No palĂĄcio
O prĂncipe consultou o relĂłgio.
â Estou na hora da audiĂȘncia â murmurou. â Vamos depressa, que tenho muitos casos a atender.
Lå se foram. Entraram diretamente para a sala do trono, no qual a menina se sentou a seu lado, como se fosse uma princesa. Linda sala! Toda dum coral cor de leite, franjadinho como musgo e penduradinho de pingentes de pérola, que tremiam ao menor sopro.
O chĂŁo, de nĂĄcar furta-cor, era tĂŁo liso que EmĂlia escorregou trĂȘs vezes.
O prĂncipe deu o sinal de audiĂȘncia batendo com uma grande pĂ©rola negra numa concha sonora. O mordomo introduziu os primeiros queixosos. Um bando de moluscos nus que tiritavam de frio. Vinham queixar-se dos Bernardos Eremitas.
â Quem sĂŁo esses Bernardos? â indagou a menina.
â SĂŁo uns caranguejos que tĂȘm o mau costume de se apropriarem das conchas destes pobres moluscos, deixando-os em carne viva no mar. Os piores ladrĂ”es que temos aqui.
O prĂncipe resolveu o caso mandando dar uma concha nova a cada molusco.
Depois apareceu uma ostra a se queixar dum caranguejo que lhe havia furtado a pérola.
â Era uma pĂ©rola ainda novinha e tĂŁo galante! â disse a ostra, enxugando as lĂĄgrimas. â Ele raptou-a sĂł de mau, porque os caranguejos nĂŁo se alimentam de pĂ©rolas, nem as usam como jĂłias. Com certeza jĂĄ a largou por aĂ nas areias...
O prĂncipe resolveu o caso mandando dar Ă ostra uma pĂ©rola nova do mesmo tamanho.
Nisto surgiu na sala, muito apressada e aflita, uma baratinha de mantilha, que foi abrindo caminho por entre os bichos atĂ© alcançar o prĂncipe.
â A senhora por aqui? â exclamou este, admirado. â Que deseja?
â Ando atrĂĄs do Pequeno Polegar â respondeu a velha. â HĂĄ duas semanas que fugiu do livro onde mora e nĂŁo o encontro em parte nenhuma. JĂĄ percorri todos os reinos encantados sem descobrir o menor sinal dele.
â Quem Ă© esta velha? â perguntou a menina ao ouvido do prĂncipe. â Parece que a conheço...
â Com certeza, pois nĂŁo hĂĄ menina que nĂŁo conheça a cĂ©lebre Dona Carochinha das histĂłrias, a baratinha mais famosa do mundo.
E voltando-se para a velha:
â Ignoro se o Pequeno Polegar anda aqui pelo meu reino. NĂŁo o vi, nem tive notĂcias dele, mas a senhora pode procurĂĄ-lo. NĂŁo faça cerimĂŽnia...
â Por que ele fugiu? â indagou a menina.
â NĂŁo sei â respondeu dona Carochinha â mas tenho notado que muitos dos personagens das minhas histĂłrias jĂĄ andam aborrecidos de viverem toda a vida presos dentro delas. Querem novidade. Falam em correr mundo a fim de se meterem em novas aventuras. Aladino queixa-se de que sua lĂąmpada maravilhosa estĂĄ enferrujando. A Bela Adormecida tem vontade de espetar o dedo noutra roca para dormir outros cem anos. O Gato de Botas brigou com o marquĂȘs de CarabĂĄs e quer ir para os Estados Unidos visitar o Gato FĂ©lix. Branca de Neve vive falando em tingir os cabelos de preto e botar ruge na cara. Andam todos revoltados, dando-me um trabalhĂŁo para contĂȘ-los. Mas o pior Ă© que ameaçam fugir, e o Pequeno Polegar jĂĄ deu o exemplo.
Narizinho gostou tanto daquela revolta que chegou a bater palmas de alegria, na esperança de ainda encontrar pelo seu caminho algum daqueles queridos personagens.
â Tudo isso â continuou dona Carochinha â por causa do PinĂłquio, do Gato FĂ©lix e sobretudo de uma tal menina do narizinho arrebitado que todos desejam muito conhecer. Ando atĂ© desconfiada que foi essa diabinha quem desencaminhou Polegar, aconselhando-o a fugir.
O coração de Narizinho bateu apressado.
â Mas a senhora conhece essa tal menina? â perguntou, tapando o nariz com medo de ser reconhecida.
â NĂŁo a conheço â respondeu a velha â mas sei que mora numa casinha branca, em companhia de duas velhas corocas.
Ah, por que foi dizer aquilo? Ouvindo chamar dona Benta de velha coroca, Narizinho perdeu as estribeiras.
â Dobre a lĂngua! â gritou vermelha de cĂłlera. â Velha coroca Ă© vosmecĂȘ, e tĂŁo implicante que ninguĂ©m mais quer saber das suas histĂłrias emboloradas. A menina do narizinho arrebitado sou eu, mas fique sabendo que Ă© mentira que eu haja desencaminhado o Pequeno Polegar, aconselhando-o a fugir. Nunca tive essa âbela idĂ©iaâ, mas agora vou aconselhĂĄ-lo, a ele e a todos os mais, a fugirem dos seus livros bolorentos, sabe?
A velha, furiosa, ameaçou-a de lhe desarrebitar o nariz da primeira vez em que a encontrasse sozinha.
â E eu arrebitarei o seu, estĂĄ ouvindo? Chamar vovĂł de coroca! Que desaforo!...
Dona Carochinha botou-lhe a lĂngua. uma lĂngua muito magra e seca. e retirou-se furiosa da vida, a resmungar que nem uma negra beiçuda.
O prĂncipe respirou de alĂvio ao ver o incidente terminado. Depois encerrou a audiĂȘncia e disse ao primeiro-ministro:
â Mande convite a todos os nobres da corte para a grande festa que vou dar amanhĂŁ em honra Ă nossa distinta visitante. E diga a mestre CamarĂŁo que ponha o coche de gala para um passeio pelo fundo do mar. JĂĄ.