Capítulo 2 - Parte 1
II
Foi n'um domingo e dia de S. Jeronymo que meus pés latinos pisaram emfim, no caes de Alexandria, a terra do Oriente, sensual e religiosa.
Agradeci ao Senhor da Boa Viagem. E o meu companheiro, o illustre
Topsius, Doutor allemão pela Universidade de Bonn, socio do Instituto imperial de Excavações historicas, murmurou, grave como n'uma invocação, desdobrando o seu vastissimo guardasol verde: --Egypto! Egypto! Eu te saúdo, negro Egypto! E que me seja em ti propicio o teu Deus Phtah, Deus das Letras, Deus da Historia, inspirador da obra de Arte e da obra de Verdade!...
Através d'este zumbido scientifico eu sentia-me envolvido n'um bafo morno como o d'uma estufa, amollecedormente tocado d'aromas de sandalo e rosa. No caes faiscante, entre fardos de lã, estirava-se, banal e sujo, o barracão da Alfandega. Mas além as pombas brancas voavam em torno aos minaretes brancos; o ceu deslumbrava. Cercado de severas palmeiras, um languido palacio dormia á beira d'agua; e ao longe perdiam-se os areaes da antiga Lybia, esbatidos n'uma poeirada quente, livre, e da côr d'um leão.
Amei logo esta terra de indolencia, de sonho e de luz. E saltando para a caleche forrada de chita, que nos ia levar ao Hotel das Pyramides, invoquei as Divindades, como o illustrado Doutor de Bonn: --Egypto, Egypto! Eu te saúdo, negro Egypto! E que me seja propicio...
--Não! que vos seja propicia, D. Raposo, Isis, a vacca amorosa! acudiu o eruditissimo homem, risonho, e abraçado á minha chapeleira.
Não comprehendi, mas venerei. Eu conhecêra Topsius em Malta, uma fresca manhã, estando a comprar violetas a uma ramalheteira que tinha já nos olhos grandes um langor musulmano: elle andava medindo consideradamente com o seu guardasol as paredes marciaes e monasticas do palacio do
Grão-Mestre.
Persuadido que era um dever espiritual e doutoral, n'estas terras do
Levante, cheias de historia, medir os monumentos da antiguidade, tirei o meu lenço e fui-o gravemente passeando, esticado como um covado, sobre as austeras cantarias. Topsius dardejou-me logo, por cima dos oculos d'ouro, um olhar desconfiado e ciumento. Mas tranquillisado, de certo, pela minha face jucunda e material, pelas minhas luvas almiscaradas, pelo meu futil raminho de violetas--ergueu cortezmente de sobre o longo cabello, corredio e côr de milho, o seu bonésinho de sêda preta. Eu saudei com o meu capacete de cortiça; e communicamos. Disse-lhe o meu nome, a minha patria, os santos motivos que me levavam a Jerusalem. Elle contou-me que nascêra na gloriosa Allemanha; e ia tambem á Judêa, depois á Galilêa, n'uma peregrinação scientifica, colhêr notas para a sua formidavel obra, a Historia dos Herodes. Mas demorava-se em Alexandria a amontoar os pesados materiaes de outro livro monumental, a Historia dos Lagidas... Porque estas duas turbulentas familias, os Herodes e os
Lagidas, eram propriedade historica do doutissimo Topsius.
--Então, ambos com o mesmo roteiro, podiamos acamaradar, Doutor Topsius!
Elle espigado, magrissimo e pernudo, com uma rabona curta de lustrina enchumaçada de manuscriptos, cortejou gostosamente: --Pois acamarademos, D. Raposo! Será uma deleitosa economia!
Encovado na gola, de guedelha cahida, o nariz agudo e pensativo, a calça esguia,--o meu erudito amigo parecia-me uma cegonha, risivel e cheia de letras, com oculos d'ouro na ponta do bico. Mas já a minha animalidade reverenciava a sua intellectualidade: e fômos beber cerveja.
A sabedoria n'este moço era dom hereditario. Seu avô materno, o naturalista Shlock, escreveu um famoso tratado em oito volumes sobre a
Expressão physionomica dos Lagartos, que assombrou a Allemanha. E seu tio, o decrepito Topsius, o memoravel egyptologo, aos setenta e sete annos dictou da poltrona, onde o prendia a gota, esse livro genial e facil--a Synthese monotheista da Theogonia egypcia, considerada nas relações do Deus Phtah e do Deus Imhotep com as Triadas dos Nómos.
