta clareou atĂ© longe e a âbonecaâ perdeu o medo. Entraram.
Pelo caminho foram saudados com grandes marcas de respeito, por vĂĄrias corujas e numerosĂssimos morcegos. Minutos depois chegavam ao portĂŁo do reino. A menina abriu a boca, admirada.
â Quem construiu este maravilhoso portĂŁo de coral, prĂncipe?
à tão bonito que até parece um sonho.
â Foram os PĂłlipos, os pedreiros mais trabalhadores e incansĂĄveis do mar. TambĂ©m meu palĂĄcio foi construĂdo por eles, todo de coral rosa e branco.
Narizinho ainda estava de boca aberta quando o prĂncipe notou que o portĂŁo nĂŁo fora fechado naquele dia.
â Ă a segunda vez que isto acontece â observou ele com cara feia. â Aposto que o guarda estĂĄ dormindo.
Entrando, verificou que era assim. O guarda dormia um sono roncado. Esse guarda não passava dum sapão muito feio, que tinha o posto de major no exército marinho. Major Agarra-e-não-larga-mais.
Recebia como ordenado cem moscas por dia para que ali ficasse, de lança em punho, capacete na cabeça e a espada Ă cinta, sapeando a entrada do palĂĄcio. O Major, porĂ©m, tinha o vĂcio de dormir fora de horas, e pela segunda vez fora apanhado em falta.
O prĂncipe ajeitou-se para acordĂĄ-lo com um pontapĂ© na barriga, mas a menina interveio.
Espere prĂncipe! Eu tenho uma ideia muito boa. Vamos vestir este sapo de mulher, para ver a cara dele quando acordar.
E sem esperar resposta, foi tirando a saia da EmĂlia e vestindo-a, muito devagarinho, no dorminhoco. PĂŽs-lhe tambĂ©m a touca da boneca em lugar do capacete, e o guarda-chuva do prĂncipe em lugar de lança. Depois o deixou assim transformado numa perfeita velha coroca, disse ao prĂncipe:
â Pode chutar agora.
O prĂncipe, zĂĄs pregou-lhe um valente pontapĂ© na barriga.
â Hum â gemeu o sapo, abrindo os olhos, ainda cego de sono.
O prĂncipe engrossou a voz e ralhou:
â Bela coisa, Major Dormindo como um porco e ainda por cima vestido de velha coroca⊠Que significa isto?
O sapo, sem compreender coisa nenhuma, mirou-se apatetadamente num espelho que havia por ali. E botou a culpa no pobre espelho.
â Ă mentira dele, prĂncipe NĂŁo acredite. Nunca fui assimâŠ
â VocĂȘ de fato nunca foi assim â explicou Narizinho. â Mas, como dormiu escandalosamente durante o serviço, a fada do sono o virou em velha coroca. Bem feitoâŠ
â E por castigo â ajuntou o prĂncipe â estĂĄ condenado a engolir cem pedrinhas redondas, em vez das cem moscas do nosso trato.
O triste sapo derrubou um grande beiço, indo, muito jururu, encorujar-se a um canto.