O pai de Topsius, desgraçadamente, através d'esta alta sciencia domestica, permanecia figle n'um a charanga, em Munich: mas o meu camarada, reatando a tradição, logo aos vinte e dois annos tinha esclarecido, radiantemente, em dezenove artigos publicados no Boletim hebdomadario de Excavações historicas, a questão, vital para a
Civilisação, d'uma parede de tijolo erguida pelo rei Pi-Sibkmé, da vigesima primeira dynastia, em torno do templo de Ramèses II, na lendaria cidade de Tanis. Em toda a Allemanha scientifica, hoje, a opinião de Topsius ácerca d'esta parede brilha com a irrefutabilidade do sol.
Só conservo de Topsius recordações suaves ou elevadas. Já sobre as aguas bravias do mar de Tyro; já nas ruas fuscas de Jerusalem; já dormindo lado a lado, sob a tenda, junto aos destroços de Jerichó; já pelas estradas verdes de Galilêa--encontrei-o sempre instructivo, serviçal, paciente e discreto. Raramente comprehendia as suas sentenças, sonoras e bem cunhadas, tendo a preciosidade de medalhas d'ouro; mas, como diante da porta impenetravel d'um santuario, eu reverenciava, por saber que lá dentro, na sombra, refulgia a essencia pura da Idéa. Por vezes tambem o
Doutor Topsius rosnava uma praga immunda; e então uma grata communhão se estabelecia entre elle e o meu singelo intellecto de bacharel em leis.
Ficou-me a dever seis moedas;--mas esta diminuta migalha de pecunia desapparece na copiosa onda de saber historico com que fecundou o meu espirito. Uma coisa apenas, além do seu pigarro d'erudito, me desagradava n'elle--o habito de se servir da minha escova de dentes.
Era tambem intoleravelmente vaidoso da sua patria. Sem cessar, erguendo o bico, sublimava a Allemanha, mãi espiritual dos povos; depois ameaçava-me com a irresistibilidade das suas armas. A omnisciencia da
Allemanha! A omnipotencia da Allemanha! Ella imperava, vasto acampamento entrincheirado d'in-folios, onde ronda e falla d'alto a Metaphysica armada! Eu, brioso, não gostava d'estas jactancias. Assim, quando no
Hotel das Pyramides nos apresentaram um livro para n'elle registarmos nossos nomes e nossas terras, o meu douto amigo traçou o seu «Topsius», ajuntando por baixo, altivamente, em letras tesas e disciplinadas como galuchos:--«Da Imperial Allemanha.» Arrebatei a penna; e recordando o barbudo João de Castro, Ormuz em chammas, Adamastor, a capella de S.
Roque, o Tejo e outras glorias, escrevi largamente em curvas mais enfunadas que velas de galeões:--«Raposo, Portuguez, d'Áquem e d'Álém-mar.» E logo, do canto, um moço magro e murcho, murmurou, suspirando e a desfallecer: --Em o cavalheiro necessitando alguma coisa, chame pelo Alpedrinha.
Um patricio! Elle contou-me a sua sombria historia, desafivelando a minha maleta. Era de Trancoso e desgraçado. Tivera estudos, compuzera um negrologio, sabia ainda mesmo de cór os versos mais doloridos «do nosso
Soares de Passos.» Mas apenas sua mamãsinha morrêra, tendo herdado terras, correra á fatal Lisboa, a gozar; conheceu logo na travessa da
Conceição uma hespanhola deleitosissima, do adocicado nome de Dulce; e largou com ella para Madrid, n'um idyllio. Ahi o jogo empobreceu-o, a
Dulce trahiu-o, um chulo esfaqueou-o. Curado e macilento passou a
Marselha; e durante annos arrastou como um frangalho social, através de miserias inenarraveis. Foi sacristão em Roma. Foi barbeiro em Athenas.
Na Morêa, habitando uma choça junto a um pantano, empregára-se na pavorosa pesca das sanguesugas; e de turbante, com ôdres negros ao hombro, apregoou agua pelas viellas de Smyrna. O fecundo Egypto attrahira-o sempre, irresistivelmente... E alli estava no Hotel das
Pyramides, moço de bagagens e triste.
--E se o cavalheiro trouxesse por ahi algum jornal da nossa Lisboa, eu gostava de saber como vai a Politica.
Concedi-lhe generosamente todos os Jornaes de Noticias que embrulhavam os meus botins.
O dono do hotel era um grego de Lacedemonia, de bigodes ferozes, e que hablaba un poquitito el castellano. Respeitosamente elle proprio, têso na sua sobrecasaca preta ornada d'uma condecoração, nos conduziu á sala do almoço--la más preciosa, sin duda, de todo el Oriente, caballeros!
Sobre a mesa murchava um ramo grosso de flôres escarlates: no frasco do azeite fluctuavam familiarmente cadaveres de moscas; as chinelas do criado topavam a cada instante um velho Jornal dos Debates, manchado de vinho, rojando alli desde a vespera, pisado por outras chinelas indolentes: e no tecto, a fumaraça fetida dos candieiros de latão juntára nuvens pretas ás nuvens côr de rosa onde esvoaçavam anjos e andorinhas. Por baixo da varanda uma rebeca e uma harpa tocavam a
Mandolinata. E emquanto Topsius se alagava de cerveja, eu sentia estranhamente crescer o meu amor por esta terra de preguiça e de luz.
Depois do café, o meu sapientissimo amigo, com o lapis dos apontamentos na algibeira da rabona, abalou a rebuscar antigualhas e pedras do tempo dos Ptolomeus. Eu, accendendo um charuto, reclamei Alpedrinha; e confiei-lhe que desejava, sem tardança, ir rezar e ir amar. Rezar era por intenção da tia Patrocinio, que me recommendára uma jaculatoria a S.
José, apenas pisasse esse sólo do Egypto, tornado, desde a fuga da Santa
Familia em cima do seu burrinho, chão devoto como o d'uma Sé. Amar era por necessidade do meu coração, ancioso e ardido. Alpedrinha, em silencio, ergueu as persianas, e mostrou-me uma clara praça, ornamentada ao centro por um heroe de bronze, cavalgando um corcel de bronze: uma aragem quente levantava poeiradas lentas por sobre dois tanques seccos; e em redor perfilavam-se no azul altos predios, hasteando cada um a bandeira da sua patria como cidadellas rivaes sobre um sólo vencido.
Depois o triste Alpedrinha indicou-me, a uma esquina, onde uma velha vendia canas d'assucar, a tranquilla rua das Duas Irmãs. Ahi (murmurou elle) eu veria, pendurada sobre a porta d'uma lojinha discreta, uma pesada mão de pau, tosca e rôxa--e por cima, em taboleta negra, estes dizeres convidativos a ouro: «Miss Mary, Luvas e Flores de Cera.» Era esse o refugio que elle aconselhava ao meu coração. Ao fundo da rua, junto d'uma fonte chorando entre arvores, havia uma capella nova onde a minha alma acharia consolação e frescura.
--E diga o cavalheiro a miss Mary que vai de mandado do Hotel das
Pyramides.
Puz uma rosa ao peito--e sahi, ovante. Logo da entrada das Duas Irmãs avistei a ermidinha virginal, dormindo castamente sob os platanos, ao rumor meigo da agua. Mas o amantissimo patriarcha S. José estava certamente, a essa hora, occupado em receber jaculatorias mais instantes, e evoladas de labios mais nobres: não quiz importunar o bondosissimo santo;--e parei diante da mão de pau, pintada de rôxo, que parecia estar alli esperando, alongada e aberta, para empolgar o meu coração.
Entrei, commovido. Por traz do balcão envernizado, junto a um vaso de rosas e magnolias, ella estava lendo o seu Times, com um gato branco no collo. O que me prendeu logo foram os seus olhos azues-claros, d'um azul que só ha nas porcelanas, simples, celestes, como eu nunca vira na morena Lisboa. Mas encanto maior ainda tinham os seus cabellos, crespos, frisadinhos como uma carapinha d'ouro, tão dôces e finos que appetecia ficar eternamente e devotamente a mexer-lhes com os dedos tremulos; e era irresistivel o profano nimbo luminoso que elles punham em torno da sua face gordinha, d'uma brancura de leite onde se desfez carmezim, toda tenra e succulenta. Sorrindo, e baixando com sentimento as pestanas escuras, perguntou-me se eu queria pellica ou Suecia.
Eu murmurei, roçando-me sôfregamente pelo balcão: --Trago-lhe recadinhos do Alpedrinha.
Ella escolheu entre o ramo um timido botão de rosa, e deu-m'o na ponta dos dedos. Eu trinquei-o, com furor. E a voracidade d'esta caricia pareceu agradar-lhe, porque um sangue mais quente veio afoguear-lhe a face--e chamou-me baixo «mausinho!» Esqueci S. José e a sua jaculatoria--e as nossas mãos, um momento unidas para ella me calçar a luva clara, não se desenlaçaram mais, n'essas semanas que passei, na cidade dos Lagidas, em festivas delicias musulmanas!
Ella era d'York, esse heroico condado da velha Inglaterra, onde as mulheres crescem fortes e bem desabrochadas, como as rosas dos seus jardins reaes. Por causa da sua meiguice e do seu riso d'ouro quando lhe fazia cocegas, eu puzera-lhe o nome galante e cacarejante de
Maricoquinhas. Topsius, que a apreciava, chamava-lhe «a nossa symbolica Cleopatra.» Ella amava a minha barba negra e potente: e, só para não me afastar do calor das suas saias, eu renunciei a vêr o Cairo, o Nilo, e a eterna Esphinge, deitada á porta do deserto, sorrindo da
Humanidade vã...
Vestido de branco como um lirio, eu gozava manhãs ineffaveis, encostado ao balcão da Mary, amaciando respeitosamente a espinha do gato. Ella era silenciosa: mas o seu simples sorrir com os braços cruzados, ou o seu modo gentil de dobrar o Times, saturava o meu coração de luminosa alegria. Nem precisava chamar-me «seu portuguezinho valente, seu bibichinho.» Bastava que o seu peito arfasse:--só para vêr aquella dôce onda languida, e saber que a levantava assim a saudade dos meus beijos, eu teria vindo de tão longe a Alexandria, iria mais longe, a pé, sem repouso, até onde as aguas do Nilo são brancas!
De tarde, na caleche de chita com o nosso doutissimo Topsius, davamos lentos, amorosos passeios á beira do canal Mamoudieh. Sob as frondosas arvores, rente aos muros de jardins de serralho, eu sentia o aroma perturbador de magnolias, e outros calidos perfumes que não conhecia.
Por vezes uma leve flôr rôxa ou branca cahia-me sobre o regaço: com um suspiro eu roçava a barba pelo rosto macio da minha Maricoquinhas; ella, sensivel, estremecia. Na agua jaziam as barcas pesadas que sobem o Nilo, sagrado e bemfazejo, ancorando junto ás ruinas dos templos, costeando as ilhas verdes onde dormem os crocodilos. Pouco a pouco a tarde cahia.
Vagarosamente rolavamos na sombra olorosa. Topsius murmurava versos de
Goethe. E as palmeiras da margem fronteira recortavam-se no poente amarello--como feitas em relevo de bronze sobre uma lamina d'ouro.
Maricocas jantava sempre comnosco no Hotel das Pyramides; e diante d'ella Topsius desabrochava todo em flôres d'erudição amavel.
Contava-nos as tardes de festa da velha Alexandria dos Ptolomeus, no canal que levava a Canopia: ambas as margens resplandeciam de palacios e de jardins; as barcas, com toldos de sêda, vogavam ao som dos alaúdes; os sacerdotes d'Osiris, cobertos de pelles de leopardo, dançavam sob os laranjaes; e nos terraços abrindo os véos, as damas d'Alexandria bebiam á Venus Assyria, pelo calice da flôr do lotus. Uma voluptuosidade esparsa amollecia as almas. Os philosophos mesmo eram frascarios.
--E, dizia Topsius requebrando o olho, em toda a Alexandria só havia uma dama honesta que commentava Homero e era tia de Seneca. Só uma!
Maricoquinhas suspirava. Que encanto, viver n'essa Alexandria, e navegar para Canopia, n'uma barca toldada de sêda!
--Sem mim? gritava eu, ciumento.
Ella jurava que sem o seu portuguezinho valente não queria habitar nem o céo!
Eu, regalado, pagava o champagne.
E os dias assim foram passando, leves, flaccidos, gostosos, repicados de beijos--até que chegou a vespera sombria de partirmos para Jerusalem.
--O cavalheiro, dizia-me n'essa manhã Alpedrinha engraxando os meus botins, o que devia era ficar aqui na Alexandriasinha, a refocilar...
Ah! se pudesse! Mas irrecusaveis eram os mandados da titi! E, por amor do seu ouro, lá tinha d'ir á negra Jerusalem, ajoelhar diante de oliveiras seccas, desfiar rosarios piedosos ao pé de frios sepulchros...
--Tu já estiveste em Jerusalem, Alpedrinha? perguntei, enfiando desconsoladamente as ceroulas.
--Não senhor, mas sei... Peor que Braga!
--Irra!
A nossa cêa com Maricocas, á noite, no meu quarto, foi cortada de silencios, de suspiros: as velas tinham a melancolia de tochas: o vinho anuviava-nos como aquelle que se bebe nos funeraes. Topsius offertava consolações generosas.
--Bella dama, bella dama, o nosso Raposo ha de voltar... Estou mesmo certo que trará da ardente terra da Syria, da terra da Venus e da Esposa dos Cantares, uma chamma no seu coração mais fogosa e mais moça...
Eu mordia o beiço, suffocado: --Pois está visto! Ainda havemos d'andar de caleche pelo Mamoudieh...
Isto é só ir rezar uns padre-nossos ao Calvario... Até me faz bem...
Volto como um touro.
Depois do café fomos encostar-nos á varanda a olhar, calados, aquella sumptuosa noite do Egypto. As estrellas eram como uma grossa poeirada de luz que o bom Deus levantava lá em cima, passeando sósinho pelas estradas do céo. O silencio tinha uma solemnidade de sacrario. Nos escuros terraços, em baixo, uma fórma branca movendo-se por vezes, de leve, mostrava que outras creaturas estavam alli, como nós, deixando a alma embeber-se mudamente no esplendor sideral: e n'esta diffusa religiosidade, igual á d'uma multidão pasmando para os lumes d'um altar-mór, eu sentia subir aos labios irresistivelmente a doçura d'uma
Ave-Maria...
Ao longe o mar dormia. E, á quente irradiação dos astros, eu podia distinguir, n'um pontal de arêa, mergulhando quasi n'agua, uma casa deserta, pequenina, toda branca e poetica entre duas palmeiras... Então comecei a pensar que, mal a titi morresse e fosse meu o seu ouro, eu poderia comprar esse dôce retiro, forral-o de lindas sêdas, e viver ao lado da minha luveira, vestido de turco, fresco, sereno, livre de todas as inquietações da civilisação. Desaggravos ao Sagrado Coração de Jesus ser-me-hiam tão indifferentes como as guerras que entre si travassem os
Reis. Do céo só me importaria a luz anilada que banhasse a minha vidraça; da terra só me importariam as flôres abertas no meu jardim para aromatisar a minha alegria. E passaria os dias n'uma fôfa preguiça oriental, fumando o puro Latakié, tocando viola franceza, e recebendo perpetuamente essa impressão de felicidade perfeita que a Mary me dava só com deixar arfar o seio e chamar-me «seu portuguezinho valente.»
Apertei-a contra mim n'um desejo de a sorver. Junto á sua orelha, d'uma brancura de concha branca, balbuciei nomes ineffaveis: disse-lhe rechonchudinha, disse-lhe riquiquitinha. Ella estremeceu, ergueu os olhos magoados para a poeirada d'ouro.
--Que d'estrellas! Deus queira que ámanhã o mar esteja manso!
Então, á idéa d'essas longas ondas que me iam levar á rispida terra do
Evangelho, tão longe da minha Mary, um pezar infinito afogou-me o peito--e irrepressivelmente se me escapou dos labios, em gemidos entoados, queixosos e requebrados... Cantei. Por sobre os terraços adormecidos da musulmana Alexandria soltei a voz dolorida, voltado para as estrellas; e roçando os dedos pelo peito do jaquetão onde deviam estar os bordões da viola, fazendo os meus ais bem chorosos--suspirei o fado mais sentido da saudade portugueza:
Co'a minh'alma aqui te ficas,
Eu parto só com os meus ais,
E tudo me diz, Maricas,
Que não te verei nunca mais.
Parei, abafado de paixão. O erudito Topsius quiz saber se estes dôces versos eram de Luiz de Camões. Eu, choramigando, disse-lhe que estes--ouvira-os no Dáfundo ao Calcinhas.
Topsius recolheu a tomar uma nota do grande poeta Calcinhas. Eu fechei a vidraça: e depois d'ir ao corredor fazer ás escondidas um rapido signal da cruz, vim desapertar sôfregamente, e pela vez derradeira, os atacadores do collete da minha saborosa bem-amada.
Breve, avaramente breve, foi essa noite estrellada do Egypto!
Cedo, amargamente cedo, veio o grego de Lacedemonia avisar-me que já fumegava na bahia, aspera e cheia de vento, el paquete, ferozmente chamado o Caimão, que me devia levar para as tristezas d'Israel.